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A doutrina cristã pode evoluir em uma direção contrária no decorrer do tempo?

Análise das recentes declarações do Cardeal Fernández.

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Redação (26/04/2024 11:53, Gaudium Press) Diversos comentaristas destacaram a importância, para não dizer o perigo, de algumas das declarações feitas pelo Cardeal Victor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, em 8 de abril passado, durante a apresentação da declaração Dignitas infinita sobre a dignidade humana.

O Cardeal Fernández apontou então a suposta contradição entre a Bula Dum diversas de 16 de junho de 1452, dirigida pelo Papa Nicolau V ao rei Afonso V de Portugal, autorizando-o a submeter à “escravidão perpétua” os pagãos e sarracenos encontrados pelos portugueses na costa africana. Este posicionamento do Papa seria diametralmente oposto à condenação da escravidão pela Igreja, tal como ratificada pelo Papa Paulo III ao Arcebispo de Toledo numa bula de 29 de maio de 1537, na qual foi condenada, sob pena de excomunhão, a sujeição dos indígenas americanos à escravidão pelos colonos espanhóis.

A este respeito, o Cardeal Fernández declarou:

“Vemos como, apenas oitenta anos depois, numa época em que as mudanças eram tão lentas, um Papa praticamente contradiz o que seu antecessor disse sobre uma questão de tamanha importância”. E acrescenta que este seria um exemplo de “como a compreensão da verdade pela Igreja evolui ao longo do tempo, e que nem sempre progride na mesma direção, mantendo-se fixa e totalmente homogênea com os documentos anteriores, pelo menos no que diz respeito ao mesmo ponto concreto. Pelo contrário, hoje parece a alguns que o Papa Francisco não pode dizer nada diferente do que foi dito antes, como se o Magistério tivesse sido definitivamente encerrado pelos papas anteriores”.

Enquanto as declarações do cardeal foram consideradas como uma erosão, ou até mesmo uma explosão, da continuidade magisterial que a Igreja sempre proclamou – continuidade que constituiu a identidade católica ao longo de 20 séculos de existência – (o cardeal Fernández estaria minando o Magistério em sua fundação, levantando dúvidas sobre o respeito e a autoridade de um ensinamento atual que amanhã pode ser substituído pelo seu oposto), alguns especialistas analisaram minuciosamente as declarações do cardeal argentino a fim de esclarecer e apontar imprecisões, como o delineado por Luisella Scrosati em La Nuova Bussola Quotidiana:

Fatos Diversos

“A bula de Nicolau V, em primeiro lugar, não foi estritamente um ato de Magistério, mas uma comunicação do Papa a Afonso V. E, portanto, do ponto de vista magisterial uma andorinha não faz verão: não basta um Papa dizer alguma coisa para que seja considerado Magistério. Ademais, essa comunicação – que se enquadra nas chamadas “bulas de doação” – não autorizava de forma alguma a escravidão em geral, mas apenas a servidão de guerra, como confirmado por outros papas depois dele. De fato, se olharmos para a data dessas bulas – desde 1452 do Dum diversas até 1514 do Præcelsæ devotionis de Leão X – é fácil entender que o contexto era de confronto com o poder otomano; confrontos que levaram a uma situação muito perigosa para a Cristandade. Tanto que, logo no ano seguinte à bula de Nicolau V, ocorreu a capitulação de Constantinopla. Depois vieram os confrontos e invasões em Belgrado, Albânia, Friuli, Otranto, Rodes, Hungria, o cerco de Viena, etc. Em suma, estamos em um contexto claramente bélico, dentro desse embate de época entre o cristianismo e o poder islâmico otomano, com os otomanos avançando por todos os lados e certamente não para escrever poesia.”

“Portanto”, continua Scrosati, “o que foi concedido não foi o que hoje chamamos de escravidão, ou seja, escravidão de tráfico e muito menos escravidão sexual, que a Igreja sempre condenou, mas servidão de guerra, que corresponde aos prisioneiros de guerra na atualidade. Em essência, Nicolau V autorizou o rei a fazer prisioneiros de guerra onde quer que encontrasse os otomanos ou populações que apoiassem estes últimos. Paulo III, no entanto, condenou a escravidão em sentido estrito, ou seja, o tráfico de escravos praticado contra os indígenas que os espanhóis encontravam durante sua “conquista” da América Latina. Assim, tendo em mente o fato de que um papa, quando não pretende definir algo, não está isento de cometer erros (portanto, é possível encontrar papas que autorizaram ou apoiaram erros), neste caso não há contradição entre os dois pontífices, porque a palavra ‘escravidão’, nos dois contextos, faz referência a duas realidades muito distintas.

Dessa forma, Scrosati considera que o exemplo utilizado pelo Cardeal Fernández para justificar uma certa evolução contraditória da doutrina é “errôneo e enganoso: um equívoco, que não leva em conta um fato óbvio, a saber, que quando o mesmo termo é usado com dois significados diferentes, é possível que em um caso seja aprovado e no outro, condenado”.

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