Gaudium news > O Código de Hamurabi: “Para implantar a justiça na Terra…”

O Código de Hamurabi: “Para implantar a justiça na Terra…”

Quem acusa outro, imputando-lhe um crime do qual não pode dar a prova, deverá ser morto”. Assim dispõe o parágrafo primeiro de um dos mais antigos textos legais existentes…

Muitos de nossos leitores certamente já ouviram falar do Código de Hamurabi. Quantos, porém, conhecem seu conteúdo? Quem sabe o motivo pelo qual ele é tão famoso? É o que tentaremos mostrar neste artigo. Para isso, vejamos um pouco de História.

Primeiro império babilônico

Quando a civilização suméria chegou ao fim, por volta do ano 2000 a.C., a região sul da Mesopotâmia fragmentou-se em vários Estados, os quais eram governados por dinastias amoritas, enquanto no norte a Assíria exercia seu domínio. Durante pouco mais de duzentos anos, essas cidades mantiveram-se em luta constante pela hegemonia em toda a região. Assim estava a situação política quando Hamurabi (1792 – 1750 a.C.) herdou de seu pai o trono de Babilônia, tornando-se o sexto soberano da primeira dinastia babilônica.

Código de Hamurabi.jpg
O Código de Hamurabi aplica em muitos
de seus dispositivos a lei de talião

Código de Hamurabi, Museu do
Louvre, Paris

Já no seu sétimo ano de governo, ele conquistou algumas cidades, e seu reino teve um período de estabilidade e consolidação. Mas foi entre os anos 31 e 38 de seu governo que ele conseguiu, por meio de uma série de campanhas militares, unificar toda a Mesopotâmia sob seu cetro, o que lhe valeu o título de “Rei das quatro regiões”.1

Uma vez alcançado esse objetivo, Hamurabi dedicou-se às obras de paz, das quais dão testemunho os suntuosos templos e os magníficos canais de irrigação por ele construídos em Babilônia. Entretanto, seu empenho principal era consolidar a união política e conseguir a união espiritual das diversas tribos que dominava: sumérios, acádios e amoritas. Via bem ser esse o melhor meio de manter a paz. Para isso, unificou as vestimentas e estabeleceu os idiomas oficiais para questões de religião e da vida cotidiana.2

Contudo, sua obra máxima, a que perpetuou sua memória, foi a legislativa. Os sumérios tinham já suas leis, mas estas não passavam de preceitos isolados. Hamurabi foi quem colecionou os textos legais existentes, adaptando-os aos novos tempos, e deu, assim, à Babilônia um direito unificado.3 Comenta, a este propósito, o historiador e biblista americano John Bright: “O Código de Hamurabi não representa uma nova legislação, destinada a substituir todos os outros processos legais, mas um esforço, por parte do Estado, para apresentar uma descrição oficial da tradição legal que devia ser considerada padrão, que pudesse servir de ponto de referência entre as várias tradições legais correntes nas várias cidades e áreas fora do reino”.4

282 parágrafos gravados em pedra

Estava já Hamurabi nos últimos anos de seu reinado quando promulgou o famoso código, gravado numa estela de diorito de aproximadamente 2,25 metros de altura por cerca de 55 centímetros de largura. Encontrado em 1901 por uma equipe de arqueólogos franceses na cidade de Susa, localizada no Irã de hoje, o vetusto monumento está exposto no Museu do Louvre, em Paris.

Na sua parte superior, um artista não identificado esculpiu a imaginária cena do soberano respeitosamente de pé diante de Shamash, o deus Sol da Mesopotâmia, sentado em seu trono. Segue-se o texto escrito em caracteres cuneiformes, dividido em três partes:

Um prólogo, no qual o rei guerreiro e legislador canta sua própria glória e anuncia ser o escolhido dos deuses para uma excelsa missão: “Anu e Bel me chamaram – a mim, Hamurabi, o excelso príncipe, o adorador dos deuses – para implantar a justiça na Terra, destruir os maus e o mal, prevenir a opressão do fraco pelo forte, iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo”.5 A seguir vêm os 282 parágrafos, ou artigos, da lei propriamente dita, alguns dos quais já ilegíveis. Por último, um longo epílogo, no qual Hamurabi invoca as bênçãos de Shamash sobre os seus sucessores que tiverem o cuidado de não anular nem alterar a lei por ele promulgada; em sentido contrário, roga às divindades mesopotâmicas terríveis castigos para todo rei ou governante que destruir, adulterar ou relegar ao esquecimento esses seus sábios dispositivos legais.

Quem analisa em profundidade o Código de Hamurabi, nota não só o inegável valor do seu conteúdo jurídico, mas também o quanto ele é uma extraordinária fonte para o conhecimento da vida social, econômica e até mesmo religiosa dessa longínqua época histórica. Não cabe no curto espaço deste artigo um minucioso estudo dos seus quase trezentos artigos, que abrangem desde problemas corriqueiros – como o salário a pagar a um trabalhador manual, o aluguel de um barco ou os honorários de um médico – até crimes puníveis com a sentença de morte. Mas vale a pena transcrever alguns artigos, para dar ao leitor uma ideia de qual era o conceito de justiça aplicado pelos reis da Mesopotâmia.

Normas fundadas na lei de talião

O Código de Hamurabi aplica em muitos de seus dispositivos a lei de talião – do latim, lex talionis, expressa no conhecido dito popular “olho por olho, dente por dente” -, sobretudo na punição dos crimes mais graves. O criminoso deve sofrer o mesmo mal que fez a outrem. Exemplo característico entre todos é o do §196: “Se um homem arrancar o olho de outro homem, o olho do primeiro deverá ser arrancado”.

Ou, conforme o caso, merece sofrer o mesmo mal que tentou fazer: deve ser condenado à morte quem comparece ao tribunal e acusa alguém de um crime merecedor da pena capital, mas não apresenta as devidas provas (§3).

Punia-se com muita severidade também o crime de furto ou roubo pena de morte para quem roubava um objeto de um templo ou do palácio real, e também para o receptador (§6). O ladrão de um boi, uma ovelha, um asno, um porco ou uma cabra, deverá restituir um valor multiplicado por trinta, se tiver roubado de um templo ou do palácio real; multiplicado por dez, se tiver roubado de um servidor do rei. Mas, se o ladrão não tiver meios de restituir? Neste caso, deverá ser morto (§8). Conforme as circunstâncias, até mesmo o roubo não consumado era passível de pena de morte: quem abrir uma brecha na parede de uma casa, deverá ser morto e sepultado diante da brecha (§21).

Também aos militares o Código impõe pesadas obrigações: deverá ser morto o oficial ou soldado que tiver recebido ordem de marchar numa expedição do rei e, em vez de ir, contratar um mercenário para ir em seu lugar; e sua casa será dada ao mercenário (§26).

Até o campo do vizinho está protegido pela lei: se um camponês abrir canais para irrigar suas plantações, mas for descuidado e a água inundar o campo do vizinho, deverá pagar a este o prejuízo causado (§55).

Os contratos comerciais não foram olvidados por Hamurabi: Se um mercador confia a um agente trigo, lã, azeite ou qualquer outro produto para ser vendido, o agente deverá manter uma escrituração e pagar o valor devido ao mercador (§104).

O famoso Código consagra aos problemas da vida familiar nada menos de 67 artigos (128 a 195). Por exemplo, se uma mulher casada for surpreendida em flagrante adultério, ela e seu comparsa deverão ser amarrados e jogados no rio, a menos que o marido perdoe sua esposa e o rei perdoe seu súdito (§129). Se o marido quiser repudiar uma esposa com a qual teve filhos, ele deverá restituir-lhe o valor do dote e conceder-lhe uma participação no rendimento de seus campos e outros bens, para ela poder educar os filhos (§137). Se um homem se casar e sua esposa não lhe der filhos, ele poderá levar para o lar uma concubina, mas esta não poderá ser tratada em pé de igualdade com a esposa (§145).

O §146 contempla uma situação muito semelhante ao caso bíblico de Sara e Agar (cf. Gn 16, 1-6): se uma esposa estéril dá a seu marido uma escrava com a qual este tem filhos, e se por isso a escrava entra em disputas com sua senhora, esta não pode vendê-la.

Jesus Cristo.jpg
A perfeição da Lei virá com Nosso Senhor
e seu Evangelho

“Jesus Cristo” – Basílica de São Marcos, Veneza

Hamurabi não omitiu a responsabilidade profissional: será réu de morte o arquiteto que tiver construído mal uma casa, se esta ruir e matar o proprietário (§229). Se morrer o filho do proprietário, será condenado à morte o filho do arquiteto (§230). Se morrer algum escravo do proprietário, o arquiteto deverá pagar-lhe o valor de um escravo (§231). É a lei de talião em toda a sua brutalidade: Olho por olho… filho por filho, escravo por escravo.

Note-se como a pena por causar a morte de um escravo equivale à de fazer o mesmo a um animal: quem aluga um boi e o deixa morrer por negligência ou o mata por pancadas, deve indenizar ao proprietário boi por boi (§245).

O regime antigo e a nova Lei do amor

De muitos outros problemas ocupou-se Hamurabi em seu Código, tais como, contratos de transporte de material, empréstimos, penas para os crimes de injúria e de sequestro, obrigações dos médicos. O que analisamos acima, porém, é suficiente para ressaltar o quanto esses povos possuíam o senso da Lei Natural, inerente a todo ser humano, pois está “escrita e gravada no coração de cada homem, porque ela é a própria razão humana ordenando-lhe fazer o bem e proibindo-lhe praticar o mal”.6

Sem dúvida, os métodos de aplicação são de uma rudeza e crueldade extremas, quando vistos a partir de nossa perspectiva cristã. Mas é preciso tomar em consideração que na Antiguidade era comum esse rigor, a ponto de encontrarmos na Lei Mosaica castigos semelhantes para diversas ações criminosas.7 Acontece que, devido à dureza de coração dos homens daquela época, com frequência o temor era o único meio de impeli-los a observar os preceitos divinos. “Não temais, porque é para vos provar que Deus veio e para que o seu temor, sempre presente aos vossos olhos, vos preserve de pecar” (Ex 20, 20) – disse Moisés para tranquilizar o povo hebreu apavorado ante as manifestações do poder de Deus, nas encostas do Monte Sinai.

A perfeição da Lei virá com Nosso Senhor Jesus Cristo e seu Evangelho.8 Depois da Redenção, o Espírito Santo infunde nos homens o desejo de agir movidos pelo amor, e não pelo temor. O comportamento cristão baseia-se no perdão e no amor ao próximo, a ponto de ser capaz de oferecer a própria vida em benefício dele: “Este é o meu Mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como Eu vos amei. Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 12-13). O exemplo de cumprimento exímio deste preceito, no-lo deu Jesus, ao entregar-Se livremente para a salvação da humanidade.

Por Alejandro Javier de Saint Amant.

(Revista Arautos do Evangelho, Julho/2012, n. 127, p. 33 à 35)

1 Cf. MASÓ FERRER, Felip. El Código de Hammurabi. In: Revista Historia National Geographic. Canarias. N.85 (Jan., 2011); p.44.

2 Cf. KITTEL, Rudolf. Los pueblos del Oriente Anterior. In: El despertar de la humanidad. Madrid: Espasa-Calpe, 1950, t.I, p.507-508.

3 Cf. Idem, ibidem.

4 BRIGHT, John. História de Israel.
7.ed. São Paulo: Paulus, 2003, p.85.

5 Segundo a tradução ao inglês de KING, Leonard William The Code of Hammurabi. In: Yale Law School: www.yale. edu. (As demais referências ao Código feitas neste artigo são baseadas nesta mesma versão).

6 LEÃO XIII. Libertas præstantissimum, n.8.

7 Veja-se, por exemplo: Ex 21, 1-25; Lv 20, 1-15; Nm 1, 51; Dt 21, 18-21.

8 “O Evangelho leva a Lei à plenitude, imitando a perfeição do Pai Celeste” (CCE 1968).

Deixe seu comentário

Notícias Relacionadas