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A justiça num mundo quase perfeito

Ao longo da vida, aprendemos que há coisas que não devemos falar, outras sequer pensar. Porém, de tanto calar o óbvio, o absurdo ganha espaço até se tornar normal, e, de normal, passa a necessário e correto. Em alguns momentos, é preciso raciocinar de forma diferente e arriscar falar o que não agrada.

Foto: CHUTTERSNAP/ Unsplash

Foto: CHUTTERSNAP/ Unsplash

Redação (18/12/2023 15:09, Gaudium Press) A mulher estranhou quando bateram à porta,  pois não esperava ninguém e não era normal receber visita tão cedo, nem mesmo do carteiro, pois ainda não eram sete da manhã. Colocou o roupão sobre o pijama e foi atender.

Na porta, uma simpática senhora de meia-idade se apresentou como assistente social, acompanhada de um rapaz e duas moças sorridentes. O rapaz carregava uma cesta, e uma das moças, um ramalhete de flores. Diante da surpresa da dona da casa, que não entendeu o que estava acontecendo, a líder do grupo perguntou se podiam entrar.

Já dentro da casa, explicou que vieram para prestar assistência a ela e ao seu marido e também para preparar o café da manhã para eles. O rapaz sorriu e mostrou a cesta, com alimentos variados e de boa qualidade.

A assistente social explicou também que as duas moças estavam encarregadas de fazer a arrumação da casa, uma boa faxina para colocar tudo em ordem. Ainda sem entender aquela situação inusitada, a senhora foi acordar o marido que, por estar deprimido, não estava mais conseguindo levantar cedo, como sempre fora o seu habitual.

– Acorda, Antônio, tem umas pessoas aí. Disseram que vieram preparar o nosso café da manhã e fazer faxina na casa.

– Mas, para que isso? A gente não tem dinheiro para pagar essas coisas.

– Eu falei para a mulher, mas ela disse que é tudo por conta do governo.

O motivo da visita

Enquanto o casal toma o farto desjejum que lhes é servido, a assistente social lê uma mensagem de ânimo para eles, com um belo fundo musical, e o rapaz da cesta os serve. Vou explicar quem são essas pessoas.

O Sr. Antônio e a Dona Mercedes tinham um único filho, Robson, de 17 anos, um rapaz exemplar, estudioso e trabalhador. Fez o Ensino Médio no período noturno e, de dia, trabalhava como ajudante em uma farmácia, no bairro em que moravam. Família honrada e temente a Deus, educaram muito bem o único filho, do qual tinham bastante orgulho. Não era para menos! Mesmo trabalhando desde tão jovem e estudando à noite, o rapaz tivera excelente desempenho no ENEM e conseguira entrar em uma faculdade pública, para cursar Biomedicina.

Duas semanas antes, quando voltava para casa após ter ido a uma lanchonete com amigos, o jovem foi abordado por dois rapazes em uma moto. Um assalto. Tudo muito rápido. Levaram sua carteira e seu celular. De acordo com testemunhas, não houve reação, mesmo assim um dos ocupantes da moto disparou três vezes. A vida de Robson também foi levada.

Um centro de recuperação para familiares de vítimas da violência

Os pais ficaram dilacerados. Como entender uma coisa dessas? Como aceitar isso? Felizmente, Antônio e Mercedes vivem num mundo quase perfeito e, apesar da dor terrível por perderem o seu único filho de forma tão brutal, o governo tomou providências que mudariam a vida deles.

A equipe voltou mais duas vezes naquela semana e, na semana seguinte, vieram com uma novidade. O governo decidiu que eles mereciam ir para um local mais apropriado à sua recuperação: uma espécie de spa, onde não teriam que se preocupar com nada, além de se recuperarem do trauma sofrido.

Seu Antônio não precisaria mais trabalhar, mas continuaria recebendo o seu salário normalmente. E Dona Mercedes, que era dona de casa, não precisaria mais se preocupar com as tarefas domésticas. No local onde seriam levados para viver os próximos anos de suas vidas, ela teria funcionárias à sua disposição, que lavariam, passariam, cozinhariam e manteriam a casa em ordem. Neste local, uma colônia de reabilitação para familiares de vítimas de atos violentos, teriam uma linda casinha, com flores na janela e um cachorro adestrado para lhes fazer companhia.

Frequentariam oficinas de artesanato, jardinagem, marcenaria, aulas de vários idiomas à sua escolha, exercícios físicos três vezes por semana, massagem terapêutica e atendimento psicológico individual e em grupo, além de vários passeios interessantes. Tudo por conta do governo.

Orfandade bem assistida

Outro caso é o dos menores Tales, Mariana e Douglas, de 9, 7 e 5 anos, filhos do segurança Jesualdo Serafim, morto num assalto à agência bancária onde trabalhava como vigilante. Jesualdo foi feito refém e usado como escudo humano, morreu na troca de tiros entre os bandidos e a polícia.

Logo após o assassinato, os filhos menores foram retirados da comunidade onde moravam, juntamente com a mãe, e colocados em um bom apartamento, numa área nobre da cidade. Os três foram transferidos da escola pública para colégios particulares e terão assegurado o pagamento de seus estudos pelo governo até terminarem a faculdade, além de receberem uma polpuda mesada que permite à mãe cuidar deles sem precisar trabalhar, pagar vários cursos extracurriculares para as crianças e uma pessoa para auxiliá-las nas tarefas domésticas.

A família ganhou também um carro, mas, como Dona Márcia tem medo de dirigir, o governo disponibilizou um motorista, que leva e busca as crianças na escola todos os dias e acompanha dona Márcia a todos os locais que ela precisa ir.

Como seria num mundo perfeito?

Esse tratamento e essas compensações, certamente, não apagarão a dor provocada pela violência que tirou a vida do jovem Robson e do trabalhador e pai de família Jesualdo, mas, pelo menos, alivia as dificuldades dessas famílias e trata das feridas provocadas por essas perdas. Nos dois casos, os assassinos foram presos e condenados a 30 anos de reclusão em regime fechado, sem direito a saídas e indultos.

É assim que funciona a justiça num mundo quase perfeito. Num mundo perfeito, essas famílias não passariam por isso, não sofreriam essas perdas, porque não haveria roubos e violência.

Escrevo este texto dentro de um carro, voltando de uma atividade cultural em um centro de reabilitação para menores infratores. Tirando os pesados portões de ferro e as grades que separam todos os ambientes, o interior é muito bonito, com hortas, jardins, amplo refeitório, onde são servidas 5 refeições diárias, preparadas sob a supervisão de uma nutricionista.

No dia da visita, que demorou a ter a data acertada devido à agenda de atividades dos menores, alguns não puderam participar porque estavam em outra cidade, num campeonato de basquete. Após a roda de leitura e conversa entre os convidados e os jovens, foi servido um lanche farto e saboroso.

Em seguida, nos foram mostradas todas as áreas da casa: sala de jogos, um miniginásio de esportes, sala de vídeo, biblioteca, salas de estudos, sala de informática. Os jovens participam também de cursos profissionalizantes, dentro e fora da unidade, têm aulas de música, aulas de teatro e várias atividades artísticas e esportivas. Tudo bancado pelo governo.

Tão jovens e já privados da liberdade

Exceto os quartos, cujas portas são trancadas à noite, a circulação em todos os ambientes é livre e há um aparato voltado para o bem-estar dos rapazes que ali residem. Jovens com algumas características em comum, como não olhar para o interlocutor e pronunciar “senhor” a cada três palavras que falam.

Não posso deixar de admitir que aquela situação foi incômoda para mim. E mais incômodo ainda foi ouvir de uma das senhoras que participou da atividade, com um tom de dó: “Coitadinhos, tão jovens e já privados da liberdade!”

Independentemente das questões sociais e dos motivos alegados para a prática dos crimes, ali não há inocentes. São criminosos abaixo da idade legal para a prisão. Ali convivem ladrões, traficantes, homicidas; aparentemente “arrependidos e recuperados”. Na prática, em sua maioria, reincidentes: cumprem o período determinado pela justiça, saem, cometem novos crimes e voltam. Qualquer deles pode ter matado o filho do seu Antônio e da Dona Mercedes para roubar uma carteira sem dinheiro e um celular. Qualquer deles pode ter tirado a vida de um cidadão de bem que trabalhava honestamente para sustentar seus filhos.

Sei que essas são palavras que podem chocar, mas são palavras desprovidas de hipocrisia, e as escrevo apenas porque preferia viver num mundo em que as vítimas e suas famílias fossem tratadas com respeito e dignidade, já que está muito distante um mundo onde a injustiça e a violência sequer existam.

 Por Afonso Pessoa

 

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