Promulgado novo Estatuto da Cúria Romana: o que mudou? Muita coisa
Parece que o Vaticano finalmente entrou na era da responsabilidade institucional.

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Redação (26/11/2025 09:30, Gaudium Press) A publicação do novo Regulamento Geral da Cúria Romana marca uma virada estrutural e cultural que dificilmente poderá ser revertida. A sensação dominante após a leitura do estatuto é que a Cúria, finalmente, entra no século XXI, não apenas com ajustes administrativos, mas com um redesenho radical de mentalidade. O texto não mexe em uma ou outra engrenagem; ele troca o motor.
O primeiro elemento que salta aos olhos é a distinção entre o Regulamento Geral da Cúria Romana e o Regulamento dos Funcionários. Até agora, um único documento misturava normas administrativas com orientações trabalhistas, criando um híbrido pouco funcional. O novo modelo separa as duas esferas: uma regra a vida institucional e os processos, a outra trata exclusivamente de contratação, avaliação, direitos e deveres dos funcionários. A impressão é a de um ambiente muito mais profissional, semelhante ao das administrações públicas modernas. Esta mudança tira o último véu de improvisação que ainda permanecia no funcionamento interno da Santa Sé, algo que já não combinava com a complexidade atual da governança eclesial.
Outro ponto de impacto é a questão linguística. Até ontem, a norma era clara: os atos da Cúria eram redigidos normalmente em latim. Agora, o latim perde a condição de idioma obrigatório e passa a conviver em igualdade com as línguas modernas. Já não é mais obrigatório o “bom conhecimento do latim” para trabalhar no Vaticano. É um gesto simbólico, claro, mas com enorme peso cultural. O latim permanece respeitado, mas o Vaticano reconhece que sua administração é global e que não pode funcionar como se estivesse presa ao século XVI. Isto revela uma abertura prática necessária para que os atos administrativos sejam compreensíveis, rápidos e acessíveis no mundo inteiro. Recomenda-se ainda a tradução dos documentos importantes para as línguas mais usadas.
O estatuto também cria algo que até recentemente parecia impensável: o direito dos fiéis a uma resposta. Qualquer pedido enviado aos dicastérios deve ser registrado, atribuído a um responsável e respondido. O silêncio burocrático, que tantas vezes mascarou pressões internas, omissões e, em alguns casos, até injustiças graves, agora dá lugar a um procedimento rastreável. É uma mudança enorme. A nova regra marca o fim dessa cultura e representa um esforço claro de accountability. É preciso dizer que, até um certo tempo atrás, era praxe tal resposta, o que acabou se perdendo no pontificado anterior.
Outro eixo decisivo é a coordenação institucional. A Cúria deixa de agir como um arquipélago de departamentos isolados e passa a funcionar como um corpo coeso, com troca obrigatória de informações, consultas internas, coassinaturas e relatórios periódicos. Essa integração marca também o retorno da centralidade da Secretaria de Estado, algo que no pontificado anterior sofreu altos e baixos segundo a visão particular do Papa. Agora, independentemente das preferências pessoais do Pontífice, a estrutura exige coordenação e não mais tolera dicastérios trabalhando de forma autônoma e paralela.
Outro grande avanço é a introdução de motivações explícitas nos atos administrativos e a possibilidade formal de recurso. Era uma lacuna absurda que a Cúria não estivesse obrigada a justificar seus atos. Agora, toda decisão deve citar normas, apresentar razões e permitir recurso interno. A criação de um registro digital centralizado, com validade condicionada à notificação adequada, mostra uma transição para padrões administrativos internacionais; uma mudança que rompe uma cultura histórica de opacidade, reforçada mais pela tradição do que pela doutrina.
No relacionamento com dioceses, institutos religiosos e movimentos, o novo estatuto exige consulta prévia e respeito à autoridade local. Isso vem corrigir uma prática que derivava tanto de hábitos quanto de certa rigidez romana, a qual ignorava circunstâncias locais. Agora, a Cúria se coloca juridicamente no papel que Praedicate Evangelium idealizou: serviço, não tutela.
A digitalização é uma das áreas mais incisivas. O estatuto prevê sistemas digitais certificados, arquivo digital, classificação de atos sensíveis em três níveis, registro de acesso e destruição controlada de documentos. Há anos, dizia-se que o Vaticano parecia administrativamente preso a métodos analógicos. A reforma tenta arrancar a Cúria definitivamente de recursos obsoletos.
Um ponto especialmente significativo é a redefinição da cultura do trabalho. O estatuto introduz formação contínua obrigatória, avaliações de desempenho, regras de integridade e declarações de conflito de interesse; tudo isso articulado ao novo Regulamento dos Funcionários. É uma mudança profunda. O funcionário da Cúria deixa de ser apenas um empregado de confiança institucional e passa a ser avaliado segundo critérios profissionais claros.
O texto, no conjunto, apresenta uma Cúria que não é mais uma máquina pesada, movida por precedentes e tradições não escritas. Ela se converte em uma administração moderna, digital, profissionalizada, transparente e obrigada a responder. A reforma não é cosmética. É uma refundação jurídica e organizacional. O novo estatuto coloca cada setor sob normas verificáveis e estruturas rastreáveis. A Cúria deixa de ser interpretada e passa a ser lida; deixa de operar por tradição tácita e passa a operar por lei.
O que muda daqui para frente? Muda quase tudo. Muda o modo de decidir, de registrar, de responder, de consultar, de arquivar, de coordenar, de avaliar, de contratar e de comunicar. Muda a relação com os bispos, com os fiéis, com os religiosos, com os movimentos e com o mundo. Muda a imagem da própria Igreja no campo administrativo. Parece que o Vaticano finalmente entrou na era da responsabilidade institucional. A escolha de um norte-americano para liderar o processo mostrou-se acertada.





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