Artigo: Gregório, o Magno – Parte III
São Paulo (Sexta-feira, 10-09-2010, Gaudium Press)
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O ponto de vista profético
Gregório I subia ao supremo pontificado, numa cidade desmantelada, símbolo de uma civilização em agonia, e numa Igreja convulsionada pelas invasões, por cismas e relaxamentos. Entretanto, a inspirada clarividência que o caracterizaria até o fim, manifestou-se desde o primeiro momento de seu governo. Diante de uma sociedade devastada por crises aparentemente insolúveis, ele apresentou o ideal da vida cristã em toda a sua radical integridade. O imenso vazio deixado pelo desaparecimento do ius civitatis romano só poderia ser preenchido pelo donum caritatis cristão. O objetivo principal do Papa-monge seria, pois, elevar continuamente os espíritos à consideração das realidades sobrenaturais, para então viver os acontecimentos temporais sob uma perspectiva eterna. Esse programa, ele o deixou bem delineado na sua primeira homilia ao povo romano, no segundo domingo do Advento de 590.
Assim procedendo, São Gregório fechava para sempre a última porta que unia a Europa com o mundo antigo, nascido do paganismo, e plantava a semente de uma nova civilização que cresceria sob a luz do Evangelho, regada pelo preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.
São Gregório, o Magno – Catedral de Westminster/ Foto: Lawrence OP |
Pastor das almas
Durante os primeiros anos de seu pontificado, a península italiana atravessava uma das piores fases do conflito lombardo. Assim descreveu São Gregório aqueles dias calamitosos: “Por todos os lados vemos luto e escutamos gemidos. As vilas foram destruídas, os castelos demolidos, os campos tornaram-se desertos, a terra está desolada e já não há quem a cultive; poucos habitantes ainda ocupam as cidades. Estamos contemplando a que extremo foi reduzida Roma, a mesma que outrora parecia ser a senhora do mundo! Muitas vezes quebrantada por dores imensas, pela desolação de seus cidadãos, pelos ataques de seus inimigos e as ruínas frequentes… Nela desapareceu todo o esplendor das glórias terrenas. Desprezemos com toda a alma este mundo quase extinto, e imitemos a conduta dos santos”.
Abandonada quase totalmente pelos bizantinos, a antiga urbe foi duas vezes sitiada pelos ferozes lombardos. Mas em ambas, graças à fortaleza e habilidade do novo Papa, o cerco foi levantado e eles se retiraram.
Empenhado não na destruição, mas na conversão dos invasores, São Gregório assinou uma trégua com eles e procurou por todos os meios atraí-los à verdadeira Fé. Depois de não poucas tentativas, foi possível – graças ao fervor e à influência da princesa Teodolinda, filha do rei católico da Baviera e esposa do caudilho dos lombardos – batizar o filho do casal e preparar assim a futura conversão de todo o povo.
A sede de almas do Sumo Pontífice fez reflorescer para a Igreja todo o ocidente da Europa.
Na Espanha, apoiou eficazmente São Leandro na difícil evangelização dos visigodos arianos. Quando, por fim, o monarca dessa nação abraçou a religião verdadeira, escreveu São Gregório, cheio de júbilo: “Não posso exprimir com palavras a alegria que sinto porque o glorioso rei Recaredo, nosso filho, aderiu à Fé católica com sincera devoção”.
A Gália mereceu especial atenção do Santo Papa. Travou ele boas relações com os soberanos francos, renovou o clero decadente e simoníaco, ordenou a convocação de sínodos e procurou com energia pôr fim às cruéis práticas pagãs que ainda perduravam.
Onde pôde São Gregório manifestar todo seu ardor missionário, foi na conversão da Grã Bretanha. Outrora província do Império, esta ilha tinha sido evangelizada já nos primórdios do Cristianismo. Porém, invadida e dominada pelas tribos dos bárbaros anglos e saxões, a luz da Fé quase se havia apagado. O Pontífice não poupou esforços na conversão desse povo: estabeleceu uma casa de formação em Roma para os jovens anglo-saxões, conseguiu que um dos seus reis contraísse núpcias com uma princesa católica da França e, sobretudo, para lá enviou um grande número de missionários. Destacou-se entre eles Agostinho, que mais tarde seria arcebispo de Cantuária e que, segundo narram as crônicas, batizou mais de 10 mil neófitos no dia de Pentecostes de 597. Sem dúvida, a conversão deste povo constitui o episódio culminante da obra evangelizadora de São Gregório.
Uma luz inextinguível
No ano de 604, Gregório, na paz dos justos, entregava a alma ao Pastor dos pastores.
Apesar de várias moléstias que lhe causavam sofrimentos terríveis, permaneceu firme e vigilante até o fim. A sentinela de Israel partia, mas a luz por ele acendida “brilhará diante dos homens” (Mt 5, 16) até a consumação dos séculos.
Tudo nesse varão providencial fora grande, graças à sua humilde docilidade diante dos desígnios do Espírito Divino que governa a Esposa de Cristo. Quando todo um mundo parecia desabar no caos, soube São Gregório confiar cegamente no triunfo da Santa Igreja e, pelo dom de sabedoria, que o Espírito Santo lhe concedera, discernir novos rumos e metas para o povo de Deus. Pode-se afirmar, sem a menor dúvida, que pelo vastíssimo horizonte descortinado por seu olhar contemplativo passaram todos os problemas do tempo, e não houve obra que ele deixasse de empreender para alargar o Reino de Cristo.
A vida desse Papa admirável constitui um marco fundamental na História da Igreja. Publicou a “Regra Pastoral”, um verdadeiro manual de santidade para os pastores do rebanho do Senhor; reformou a Liturgia, criando o estilo de canto que hoje leva seu nome; e fez do conjunto do seu Pontificado o ponto de partida de uma nova civilização, inteiramente cristã.
No entanto, seu único e ardente desejo era servir incondicionalmente, como simples escravo, a Jesus Cristo, o Rei Eterno. Por isso, enquanto do alto da Cátedra de Pedro regia os destinos do mundo, não quis receber outro título senão o de servus servorum Dei – servo dos servos de Deus. E a Santa Igreja, com maternal gratidão, uniu a grandeza ao nome do escravo: para todo sempre será ele chamado São Gregório, o Magno.
P. Pedro Rafael Morazzani Arráiz, EP
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