Crônica: A princesa de Kowdiar Palace
Tudo vale a pena se a alma não é pequena. O verso de Fernando Pessoa ressoa como uma conclusão da lição aprendida na atraente Trivandrum, capital do Kerala, Índia, em uma tarde agradável de domingo, de um mês de setembro.
Dava-se naquele dia o lançamento em inglês do Osservatore Romano, o jornal oficioso do Vaticano. Sua impressão acabava de ser preparada pela gráfica da Ordem Carmelita, instalada em moderno edifício ao lado da igreja, e responsável pela publicação de valiosas e bem apresentadas edições dos clássicos carmelitanos, bem como de outros livros católicos de interesse. O imponente templo dirigido por estes sacerdotes, em estilo inglês, cercado por um aprazível pátio, estava decorado para tal evento e transformado num ventilado auditório.
Como em todo acontecimento deste gênero, as formalidades têm um importante papel, especialmente na Índia, ainda muito zelosa das tradições e do cerimonial. Neste dia esperava-se, além do arcebispo e das autoridades civis, a Princesa de Travancore, descendente dos antigos reis do Kerala.
City Palace, en Bikaner, India/Foto: Pablo Nicolás Taivi |
No palco, ornamentado com cores e cores (ali, para qualquer solenidade, a decoração é feita com tecidos dos mais belos matizes), apresentou-se afinal a princesa. À distância, notava-se apenas uma senhora de apresentação simples, mas fina. Ao iniciar seu discurso em Malayalam, a princesa deparou-se com uma fileira inteira do auditório ocupada por religiosos estrangeiros em missão apostólica no Kerala. Com nobre delicadeza, propôs-se, então, a falar em inglês. O discurso foi dos mais atraentes. Com muita segurança e excelente dicção, a princesa dissertou a respeito dos motivos pelos quais estava ali, esclarecendo que aquele terreno, onde nesse dia se lançava um jornal, o qual, de alguma forma, era uma ressonância da voz do Papa, fora doado à Ordem Carmelita pelos seus ancestrais no século XIX. Mostrava-se ela muito agradada por ver o bom rumo que esta Ordem havia tomado no Kerala, contribuindo para o aprimoramento da cultura católica. E, surpreendentemente, passou a tecer elogios à Igreja Católica, ressaltando, sobretudo, a coerência doutrinária que havia mantido ao longo dos séculos, a obediência religiosa, e a prática dos conselhos evangélicos de pobreza e castidade.
É sabido que na milenar Índia os soberanos são também os sacerdotes da religião hindu. No entanto, demonstrando uma consciência reta, esta princesa declarou-se perplexa com certas publicações que lhe haviam caído nas mãos. Referia-se a livros em que se procurava fazer uma aproximação da Santíssima Trindade com certas divindades hindus. Dizia ela, com voz grave e lamentosa: “Se a religião católica é tão admirável, se tem tantos templos e imagens belos, por que representar Jesus Cristo com as feições de um Krishna?” E aconselhava: “Não façam isso; mantenham-se fieis às suas tradições, sejam coerentes como a Igreja Católica tem sido coerente ao longo de seus vinte séculos.”
Foi muito aplaudida, nada, porém, à maneira ocidental. O indiano é um povo especialmente hábil em transmitir seus sentimentos sem palavras e sem grandes manifestações externas, mas através de pequenos gestos de cabeça, de olhares, de sorrisos. Poder-se-ia dizer que praticam uma etiqueta a la Ancien Régime, mas muda e toda feita de intuições. No início, notava-se no público certo enlevo, mas também alguma reserva respeitosa em relação à soberana. Ao final do discurso, a ufana afetividade era transparente, e os sorrisos e olhares diziam aos estrangeiros: “Ah! Ela é linda, não é? E inteligente, não acham? É nossa! ” Além do mais, a maioria dos que ali estavam era católica, e se sentia profundamente compreendida e estimulada por aquela que, embora sem partilhar da mesma religião, lhes falava no mais profundo de suas raízes étnicas. O relacionamento tão natural e orgânico de princesa e súditos saltava aos olhos naquele momento. Era propriamente a princesa dos intuitivos que, sem referir-se a esta ligação profunda com eles, reforçava os laços da nacionalidade e os unia no alto patamar da contemplação das virtudes da Igreja Católica.
É preciso dizer que as missionárias ali presentes saíram com a alma revigorada. Sentiam-se mais confiantes em sua missão por sentirem as bênçãos de Deus pairando sobre a Índia, à espera de uma pequena abertura por onde possam entrar e iluminar, com luz nova, as maravilhas que este povo engendrou ao longo de seus quatro mil anos de história.
Elizabeth Kiran
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