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Secretário do Pontifício Conselho de Justiça e Paz avalia os dois anos da

Cidade do Vaticano (Terça-feira, 02-08-2011, Gaudium Press) Em 7 de julho de 2009, o mundo tomava conhecimento da terceira encíclica do Papa Bento XVI: “Caritas in Veritate”. O conteúdo principal do documento é voltado aos temas sócio-economicos vindo ao encontro das dificuldades provocadas pela profunda crise econômica e financeira que o mundo atravessou naquele ano.

Para lembrar os dois anos da publicação da Encíclica, Gaudium Press entrevistou com exclusividade Dom Mario Toso, secretário do Pontifício Conselho de Justiça e Paz que fez uma avaliação sobre os resultados concretos do documeto.

GP: Dois anos após a publicação da “Caritas in Veritate”, a humanidade finalmente começou a fazer um exame de consciência?
Dom Mario: Nestes dois anos, entraram em jogo novos e importantes eventos. Entre eles podemos citar as revoltas ocorridas nos países do norte da África, gerando uma demanda de uma nova gestão pública. Este evento – acontecido de maneira bastante generalizada – foi visto como uma oportunidade para se dar um passo em direção à democracia, ou melhor, em direção a uma maior realização dos direitos sociais, além dos direitos políticos. Estes eventos reafirmaram a atualidade da encíclica social de Bento XVI.

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Dom Mario Toso

Podemos dizer também que o conteúdo da Encíclica foi compreendido. É verdade que no começo houve uma recepção cordial. Mas, a tradução em linguagem política, como por exemplo, no que diz respeito às políticas de trabalho, as questões ambientais, as regulamentações do mundo financeiro internacional, ainda estão por vir. Houve pequenos passos em direção a uma reforma das regras, principalmente na Europa, mas também dos Estados Unidos. Mas são passos que não tocam os mecanismos centrais do sistema financeiro. Levam a retoques bastante marginais. Tanto que o Papa Bento XVI, ao receber os participantes do Seminário Internacional organizado pelo Pontifício Conselho da Justiça e da Paz, por ocasião do 50° aniversário da Mater et magistra, ressaltou que ainda hoje continua a especulação, aliás, dois anos após a crise financeira, a especulação permaneceu de alguma maneira.

Em suma, esta Encíclica, embora recebida com cordialidade e simpatia e reconhecida por muitos como o texto mais significativo elaborado diante da grande crise financeira, podemos dizer que ainda não teve uma séria concretização no plano político.

GP: Se a encíclica tivesse sido publicada antes, o senhor acredita que a crise teria sido evitada?
Dom Mario: Não acho que se a Encíclica tivesse sido publicada antes teria evitado a crise. A crise já estava acontecendo, já tinham aparecido os sinais de um mal estar profundo. Depois eclodiu em 2008. Naquela época, pode-se dizer que o cenário já estava desenhado. As peças desta crise já estavam montadas e começaram a cair num efeito “dominó”. Por isso, não acredito que a publicação antecipada da encíclica teria evitado esta crise. Isso é demonstrado também com o fato que a “Caritas in veritate” não foi adequadamente ouvida nem mesmo depois da explosão da crise. As suas causas continuam existindo em grande parte do planeta. Se realmente tivesse existido uma vontade de reformar profundamente o sistema monetário, isso teria acontecido. Isso não significa ser pessimista, mas realista.

GP: Quais são as exigências de reforma do mundo financeiro para a Igreja?
Dom Mario: Foi indicado na própria Caritas in veritate: para a Igreja, é necessária a reforma do sistema econômico e financeiro internacional, mas isso não pode ser separado da reforma das estruturas políticas, incluindo a ONU. Em vista disso o próprio Pontifício Conselho Justiça e Paz, com base na sua competência essencialmente ético-religiosa, está tentando individualizar sugestões para serem oferecidas no próximo G20 que terá como tema a reforma do sistema monetário internacional. Estão sendo ouvidos estudiosos e especialistas para que possamos analisar melhor os problemas. Em particular, a Caritas in veritate sugere que junto à reforma dos mercados financeiros haja também uma reforma moral dos operadores financeiros, e, ao mesmo tempo, uma mudança de mentalidade por parte dos poupadores. Depois de dois anos, a “Caritas in veritate” continua muito atual. Exige que se pense em reformas para o mundo econômico-financeiro que não sejam somente relativas às regras, mas que envolvam as consciências e a moralidade das pessoas.

GP: O desenvolvimento tecnológico, junto ao desenvolvimento do homem, é um dos grandes temas da “Caritas in veritate”. Podemos dizer que vivemos em uma época em que a humanidade está se condenando?
Dom Mario: De fato, este é um perigo que a humanidade já experimentou de maneira trágica. Nós sabemos os resultados da bomba atômica no século passado. A tecnologia – que em si é uma coisa boa – pode ser utilizada para o bem ou para o mal. Este é um risco permanente. A resposta é sempre a mesma: junto ao progresso tecnológico e científico deve existir contemporaneamente um progresso moral. Quer dizer que as pessoas, os responsáveis das nações, todos aqueles que tenham a disponibilidade de meios potentes, devem também ser capazes de saber usá-los para o bem. Significa que os meios devem ser usados a serviço das pessoas, em favor da realização dos seus direitos. Os potentes meios da técnica e da ciência devem, em definivo, ser usados a serviço da realização do bem comum da família humana. A Igreja não despreza, nem demoniza a tecnologia e a pesquisa. Aliás, a Igreja louva as descobertas da humanidade que são fruto do gênio humano. Mas ao mesmo tempo adverte que as grandes descobertas, as grandes tecnologias modernas podem também ser usadas contra o homem. Por isso, é necessário trabalhar também no plano cultural e ético. É preciso superar o perigo daquela nova ideologia que é chamada tecnocracia. Para fazê-lo, devem ser colocadas em campo grandes iniciativas de educação.

GP: Como a Igreja se empenha neste campo? No congresso pelos cinquenta anos da Mater et Magistra foram apresentadas algumas boas práticas.
Dom Mario: Indicamos várias práticas como institutos de estudo, difusão e experimentação da doutrina social, iniciativas de microcrédito, atividades empresariais tendo como fim não a especulação mas a inovação, dar uma contribuição à vida social. O especulador tem como objetivo de sua atividade a maximização do lucro e sua atividade de empresa é só um meio para o fim que é o lucro. O congresso, então, insistiu sobre a responsabilidade social da empresa em linha com a doutrina social, porque – não se deve esquecer – há tantas formas e teorias a respeito da responsabilidade social das empresas. Às vezes sob a imagem do empenho social, se escondem dentro das empresas relações de exploração, negação da participação dos trabalhadores e emprego anti-ético dos lucros. Entre as boas práticas não se exclui levar em consideração também aquela relativa à produção de energia não poluente, ecológica. Trata-se não somente de boas práticas morais, mas também de boas práticas do ponto de vista da técnica, mas sempre de um ponto de vista humanístico. Fala-se de aplicações que trazem vantagens na cultura e na gestão da vida ordinária, no ter à disposição as energias renováveis, as novas estradas para indicar.

GP:Uma outra urgência – que se encontra também na “Caritas in Veritate” – é aquela da questão ambiental…
Dom Mario: As questões ambientais, em particular aquelas relativas ao uso dos recursos naturais – incluindo o uso da água – tornam-se cada vez mais cruciais. Tão cruciais que se tornam causa de conflito. Concentremo-nos um momento para analisar a questão do uso da água. Dados recentes nos mostram que diariamente milhares de pessoas morrem por beberem água contaminada e não têm possibilidade de acesso a fontes de água potável; outras dezenas de milhares de pessoas sofrem doenças justamente porque não podem dispôr de água potável; e depois, há lugares em que, por razões geográficas e de seca, a água não é sempre disponível. São dados que testemunham mais uma vez – caso fosse ainda necessário – que a água é um bem fundamental para a vida, um bem primário. O bem da água que é um bem público, serve a todos. E portanto deve ser administrado com justo critério, segundo o grande princípio da doutrina social da Igreja que é o princípio do destino universal dos bens. O princípio é simples: seja que a gestão esteja em mãos de uma autoridade política, seja que esteja em mãos de entes privados, a água deve ser administrada como um bem comum. O que significa que, quando uma autoridade política confia a privados a gestão da água ou a privatização do serviço, esta tem de qualquer maneira um dever de controle para que o bem seja distribuído, levando em conta que todos tenham acesso a ele.

GP: Entre as “boas práticas” apresentadas pelo Pontifício Conselho da Justiça e da Paz, havia também a proposta brasileira “Ficha Limpa”. Por quê?
Dom Mario: A Ficha Limpa pode representar um exemplo de como a sociedade civil pode se mobilizar e produzir regras para aqueles que pretendem se candidatar a representantes dos cidadãos no Parlamento e nas instituições públicas. Este projeto, antes de mais nada surgiu de um movimento popular, foi depois acompanhada pelo episcopado brasileiro e foi assumida pelo governo brasileiro e aprovada pelos máximos organismos públicos. Significa que havia necessidade de uma iniciativa do gênero, porque os cidadãos devem ter a garantia que seus representantes sirvam o bem comum com honestidade e legalidade.

GP: Quais são as exigências de justiça que a Igreja Católica vê na América Latina de hoje?
Dom Mario: Trata-se de um grande continente que mostra diversas disparidades. O primeiro problema da América Latina é causado pela desigual distribuição da riqueza: há classes evoluídas e ricas e por outro lado há classes muito pobres, por causa de uma desigual participação na riqueza nacional. O segundo problema se refere à gestão dos recursos. A América Latina tem recursos notáveis, mas estes recursos nem sempre são administrados pelos povos – que são os primeiros donos dos mesmos – mas sim pelas multinacionais. Um outro problema é causado pelo crescimento da ilegalidade na política e na vida social e civil. A deterioração do tecido social e civil é um dos elementos observados com atenção pela Comissão Justiça e Paz do território. E depois existe na América Latina um problema ecológico: inteiras regiões são desmatadas. Aquele grande pulmão da Terra que são as florestas amazônicas é tomado de assalto com graves perigos e riscos para a inteira humanidade. A este propósito é necessário ressaltar como o episcopado brasileiro é realmente corajoso, e não somente pelo “Ficha Limpa”. Os bispos brasileiros tomaram posições corajosas também em relação à construção de novas centrais, criticando-as quando elas eram construídas a custo de graves danos ao meio ambiente e às populações indígenas que ali habitam. Recebendo os bispos do Norte do Brasil, o Pontifício Conselho Justiça e Paz tomou conhecimento que frequentemente a construção das centrais é um ato que – em vez de ser a favor da ecologia, como é visto na Europa – pode ser um ato contra a própria ecologia do planeta, porque a construção de uma central elétrica implica em alagamento de regiões grandes como a Sicília ou o Lácio, removendo inteiras populações indígenas.

 Anna Artymiak

 

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