15 de novembro de 1889: A única República cujo presidente bradou: “Viva o Imperador!”
A proclamação da República em nosso país foi realmente uma revolução “à la brasileira” …
Redação (15/11/2023 09:13, Gaudium Press) Deitado na confortável cama de seu palácio em Petrópolis, dormia, naquela noite, o Imperador do Brasil.
Figura por certo emblemática: tez clara, segundo o tipo europeu; na cabeça, os cabelos, já completamente embranquecidos, faziam pendant com a abundante barba da mesma cor. Os olhos, extremamente plácidos e melancólicos, eram encimados por sobrancelhas quase contíguas a eles, revelando uma personalidade segura de si, de alguém que havia atingido um apogeu e buscava agora uma velhice tranquila sem grandes preocupações.
De fato, D. Pedro II não tinha do que reclamar: naquele 14 de novembro de 1889, vivia seu 49º ano de reinado. Gozava de fama internacional por sua sabedoria, conhecia profundamente inúmeras línguas – entre as quais o francês, o alemão, o grego, o latim, e… até mesmo o tupi-guarani! – tinha apoiado e estimulado figuras de renome, como Wagner e Pasteur; viajara por inúmeras partes do globo: Escandinávia, Rússia, França, Egito, Jerusalém… Mas, sobretudo, conquistara a benquerença do povo que governava. Aliás, que governava indiretamente, pois nosso país já vivia uma Monarquia representativa, com o Visconde de Ouro Preto à cabeça. D. Pedro já não era mais visto pelos brasileiros em geral somente como um Imperador. Ele era mais propriamente um pai ou, se quiserem, um simpático vovô.
Mas o sono do Imperador não estava completamente livre de perturbações… Nem todos os brasileiros pareciam contentes com a ordem de coisas do Brasil de então: sendo um país juveníssimo, ainda não tinha formado por inteiro sua personalidade, e olhava para seus “irmãos mais velhos”, procurando exemplos a imitar. E, na Europa, sopravam já desde há muito tempo os ventos da República.
Naquele 1889, cerca de 70 jornais republicanos circulavam livremente no Brasil, nos quais penas como a de Rui Barbosa vociferavam críticas ao Império.
Além disso, um ano antes, a princesa Isabel havia dado um excelente pretexto para as reclamações de Rui e de seus partidários, com a abolição da escravatura. Ao contrário do que poderia parecer aos olhos contemporâneos, essa atitude fez minguar profundamente a popularidade do Império: o quase um milhão de escravos que havia no Brasil não tinha sido preparado para o estado de liberdade. De um dia para o outro, já não havia quem fizesse o trabalho pesado nas lavouras nem nos cafezais. A economia estava abalada, os fazendeiros descontentes, e os negros, desamparados.
Mas outras coisas poderiam atrapalhar o sono de D. Pedro. Circulavam alguns rumores de que os militares estavam conspirando contra o governo. Desde a guerra do Paraguai, o poder e a influência do exército vinham crescendo cada vez mais no país, e a figura do Marechal Deodoro da Fonseca – homem bravo, impulsivo, obediente, com fama de herói, belo físico marcial, e cheio de ressentimentos com relação ao gabinete de Ouro Preto – parecia ideal para unir os republicanos sob uma única cabeça. Mas, se o Imperador fosse acordado à noite por um pesadelo como o de uma insurreição de Deodoro, voltaria sem dúvida a dormir. O marechal havia sido muito beneficiado por ele e, portanto, não iria cometer tal ingratidão!
Ademais, D. Pedro, de uma placidez que tocava a bonacheirice, não tinha medo dos opositores. Nesse ponto, aliás era muito semelhante a certo parente seu, morto há quase cem anos: Luís XVI. O que fez a diferença – e que diferença! – entre a sorte de um monarca e outro foi simplesmente o país que cada um governava. D. Pedro, nesse sentido, recebeu sem dúvida a melhor parte!
Seja como for, podemos tomar como certo que o Imperador tinha toda essa situação política em mente quando, na manhã de 15 de novembro, recebeu um telegrama, preocupadíssimo, do Visconde de Ouro Preto.
O que aconteceu enquanto o Imperador dormia…
Ouro Preto havia passado a noite em vigília no Quartel General no Rio, prevenido pelos fortes rumores do levante que se preparava. Junto com ele, à frente das tropas de defesa, estava o ajudante-general do exército, Floriano Peixoto – até então, homem de confiança do presidente do Conselho; em breve, um de seus traidores. Coisas da política…
De sua parte, os conspiradores também não dormiram: nem Deodoro, nem Rui, nem Quintino Bocaiúva, nem alguns outros. Todos se articulavam, se preocupavam, agiam. A manobra que haveria de se dar no dia seguinte era muito arriscada. Muitos deles mal acreditavam no sucesso do próprio golpe.[1]
É provável que, das figuras que ocuparam o primeiro plano no 15 de novembro, D. Pedro II tenha sido o único bem descansado.
Ouro Preto enviara o telegrama justamente para colocar o Imperador a par da situação, enquanto ele mesmo esperava a chegada do Marechal Deodoro com as tropas. Pensava ser um ataque somente contra seu gabinete, e não contra a Monarquia.
Uma República “à brasileira”
Os acontecimentos se precipitaram.
As tropas do Marechal Deodoro cercaram o quartel-general. O monarquista Barão de Ladário, ministro da marinha, indo reunir-se aos seus companheiros de governo, encontrou a praça do quartel cercada pelas forças amotinadas. Ao receber ordem de prisão, atirou no oficial que a transmitira, sendo pelo mesmo ferido com três tiros. Fato digno de nota: a única pessoa ferida naquele dia… nada mais natural: era o Brasil, não a França!
Para a descrição do resto da cena, serve de crônica o relato do Visconde de Ouro Preto:
O enérgico político queria que Floriano fizesse frente aos revoltosos. Foi aí que o ajudante-general revelou por primeira vez sua extraordinária capacidade de dissimulação. Começou Ouro Preto:
— Mas esta artilharia pode ser tomada a baioneta. Na pequena distância em que se acha postada, entre o primeiro e o segundo tiro de uma peça, há tempo para cair sobre a guarnição…
— É impossível! As peças estão assestadas, de modo que qualquer surtida será varrida a metralha…
— Por que deixaram, então, que tomassem tais posições? Ignoravam isso? No Paraguai, os nossos soldados apoderavam-se da artilharia em piores condições…
— Sim, observou Floriano, mas lá tínhamos em frente inimigos, e aqui somos todos brasileiros…
“Se eu pudesse ainda manter ilusões, concluiu Ouro Preto, elas se teriam dissipado ante esta frase” …[2]
Chegou-se ao cúmulo de as tropas julgadas fiéis ao governo confraternizarem com os revoltosos!
Mas o cúmulo não parou por aí: Deodoro invadiu a cavalo o Quartel, junto com as tropas republicanas, e proclamou com todo o garbo: “Vivas à Sua Majestade o Imperador, à Família Imperial e ao exército”.[3]
Esse paradoxo se deve a que, até aquele momento, o Marechal ainda afirmava que não tocaria no Imperador. Mas o curso dos acontecimentos e a pressão de seus partidários acabaram mudando sua postura.
Quanto a D. Pedro, este só foi avisado de tudo o que se passara após ter saído de Petrópolis, ao chegar ao Paço da cidade do Rio. Pensou até na possibilidade de um levante armado para suprimir a revolta, mas não conseguiu resultados: naquele dia, parecia que todos estavam aturdidos, desnorteados. Mesmo os republicanos revelavam muitíssima desorientação!
A confusão chegou a tal ponto que a revolução estagnou. Somente na tarde daquele dia, alguns mais audazes retomaram a iniciativa de finalmente proclamar a República.
Capistrano de Abreu, que não era político, relatou mais tarde os acontecimentos. Segundo ele, os batalhões foram chegando um a um, sem coesão, sem ordem, “como peixe na salga”. Quando todos já estavam postados, proclamou-se a República,[4] com a mesma naturalidade com que se proclamaria que aquele dia passara a ser feriado nacional…
D. Pedro ainda tentou alguns recursos. Na madrugada do 16, enviou uma carta a Deodoro, pedindo seu apoio na constituição de um novo ministério.
O Marechal recebeu a missiva em sua cama. Por certo, o stress de ter deposto do trono um Imperador a quem muito devia acabou abalando sua saúde. Naquele momento, estava sofrendo de um ataque de falta de ar.
Arfando, mandou responder que a República era um fato consumado, e ainda tentou jogar a culpa de tudo no Conde d’Eu, por ter oprimido o exército! Talvez esta ridícula evasiva tenha sido uma mera expressão da consciência de Deodoro, tentando se justificar de sua atitude diante de si mesmo.
D. Pedro não quis reagir. Segundo afirmação sua, “cedendo ao Império das circunstâncias” e para a tranquilidade do povo brasileiro, aceitava a imposição que lhe era feita.[5]
A 17 de novembro, dá-se um rápido embarque da família real para a Europa, encoberto pela noite, desorientando qualquer esperança de ação imediata monarquista. O ex-imperador do Brasil passaria o resto de seus dias – apenas dois anos – dedicando-se àquilo que sempre gostara de fazer: visitar literatos, frequentar teatros e museus. A vida de um particular mais ou menos empobrecido, vivendo comodamente na França não se apresentava como um exílio muito austero…
Quanto ao povo, não pareceu propriamente acompanhar os acontecimentos. Não apoiou o novo regime, não o impugnou. Segundo a pitoresca frase de Aristides Lobo, “a nação recebeu bestificada a República”.
Coisa… de poucos?
Os acontecimentos de 15 de novembro de 1889 são capazes de deixar qualquer contemporâneo propriamente vesgo: uma “Monarquia” – do grego, governo de um – que já não era governada por uma única pessoa, é derrubada por uma República – “coisa do povo”, em latim – sobre a qual a maioria dos brasileiros nada sabia, e cujos propugnadores foram algumas minorias, como o exército e certos fazendeiros.
Em prol da democracia, se depõe um imperador que o povo não odiava, se proclama um presidente que o povo não propriamente amava.
Mais curioso ainda é que saiu a família imperial, subiram os republicanos, e todos os problemas da nação continuaram.
Talvez a completa apatia dos brasileiros de então seja fruto de uma certa desilusão com seus governantes: na prática, teria mudado alguma coisa? Ou trocaram somente as figuras da dianteira e, no fundo, nos bastidores, tudo continuou como dantes? Perguntas como estas não estimulariam de todo alguma reação.
Enfim, política jamais foi algo fácil de entender, sobretudo no Brasil…
Por Oto Pereira
[1]BELLO, José Maria. História da República. 4. ed. São Paulo: Nacional, 1959, p. 36
[2] Ibid. p. 37.
[3] BESOUCHET, Lídia. Exílio e Morte do Imperador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 366.
[4] Cf. Ibid., p. 369-370.
[5] Cf. LOURDES, Maria de; JANOTTI, Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 15.
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