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Jejuns e mortificações

Redação – (Segunda-feira, 21/03/2016, Gaudium Press) – As grandes mortificações de alguns Santos não são uma espécie de suicídio indireto? A revista francesa “L’Ami du Clergé” responde a esta questão E aqui apresentamos aos leitores:

I – A DOUTRINA DE SÃO TOMÁS

Sem tratar diretamente desta questão, São Tomás lembra os princípios úteis à sua solução. Eis alguns textos:

“A maceração de seu próprio corpo, pelas vigílias e pelos jejuns, não é agradável a Deus senão na medida em que é um ato de virtude. Isso ocorre quando a pessoa a faz com o discernimento necessário para pôr um freio à concupiscência e sem sobrecarregar demais a natureza” (Suma Teológica, II-II, q. 78, a. 2, ad 3).

Guiar-se pela reta razão

O que se deve entender por “ato de virtude”? A virtude moral mantém-se num justo meio; aqui, o justo meio não é questão de quantidade, mas avaliação da reta razão:

“É a razão que julga quando, por algum motivo particular, o homem deve menos alimento do que normalmente precisaria. Assim, isso pode ser necessário para evitar uma enfermidade, ou para executar com mais facilidade certos exercícios corporais. A reta razão ordena essas privações de um modo muito mais cogente para evitar males e para adquirir bens espirituais. Entretanto, ela não reduz os alimentos a ponto de impedir a conservação da vida; pois, como diz São Jerônimo, ‘pouco importa se tu lhe dás a morte num tempo breve ou num tempo mais prolongado: quem aflige em demasia seu corpo, privando-o desmedidamente de alimento ou de sono, esse oferece um holocausto tirado do roubo’. Da mesma forma, a reta razão não permite ao homem privar-se de nutrição a ponto de tornar- se incapaz de cumprir seu dever. E São Jerônimo diz ainda a este respeito: ‘O homem dotado de razão decai de sua dignidade quando prefere o jejum à caridade, as vigílias à integridade dos sentidos'” (id., q. 147, a.1, ad 2).

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Penitência de São Jerônimo, por Sano di Pietro (museu do Louvre, Paris)

Limites do necessário

No comentário sobre o Mestre das Sentenças, São Tomás havia já exposto, com mais detalhes, uma doutrina idêntica; aqui mesmo, ele levanta uma objeção quase nos mesmos termos usados por nosso consulente, e dá a solução:

“O jejum consiste em abster-se, não somente do que é supérfluo na alimentação, pois esta abstinência pertence à prática obrigatória da virtude, mas também daquilo que é necessário à vida. Ora, quem se priva de um alimento necessário fornece a si mesmo uma ocasião de morte… Portanto, já que a ninguém é permitido suicidar-se, a ninguém é permitido jejuar…” (L. IV, dist. XV, q. 3, a. 1, qu. 2, obj. 3).

“Deve-se entender de duas maneiras aquilo que é necessário, em matéria de nutrição. Em primeiro lugar, não é permitido privar-se do que é necessário à conservação da vida, tanto quanto não é permitido suicidar-se; mas este ‘necessário’ é algo de módico, pois a natureza satisfaz-se com pouca coisa. Em segundo lugar, diz-se necessário em relação à boa saúde do corpo, e esta boa saúde pode também ser considerada sob dois aspectos.

“Primeiro, a boa saúde suficiente para cumprir os deveres de estado ou sociais; e deste necessário não é permitido privar-se, porque seria oferecer a Deus, por este jejum, um verdadeiro roubo feito àquilo que se deve à virtude, pois por um tal jejum a pessoa seria impedida de realizar as obras às quais está obrigada… Se a abstinência praticada devesse impedir alguém de fazer obras maiS úteis, mas não absolutamente obrigatórias, o jejum se tornaria indiscreto, mas não ilícito…

“Segundo, pode ser questão de uma saúde que manifesta uma perfeita disposição do corpo: mas então, porque a carne assim dotada de uma saúde tão florescente é mais difícil de ser submetida ao espírito, o ‘necessário’ requerido para manter uma tal saúde pode ser licitamente procurado, mas suprimi-lo pode também ser uma ação digna de louvor. Com efeito, essa supressão não apressa muito a hora da morte: o corpo humano não encontra mais ocasiões de ruína numa saúde forte demais do que numa mais débil? O próprio Galien diz que a abstinência é um excelente remédio. Aqueles que praticam a abstinência costumam viver mais tempo; assim, privar-se do ‘necessário’ à saúde florescente não é dar-se a morte, uma vez que tal privação pode também prolongar a vida, mais do que diminuí- la” (Sol. II, ad 3).

O amor a Deus como fim

Por fim, encontramos em outra passagem um excelente resumo de toda a questão:

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São Tomás de Aquino (catedral de
Notre-Dame, Paris)

“Deve-se considerar – diz ainda São Tomás – que na vida espiritual o amor a Deus é o fim ao qual é preciso visar. Os jejuns, as vigílias, as outras mortificações corporais não podem ser procuradas como fim, não passam de meios necessários para se conseguir dominar a carne. E, portanto, seu uso deve ser regulado pela razão. É preciso, de uma parte, refrear a concupiscência e, de outra, não extenuar a natureza. Se, pois, alguém, por jejuns, vigílias e outras mortificações excessivas, chegasse a arruinar sua sa úde a ponto de ficar na impossibilidade de cumprir seus deveres, esse pecaria. Pecariam, pois, mortificando-se em demasia, o professor que não pudesse mais ensinar, o pregador que se tornasse incapaz de pregar, o cantor que perdesse a voz; pecaria também o marido que se tornasse impotente para cumprir com sua esposa o dever conjugal” (Quodl. V, q. IX, a. 8).

II – O PORQUÊ DA MORTIFICAÇÃO

Razões graves e superiores

Por certo, nunca é permitido matar-se diretamente e por sua própria autoridade. Para executar uma ação ou omissão da qual se prevê, como sequência certa ou provável, sua própria morte, é necessária uma causa grave proporcional. Quanto às causas que são suficientes para permitir abreviar indiretamente sua própria vida, pode-se remetê-las à necessidade moral e ao exercício da virtude (Noldin-Schimitt, De Praeceptis, nº 327). Quem, pois, censurará os operários metalúrgicos ou os vidreiros que trabalham todo dia junto ao fogo, por abreviar certamente sua vida nesse penoso trabalho? Como se poderia reprovar os Santos por talvez abreviarem sua vida pela prática de mortificações consideráveis, cujo objetivo é bem superior às necessidades materiais da vida? Contanto que, ademais, essas mortificações não impeçam aos Santos cumprir o essencial de suas obrigações privadas e sociais, não se pode senão admirar seu zelo pela prática da penitência. Com efeito, razões graves – bem superiores em valor à razão de necessidade material ou moral que se pode invocar a favor dos metalúrgicos e vidreiros – incitam os Santos a praticar uma vida mortificada e digna d’Aquele que nos amou até a morte e morte de Cruz.

Associar-se à obra reparadora de Cristo

No tocante aos Santos, seria pouco considerar aqui como necessidades cogentes a obrigação de refrear as más paixões, de satisfazer a Deus pelos pecados passados, ainda que essas razões possam existir e se apresentar, mesmo para aqueles que são tidos como já elevados em perfeição. Há melhor: Jesus Cristo, com efeito, “quis associar-nos ao próprio ato da reparação e fazer-nos participar do mérito e da glória daí decorrentes. Ele nos comunicou, no dom da graça santificante, a dignidade de sua natureza divina, a fim de que nossa imolação, nossos sofrimentos, unidos aos seus, possam deles ter a eficácia. Depois, Ele estabeleceu entre nós e os outros homens, nossos irmãos, uma solidariedade análoga à existente entre Ele e nós, de maneira que possamos oferecer à justiça divina uma reparação proporcionada à ofensa, pelos pecados de nossos irmãos como pelos nossos. Quis Ele nos confiar uma parte de sua grande obra de expiação e de reparação, de modo que seu Apóstolo inspirado pôde dizer: ‘Completo em minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo, por seu corpo que é a Igreja'” (Col 1, 24).

“Eis a ideia cristã do sofrimento aceito voluntariamente, abraçado por amor a Deus: é a parte ativa assumida por nós na obra de reparação de Jesus Cristo. Compreendemos agora o que pode haver de grandeza no sofrimento? Compreendemos que os Santos – tendo, pela abundância da luz da Fé que lhes foi dada, a compreensão desta grandeza – tenham abraçado a Cruz com todo o vigor de sua alma, tenham tido sede de padecimentos, os tenham infligido a si mesmos com todo o rigor que lhes permitia a lei de sua própria conservação, imposta por Deus, os tenham implorado a Deus com as mais vivas instâncias, e que, postos em presença das provações mais de molde a fazer tremer a natureza e que a Providência divina lhes preparava, eles tenham exclamado: ‘Mais ainda, Senhor, mais ainda’?… Compreendemos o sentido exato e profundo do dito, que escandaliza com frequência as almas fracas na Fé, de que nas épocas de grandes crimes Deus precisa de vítimas puras, inocentes, santas, para serem imoladas à sua justiça, e que são, sobretudo, elas que podem Lhe oferecer, por sua imolação voluntária, uma verdadeira satisfação, uma completa reparação de sua glória? Compreendemos, enfim, que Deus concede à alma uma verdadeira honra, um verdadeiro favor, quando Ele a chama a viver mais perto de Jesus Cristo na Cruz?

“Compreendido assim o sofrimento sob seu verdadeiro ponto de vista, é fácil ver as vantagens inapreciáveis que ele nos oferece quando, na medida de nossas forças, nós o aceitamos com as convenientes disposições de conformidade com os desígnios da Providência divina” (Ch. de Smedt, S.J., Notre vie surnaturelle, t. II, pp. 246-248).

III – A DUPLA PREOCUPAÇÃO DOS SANTOS

Os Santos têm em vista essas “vantagens inapreciáveis”, quando praticam as grandes mortificações que nos espantam. Mas, como escreve o Pe. de Smedt, eles se infligem os sofrimentos “com todo o rigor que lhes permite a lei de sua própria conservação, imposta por Deus”. Poderíamos acrescentar: “Com o rigor que lhes permite a lei do cumprimento de seus deveres de estado”.

Encontramos, pois, nos Santos uma dupla preocupação a respeito das mortificações: de um lado, justificá-las por considerações de ordem moral e sobrenatural; de outro, recordar os justos limites nos quais é necessário contê- las.

Justificar as mortificações

Assim, São João Batista prepara-se para sua missão de Precursor, praticando ele próprio a penitência que pregará à s multidões. São Simão Stock também se mortifica como providência prévia às suas pregações. São Sulpício jejua para obter de Deus a cura do Rei Clotário II. São João Maria Vianney entendia converter as almas por suas próprias mortificações. Ouvindo um padre queixar-se de não ter conseguido mudar o coração de seus paroquianos, o Santo respondeu-lhe: “Vós rezastes, chorastes, gemestes, fizestes vigílias… Dormistes sobre a terra dura e vos flagelastes? Se não chegastes a este ponto, não fizestes tudo” (Petits Bollandistes, t. XV, p. 520).

Mantê-las nos justos limites

De outro lado, porém, ouvimos os mais austeros Santos proclamar a lei de um limite necessário a impor às mortificações, para permanecer nas vias da virtude.

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Crucifixo – Serra da Piedade
– Minas Gerais – Brasil

Santa Catarina de Bolonha, Clarissa, “não queria que (suas irmãs) tratassem seu corpo com desmedido rigor, nem que qualquer uma, sem permissão, praticasse alguma penitência particular. Ela considerava isso como ciladas do inimigo que, quando desespera de conseguir desencorajar no exercício da virtude uma religiosa cheia de zelo, sugere-lhe penitências inconsideradas, as quais a expõem a cair doente e tornar-se incapaz de cumprir suas obrigações ordinárias. Ao mesmo tempo, porém, ela lhes inculcava o princípio de que é necessário sofrer os desgostos e amarguras, com vistas à recompensa eterna” (T. III, p. 327).

Mais sucintamente, São Pémen ou Pasteur (27 de agosto), abade de Sceté, dizia: “Não se trata de matar o corpo, mas sim as paixões” (T. X, p. 539).

Encerremos essas citações com um ensinamento de São Francisco de Sales: “Deve-se tratar o corpo como um filho: corrigi-lo sem prostrá-lo” (Petits Bollandistes, t. XIV, pp. 548-549).

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Assim se verifica confirmada nas máximas dos próprios Santos a doutrina ensinada por São Tomás de Aquino. Vê-se que não se trata de suicídio indireto, mas sim de – por razões superiores e particularmente graves – mortificação considerável capaz de, por certo, acarretar uma diminuição, até notável, do vigor do corpo, respeitando sempre suficientemente a saúde para permitir o cumprimento dos deveres de estado. L’Ami du clergé, 1928, Doutrina, pp. 114-116.

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SANTO AGOSTINHO ENSINA
RIQUEZA E POBREZA

Meus irmãos, quando digo que Deus não inclina os seus ouvidos para o rico, não deduzais que Ele não atende os que possuem ouro e prata, criados e patrimônios. Se eles nasceram nessas condições e ocupam esse lugar na sociedade, que se lembrem desta palavra do apóstolo Paulo: “Recomendo aos ricos deste mundo que não sejam orgulhosos” (1 Tim. 6, 17).

Aqueles que não são orgulhosos, são pobres diante de Deus, o qual inclina os seus ouvidos para os pobres e os necessitados (Sl 85, 1). Com efeito, eles sabem que a sua esperança não está no ouro ou na prata, nem nas coisas das quais gozam por algum tempo. Basta que as riquezas não os levem à perdição; se elas nada podem para os salvar, que ao menos não lhes sirvam de obstáculo. Quando um homem despreza tudo quanto alimenta o seu orgulho, então é um pobre de Deus; e Deus inclina-se para ele, porque conhece o tormento do seu coração.

Sem dúvida, irmãos, o pobre Lázaro coberto de chagas, que permanecia à porta do rico, foi levado pelos Anjos ao seio de Abraão; isto lemos, nisto acreditamos. Quanto ao rico, que se vestia de púrpura e de linho fino e se banqueteava cada dia esplendidamente, foi precipitado nos tormentos do inferno. Terá sido, realmente, o mérito da sua indigência que valeu ao pobre ter sido levado pelos Anjos? E o rico terá sido entregue aos tormentos do inferno por causa da sua opulência? É preciso reconhecer que, ao pobre, foi a humildade que o dignificou e, ao rico, foi o orgulho que o condenou. (Santo Agostinho, Narrações, Salmo 85, §3 ) –

(in Revista Arautos do Evangelho, n. 35, p. 32 à 35).

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