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Uma entrega cheia de enlevo

Múltiplos e apaixonantes exemplos de chamados e conversões encontramos na História da Igreja. Porém, não foi sem razão que uma vocação tão grandiosa como a de ser Apóstolo recebesse a honra de ser designada pelo próprio Nosso Senhor Jesus Cristo.

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Os apóstolos reunidos
com Nosso Senhor

Veremos, pois, como se deu o chamado de São Mateus, o cobrador de impostos, e que estado de espírito, à semelhança deste apóstolo, deve ter aquele que é convocado a instaurar o Reino de Deus sobre a face da Terra.

Sendo os Apóstolos convocados a uma tão alta missão era necessário, de certa maneira, que o chamado que receberam procedesse também de uma categoria superior a qualquer outra, ou seja, que fosse promovido pelo próprio Jesus. Havendo recebido o chamado, era preciso da parte dos Apóstolos uma entrega total e um “sim” categórico para, dignamente, receber tão alto título. Segundo narram os Evangelhos sinópticos, cinco foram os chamados particulares que fez Nosso Senhor, recebendo por parte dos que foram agraciados: Simão, André, Tiago, João e Mateus uma contundente resposta afirmativa.

São Marcos (1, 16-20) narra em seu Evangelho:

Passando ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, seu irmão, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse-lhes: “Vinde após mim; eu vos farei pescadores de homens”. Eles, no mesmo instante, deixaram as redes e seguiram-no. Poucos passos mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam numa barca, consertando as redes. E chamou-os logo. Eles deixaram na barca seu pai Zebedeu com os empregados e O seguiram.

“Além do desapego total dos bens temporais e de um coração elevado à Jerusalém Celeste, Jesus exige do apóstolo a ruptura completa de todos os laços que o vinculavam ao mundo” (CLÁ DIAS, 2010, p.16), referindo-se aqui, principalmente, a laços familiares e sociais, como nos diz o próprio Evangelho visto acima: “Eles deixaram na barca seu pai Zebedeu com os empregados e O seguiram” (Mc 1, 20).

Passando agora para o Evangelho de São Lucas (5, 27-28) e chegando ao ponto do qual trataremos com especial ênfase – a conversão de São Mateus -, encontramos: “Depois disso, Jesus saiu e viu sentado ao balcão um coletor de impostos, por nome Levi, e disse-lhe: ‘Segue-me’. Ele se levantou e, deixando tudo, seguiu-O”.É uma atitude que fica como exemplo para todas as almas que recebem um chamado divino.
Assim afirma Mons. João Clá (2010, p.16): Quando Jesus disse: ‘Vem e segue-Me’, deve-se considerar como ‘mundo dos mortos’ tudo quanto ficou para trás e não mais se interessar pelos assuntos que antes lhe preocupavam. E isto de uma forma radical”.

A esse respeito, também ensina o ilustre Padre Royo Marín (1968, p.385):

O desprendimento de todo o criado é uma das condições mais importantes para chegar à santidade. […] De fato, a alma vai se enchendo de Deus na medida e no grau em que vai se esvaziando das criaturas. São João da Cruz é inflexível em exigir um desprendimento total da alma que quer voar para Deus. Se não é assim, é semelhante a uma ave presa por um fio delicado que, por muito fino que seja, a impede de voar.

Por esta razão, explica Mons. João Clá (2005) – com uma nuance consoladora e cheia de alegria – que quem toma a iniciativa de dizer “Segue-me” não somos nós, mas o próprio Deus. É Nosso Senhor quem escolhe e não olha para os pecados das pessoas. Ele não veio para eliminar os pecadores. Isso quer dizer que Deus não põe como condição primeira do chamado o não ter pecados; mas, ainda que os tenha, o mais importante é não se ater a eles e entregar-se a Deus radicalmente.

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São Mateus, apóstolo e evangelista

Interessante comentário acerca deste ponto faz São Cirilo (apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea IV, San Lucas, c.V, v.27-32) para demonstrar como ainda tendo defeitos e debilidades, próprias à natureza humana, mereceu tamanha misericórdia:

Levi era, pois, publicano, homem avarento, intemperante em relação às coisas supérfluas, ávido pelas coisas alheias (isto é o ofício dos publicanos); mas, foi arrancado das oficinas da malícia pelo chamado de Cristo: “e disse-lhe: ‘Segue-me'”.

Com esta magnífica frase, na qual Nosso Senhor manifesta claramente sua veemência e bondade para com o pecador, compreendemos que não é por mérito próprio que Deus escolhe seus instrumentos para a salvação das almas, mas, muitas vezes, se vale de quem é mais insignificante e desprezível para operar conversões e milagres. E se a alma é generosa em seu “sim”, será grande aos olhos de Deus,entretanto, seguirá desprezível aos olhos do mundo. É próprio às almas que se abandonam nas mãos de Deus agir conforme diz São Paulo em sua carta aos Gálatas (6, 14): “Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo”.

São João Crisóstomo (apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea IV, San Lucas, c.V, v.27-32) realça e enobrece o “sim” decisivo de São Mateus:

Pode-se ver o poder de quem chama e a obediência do chamado. Não resistiu, nem sequer vacilou, obedeceu; e não quis nem mesmo voltar para sua casa e contar a sua família o que lhe sucedera, […]; o Senhor honrou o chamado de Levi que o aceitou imediatamente; isto lhe inspirou mais confiança

Esta confiança significa, pois, aquela paz e aquele fascínio das almas que tudo deixam para seguir um ideal, vendo o que têm diante de si e o que, como penhor de uma promessa, possuirão no final de suas vidas, tomando uma resolução firme e sem vacilações.

Compreendamos agora os movimentos de alma que inundaram São Mateus para fazê-lo aceitar o chamado. O que o moveu a dar esse “sim” radical? Ensina-nos, uma vez mais, Royo Marín (1968, p.383, tradução nossa) que “a vontade – também chamada ‘apetite racional’ – é a faculdade pela qual buscamos o bem conhecido pelo entendimento. […] O ato próprio da vontade é o amor, ou seja, a união afetiva da vontade com o bem conhecido”. Ora, foi desta submissão da vontade do Apóstolo para com o Bem em essência que se deu a correspondência ideal. Foi, portanto, um ato de admiração cheio de amor.

Esclarece-nos, ainda, a esse respeito, o Santo Doutor Angélico, na Suma Teológica (II-II, q.23, a.7-8), afirmando que a caridade é a raiz e regra de todas as demais virtudes, sem a qual nenhuma é verdadeira virtude.

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Nosso Senhor chamou a cada
apóstolo pessoalmente

Que outro nome tem esse amor? Enlevo. “É o amor de Deus que tocou o âmago da alma, o cerne da alma, e que deu uma ideia de quem é Ele. […] Quando a pessoa tem esse enlevo, pode-se dizer: ‘está conhecendo a Deus'” (CLÁ DIAS, 2008, s.p.).

São Mateus conheceu a Deus e, por isso, O seguiu. Ele se acusa a si mesmo de ser publicano, no entanto, foi convocado para a maior das batalhas – conquistar almas para Cristo -, a maior das ousadias, com o mais rigoroso desapego e a mais alta audácia que um homem possa ter: seguir Jesus.

Por Natalia Yarima García Malaver

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