Por que é histórico o Papa Leão XIV e o Rei Charles rezarem juntos?
A oração, mais do que palavras, é uma linguagem universal que reconcilia o que a história desfez. Ela tem o poder de transformar os corações

Foto: Vatican News/ Facebook
Redação (25/10/2025 08:41, Gaudium Press) Há certas situações que, à primeira vista, parecem se limitar a apenas gestos protocolares, atos corteses de estadistas ou líderes religiosos. Mas há também acontecimentos – antecedidos por séculos de história, feridas antigas e esperanças adormecidas – capazes de suspender o tempo, criando um instante de reconciliação. O encontro entre o Papa Leão XIV e o Rei Charles III insere-se nesta segunda categoria.
Pela primeira vez, desde a Reforma, um monarca britânico se uniu em oração com o sucessor de Pedro – um gesto simples e breve, mas com um significado simbólico incalculável. Há mais de quatro séculos, a Inglaterra havia se afastado de Roma, e a lembrança de um cisma profundo, banhado de sangue e poder, deixou marcas em gerações de católicos perseguidos e de protestantes convictos de sua ruptura. Agora, sob a luz discreta de uma capela vaticana, uma nova imagem se grava na memória cristã: o Rei e o Papa, juntos, rezando pela criação e pela unidade dos cristãos.
Esta notícia, divulgada pela Gaudium Press, não se limita a descrever uma visita de Estado; é um sinal, quase profético, de que o tempo das distâncias começa a ceder espaço ao do reencontro. Como assinalado em artigo anterior, a visita dos monarcas britânicos ao Vaticano ocorre num contexto de “reavivamento do catolicismo no Reino Unido”, o que já confere ao evento uma conotação espiritual mais profunda do que diplomática.
O encontro, portanto, não foi mero cumprimento de agenda, mas expressão de uma nova sensibilidade que começa a despontar em terras outrora marcadas pela desconfiança mútua. Se, no passado, o trono inglês representou o símbolo mais visível da separação, agora parece mover-se, ainda que timidamente, em direção a Roma.
O fato de a oração conjunta ter como tema central a ecologia poderia, à primeira vista, parecer de importância secundária frente ao peso histórico do encontro. Entretanto, é precisamente nesse detalhe que reside a sabedoria do gesto. O cuidado com a criação, tema caro ao Papa Leão XIV, enraizado no magistério ecológico de seus predecessores, tornou-se o terreno neutro onde ambos puderam se encontrar.
Em um contexto de polarizações doutrinais e tensões teológicas, a ecologia se apresenta como um ponto de convergência, onde diferentes confissões podem compartilhar uma linguagem comum de responsabilidade diante do Criador. O Rei Charles, conhecido há décadas por seu engajamento ambiental, e o Papa Leão XIV, cuja visão espiritual da criação recupera o sentido teológico da natureza como reflexo da glória divina, encontraram nesse tema o eixo para uma oração conjunta. Não se trata evidentemente de unidade de fé nem de comunhão sacramental, mas de um passo significativo — talvez o único possível neste momento histórico — rumo à reconciliação entre irmãos separados.
Há, no gesto, uma carga simbólica litúrgica. Após séculos em que as orações de Londres e Roma se erguiam como vozes distintas, marcadas por um eco de distância, agora ressoam unidas por um mesmo apelo: o de preservar a casa comum e redescobrir, sob o mesmo céu, a filiação ao mesmo Deus. É como se a oração, mais que as palavras, servisse de linguagem universal capaz de restaurar o que a história desfez. O Rei e o Papa, diante do altar, representaram mais que suas instituições: duas tradições de fé que, embora separadas, ainda compartilham a mesma origem apostólica.
O encontro é também expressão de um fenômeno mais amplo: o renascimento do catolicismo britânico. Nos últimos anos, a Inglaterra testemunha um discreto e constante retorno de jovens e intelectuais ao seio da Igreja Católica. Em meio a uma sociedade cada vez mais secularizada, o catolicismo ressurge como refúgio espiritual e fonte de sentido. É nesse contexto que o gesto do Rei adquire ressonância. Embora ele não mude o estatuto da Igreja da Inglaterra — nem poderia —, seu gesto projeta uma mensagem de abertura, um convite à redescoberta das raízes espirituais da cristandade europeia. O monarca, ainda que limitado institucionalmente, torna-se instrumento de um diálogo possível. Sua oração com o Papa, portanto, transcende o gesto pessoal e se converte em símbolo nacional.
No Vaticano, a liturgia comum centrou-se em passagens bíblicas que celebram a criação e o dever humano de protegê-la. Não houve declarações conjuntas de natureza doutrinal, nem poderia haver. O cerne do encontro foi a oração — silenciosa, reverente, densa. Em tempos de palavras vazias, talvez a oração seja o gesto mais eloquente. Leão XIV, fiel ao seu estilo sereno e contemplativo, enfatizou que “quem reza diante do Criador reconhece sua própria pequenez e a fraternidade de toda criatura”. Essa frase sintetiza a essência do encontro: rezar juntos não apaga as diferenças, mas suspende, por um instante, as distâncias.
A história das relações entre Roma e Londres é marcada por avanços e recuos, esperanças e desilusões. Desde o encontro entre Paulo VI e o Arcebispo Ramsey em 1966, seguido pelos diálogos teológicos e pelas visitas de João Paulo II e Bento XVI ao Reino Unido, construiu-se lentamente um caminho de aproximação. Porém, nenhum desses episódios tinha ainda reunido o Papa e o Rei — o sucessor de Pedro e o herdeiro de Henrique VIII — em um ato conjunto de oração. Por isso, o acontecimento atual adquire dimensão histórica. Pela primeira vez, o símbolo máximo da monarquia inglesa se ajoelha, em comunhão espiritual, com o Bispo de Roma. É como se uma ferida de centenas de anos se deixasse, por um breve momento, tocar pela graça.
Há, contudo, quem veja com cautela tal gesto. Alguns analistas advertem que o uso da ecologia como ponte pode reduzir o diálogo cristão a uma causa social, diluindo a dimensão sobrenatural da fé. De fato, há esse risco. A ecologia, quando desligada de seu fundamento teológico, pode se transformar em ideologia verde, desprovida de transcendência. No entanto, o que se viu no Vaticano pareceu ter evitado essa armadilha. O tema ambiental foi tratado como expressão da teologia da criação, um louvor ao Criador e reconhecimento do homem como guardião do dom recebido. Sob esse prisma, o encontro foi genuinamente espiritual, não político.
O Rei Charles, por sua vez, traz em sua trajetória pessoal uma curiosa sensibilidade religiosa. Em diversas ocasiões, manifestou admiração pela tradição católica, por seu senso de beleza litúrgica e continuidade histórica. Embora permaneça firmemente no seio da Igreja da Inglaterra, o monarca tem se mostrado aberto a uma visão mais universal do cristianismo. Sua oração ao lado do Papa Leão XIV reflete essa abertura e, talvez, um desejo íntimo de reconciliação entre os ramos de uma mesma árvore espiritual. Não é uma conversão, mas é um gesto que a prefigura.
Do lado católico, Leão XIV tem se destacado por uma diplomacia de gestos simbólicos. Seu pontificado, ainda recente, é marcado por uma tentativa de restaurar o equilíbrio entre fidelidade doutrinal e sensibilidade pastoral. Ao receber os monarcas britânicos, o Papa não buscou protagonismo político, mas ofereceu hospitalidade espiritual. A oração conjunta foi sua forma de dizer que a Igreja continua sendo casa de todos os batizados, mesmo daqueles que, por circunstâncias históricas, se afastaram de sua comunhão visível. Ao escolher o tema da ecologia, o Papa quis falar não de política, mas de criação; não de acordos, mas de conversão; não de tolerância, mas de fraternidade na fé.
Não se pode, é claro, ignorar as diferenças teológicas e eclesiológicas que permanecem. Elas são reais, exigem décadas de diálogo e graça para a sua superação. Todavia, algo já começa a mudar: o olhar. Durante muito tempo, Roma e Londres se olharam com desconfiança. Agora, aprendem a se reconhecerem como partes de uma mesma cristandade ferida. Essa mudança de perspectiva representa o primeiro passo para qualquer reconciliação. A oração, mais que documentos e declarações, tem o poder de transformar os corações.
O futuro revelará o alcance desse gesto; talvez seja apenas uma faísca simbólica, um prenúncio de algo maior. Mas a história da Igreja ensina que grandes reconciliações começaram com pequenos sinais.
Por Rafael Tavares





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