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“Kintsugi” e a arte do perdão divino

Em nada transparece tão claramente a onipotência de Deus quanto no ato de perdoar. Eis o mistério do amor de um Ser infinito e eterno que, ao escutar o gemido de um coração contrito, realiza o “impossível”.

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Redação (07/05/2024 19:32, Gaudium Press) Estamos acostumados ao descartável, ao prático e ao efêmero; além disso, vivemos numa sociedade que, em consequência, é cada vez mais inimiga do pulcro, do elevado e do perene. Desse modo, talvez nos seja difícil compreender uma forma de arte oriental, o kintsugi, que visa restaurar objetos despedaçados de modo a sublimá-los, afirmando assim que dos cacos decorrentes de um desastre supostamente irreparável pode surgir algo superior.

A história do kintsugi – do japonês, marcenaria em ouro – remonta ao final do século XV, quando o xogum Ashikaga Yoshimasa enviou à China duas de suas chávenas preferidas para serem reparadas. As peças de porcelana voltaram consertadas, mas com alguns grampos de metal que lhes davam aparência rústica e desagradável. Descontente, decidiu ele encomendar a empresa a artesãos japoneses.

Tão magníficos foram os resultados obtidos por estes artistas que, segundo se narra, muitos aristocratas orientais chegaram a quebrar propositalmente preciosas peças de porcelana para serem reparadas por eles. Nascia assim uma técnica de restaurar cerâmicas que se converteria em arte e atravessaria os séculos.

Consiste essa técnica em unir as peças partidas com laca urushi – proveniente da resina da árvore de mesmo nome – polvilhada com pó de ouro, de prata ou de platina. Para aplicar a laca, usa-se um pincel de kebo ou makizutsu. No final do processo a peça terá sua forma original, mas estará repleta de cicatrizes brilhantes.

Refletindo sobre essa tradição, notamos que parece existir uma série de realidades metafísicas que a certas nações pagãs foi dado intuir com maior acuidade que às do Ocidente cristão, com vistas, sem dúvida, a prepará-las para em determinado momento acolher a verdade revelada. É de fato admirável que houvesse no Extremo Oriente um povo suficientemente contemplativo e transcendente, dotado de um preclaro dom de metáforas, para perceber nessa forma de restauração um reflexo do que sucede com o homem na ordem moral, e fundar uma escola artesanal que perdura até os nossos dias.

Cicatrizes de um guerreiro

Reluzem no kintsugi vários princípios superiores. Especialmente cintilante é o da beleza das cicatrizes, algo intuitivo para uma sociedade militarizada e dotada de sumo senso de honra, que durante séculos teve como mais alto modelo a figura arquetípica do samurai, guerreiro destemido e disposto a tudo sacrificar por seu senhor.

O autêntico combatente nunca se envergonha das marcas da guerra. O que para uma estética superficial pode ser repulsivo adquire uma elevada pulcritude, de dimensão transcendente, quando analisado sob a perspectiva do valor metafísico do sofrimento em prol de um sublime ideal.

Contudo, há representado no kintsugi algo ainda mais elevado, que toca no Altíssimo.

O Divino Artesão

Comumente se representa a Deus como um artesão que modela um vaso de argila, imagem de cada ser humano. Sendo absoluta a destreza do Artista, o bom resultado da obra depende, neste caso, da docilidade do barro em deixar-se moldar.

Podemos imaginar esse Divino Artesão manuseando a mais vil matéria-prima e produzindo uma requintada peça de porcelana, ornada com belas figuras desenhadas por hábeis pinceladas de esmaltes paradisíacos. Trata-se de um jarro inigualável, uma obra de arte!

Suponhamos agora que esse magnífico vaso tenha vontade própria e decida lançar-se ao solo, estilhaçando-se em mil pedaços… Pois bem, é exatamente isso que faz o homem, trabalhado pela graça desde o dia de seu Batismo, quando resolve destruir a obra do Criador em sua alma e – por um capricho ou para satisfazer suas paixões – abraça o pecado.

Como reconstituir um vaso reduzido a cacos, a ponto de confundir-se com o pó?

Onipotência do perdão divino

Em nada transparece tão claramente a onipotência de Deus quanto no ato de perdoar. Eis o mistério do amor de um Ser infinito e eterno que, ao escutar o gemido de um coração contrito que se humilha e pede perdão, realiza o “impossível”.

Infinitamente mais precioso que o ouro, o Sangue do Redentor atua como uma sacrossanta “resina” para unir os fragmentos do pobre vaso e não só o restaura, mas lhe confere um novo brilho.

A alma restaurada pelo perdão divino conserva cicatrizes, mas estas serão sua glória e alegria por toda a eternidade, porque refulgirão com a inconfundível luz de quem muito amou porque muito lhe foi perdoado (cf. Lc 7, 47).

É, pois, um absurdo desanimar e perder a paz quando nos sentimos miseráveis, ainda que por infelicidade tenhamos cometido um pecado mortal. Tão magnífica resulta a obra operada por Deus ao derramar seu perdão que, como a dos artesãos japoneses, ela supera o estado original. Daí se entende o comentário tantas vezes repetido por Mons. João Scognamiglio Clá Dias em suas pregações: se por absurdo pudéssemos pecar sem ofender a Deus, como desejaríamos fazê-lo só para receber seu perdão!

Essa verdade deve nos encher de ânimo invencível, sobretudo ao considerar que, quando se trata de restaurar por completo uma alma, Deus confia tal obra à divina Artesã, Maria Santíssima. Amparo e refúgio dos pecadores, Ela aplica o ouro de sua misericórdia mesmo sobre aqueles que sequer sabem pedir perdão e, para isso, impõe apenas uma condição: que se abandonem em suas mãos maternais.

Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 244, abril 2022. Por Santiago Vieto Rodríguez.

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