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Pobreza e elevação de espírito

Não há documento mais revelador da personalidade humana, com suas virtudes e vícios, do que a carta pessoal, gênero quase esquecido nestes tempos de tirania informática. Pela carta, sobretudo se escrita a mão, pode-se analisar com segurança o interior de quem escreve. A escolha do papel, da caneta, da cor da tinta, dos inúmeros detalhes que distraidamente o autor elege, até e principalmente a caligrafia e a linguagem são elementos que indicam as filigranas do pensamento.BIBLIOTECA VATICANA MANUSCRITO DIIGITALIZADO.jpg

Assim, é com empenho que biógrafos e hagiógrafos se debruçam sobre esses preciosos documentos que lhes manifestam, com riqueza de detalhes e muita segurança, traços da alma de grandes personagens.

Torna-se por isso de interesse a leitura e contemplação das cartas de Santa Clara. Como é sabido, dentro de grande humildade e obediência, ela seguiu, com fidelidade completa e crescente enlevo, as orientações de seu Pai espiritual, São Francisco, e a graça de Deus favoreceu a obra que essa santa realizou sob orientação do Santo.

No ano de 1234 atravessou a Europa uma notícia consoladora: uma mulher de sangue real, a princesa Inês de Praga, decidira tomar hábito entre as filhas de Santa Clara, abandonando as riquezas que lhe proporcionava seu sangue real. Erigido um mosteiro, reunidas as vocações, a santa discípula do Poverello lhe manda todas as orientações para que vivesse dentro da nova regra.

Certamente essa orientação exigiu, além do envio de um grupo de religiosas formadas diretamente pela fundadora, um carteio volumoso, pelo qual a santa procurava transmitir o espírito da seráfica Ordem, mais do que as simples constituições.

Suas cartas são testemunhas de um trato celestial e, por sua elevação, parecem ter sido escritas num estado de espírito muito superior, talvez depois de alguma grande graça mística, ou quiçá, fosse essa a clave corrente em que a santa vivia. A maneira nobre, poética, elegante, e, sobretudo admirativa e caridosa que Santa Clara usa para se dirigir à sua discípula, bem mostra a retidão de sua alma, o trato cheio de respeito e ternura pelos que lhe são submissos, e, na linguagem, ao lado de um despojamento despretensioso, um espírito cultivado, habituado à consideração das verdades eternas.

Além do estilo literário cerimonioso usado nesses felizes tempos em que “a filosofia do Evangelho governava os estados”, revelador de uma mentalidade que considerava cada ser humano um reflexo único das qualidades divinas, devem-se considerar a dignidade real desta futura santa canonizada, Santa Inês de Praga, e, principalmente, suas virtudes, que a tornavam merecedora dos elogios que lhe faz sua fundadora.

Julgue o leitor por si mesmo as belíssimas palavras de Santa Clara, nas quais transparece não apenas sua humildade, mas também sua alma admirativa e poética. E diga depois se, ao lê-las, não sentiu o perfume da santidade desses antigos tempos.

Assim inicia ela sua primeira missiva: “À venerável e santa virgem, senhora Inês, filha do excelentíssimo e mui ilustre rei da Boêmia, Clara, serva indigna e inútil de Jesus Cristo e das senhoras enclausuradas de São Damião, sua súdita e serva em tudo, recomenda-se com muita reverência, desejando, sobretudo, que consiga a glória da felicidade eterna.”

A linguagem, pervadida de humildade e pureza, ao mesmo tempo em que respeita a condição de princesa, faz-lhe voltar os olhos para os títulos eternos que deve almejar.

Ao terminar a carta, diz: “Suplico-vos, por último, em nome do Senhor, tanto quanto posso, que vos lembreis nas vossas orações desta vossa serva, embora indigna, e das restantes irmãs que comigo moram neste mosteiro. Que, com a vossa ajuda, mereçamos as misericórdias de Jesus Cristo, e em união convosco sejamos dignas de gozar a eterna contemplação. Saudações no Senhor. Orai por mim.”

Dois anos depois escreve-lhe novamente e assim se expressa: “À filha do Rei dos reis, à serva do Senhor dos senhores, à mui digna esposa de Cristo e nobre rainha Inês, Clara, inútil e indigna serva do Senhor dos senhores, votos de saúde e perseverança na altíssima pobreza.”

É admirável a maneira sutil como Santa Clara ressalta à filha do Rei da Boêmia a sua condição de filha do Rei dos reis, título mais elevado que qualquer outro, e chamando-a de “nobre rainha” certamente a faz lembrar-se de sua união espiritual com Nosso Senhor Jesus Cristo, o Rei do Universo. A ideia de manifestar-lhe “votos de saúde e perseverança na altíssima pobreza” faz reluzir aos olhos de sua filha espiritual, entre tantas outras virtudes, a do desapego dos bens terrenos e total despretensão de espírito. Essa carta segue toda repassada de angelicais conselhos para que as irmãs perseverem na prática da santa pobreza, que constitui o seu carisma.

Ainda outros dois anos se tinham passado quando Santa Inês recebeu da fundadora outra carta, em cujo início se lê: “À irmã Inês, venerável senhora em Cristo, a mais querida entre todas, irmã do ilustre rei da Boêmia, mas já irmã e esposa do Rei dos Céus. Clara, indigna e humilde serva de Cristo deseja alegria salvadora no autor da salvação e de todo o bem digno de ser desejado.”

E finalmente, em 1253, poucos meses antes de falecer, Santa Clara assim se dirige à sua filha espiritual: “Àquela que é a metade da minha alma e escrínio singular da minha afeição, à ilustre rainha e senhora Inês, esposa do Rei eterno, sua mãe caríssima e filha entre todas preferida, Clara, indigna serva de Cristo e inútil servidora das servas que vivem no mosteiro de São Damião, deseja saúde e a ventura de poder cantar com as demais virgens o cântico novo diante do trono de Deus e do Cordeiro e de seguir o Cordeiro para onde quer que vá.”

Pressentindo o seu fim, assim se expressa Santa Clara a Santa Inês:”Tenho-te presente no meu coração, duma maneira muito especial, como a mais querida de todas. Que mais dizer? Que faça silêncio a linguagem da carne e dê lugar à do espírito acerca da minha afeição por ti, filha bendita. A linguagem dos sentidos só muito imperfeitamente pode manifestar o amor que sinto por ti. Sê, pois, benevolente e aceita com humildade esta expressão de afeição maternal. Todos os dias penso em ti e em tuas filhas, às quais me recomendo, juntamente com minhas irmãs. Da mesma maneira as minhas filhas e especialmente a virgem prudentíssima Inês, minha irmã, se recomendam tanto quanto podem a ti e às tuas filhas em Cristo.”

***

A consideração dessas cartas nos enche de consolação e nos faz desejar um convívio semelhante entre todos os nossos irmãos de fé. E esse relacionamento transbordante de caridade fraterna, nesta terra, já é parte de “todo o bem digno de ser desejado”. A diversidade de caráteres e a imaginação humana, assistida pela graça, hão de encontrar expressões de afeto e de amor mútuo entre os irmãos quando os olhos interiores deles estiverem voltados para o sobrenatural, tal qual nos dá exemplo a grande Santa Clara. Cada um manifestará a vida de Deus nas suas almas e o seu eco divino repercutirá entre todos, fortalecendo-os no combate e tornando-os reconhecíveis como discípulos de Jesus.

Irmã Ângela Thomé, EP

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