Leão XIV e o “julgamento do século”
A versão resumida de uma história longa e complicada é que a lua de mel de Leão XIV com a mídia está chegando ao fim.
Redação (29/09/2025 09:11, Gaudium Press) Chamado de “o julgamento do século” – um rótulo ou epíteto que compartilha, não sem alguma ironia, com vários outros julgamentos das últimas duas décadas –, ele tem direito a este título por ser a primeira vez na história que um cardeal enfrenta acusações julgadas no tribunal criminal comum do Estado da Cidade do Vaticano.
De qualquer forma, o julgamento do Cardeal Giovanni Angelo Becciu et al. certamente corre o risco de se tornar um dos legados mais espinhosos deixados pelo Papa Francisco. A fase de apelação do julgamento começou na semana passada e já produziu duas reviravoltas dramáticas.
O caso de Becciu diz respeito à gestão de fundos sob a competência da Secretaria de Estado, onde Becciu serviu durante anos sob Francisco como o Sostituto – basicamente o chefe de gabinete papal – e inclui um elenco notável de co-réus, sobre os quais não precisamos dizer muito aqui.
A primeira reviravolta da semana passada foi que o Tribunal de Apelação, presidido pelo arcebispo Alejandro Arellano Cedillo, deferiu o pedido de recusa do Promotor de Justiça do Vaticano (o procurador da Cidade do Vaticano). O pedido de recusa decorre da revelação, no verão passado, de uma série de conversas que mostraram como Monsenhor Alberto Perlasca havia sido “auxiliado” (se não manipulado) em seu depoimento. A condição de Perlasca como testemunha-chave foi significativamente rebaixado na decisão, embora tenham sido suas próprias reconstruções que formaram a base do caso da acusação.
A segunda reviravolta foi a rejeição pelo tribunal da apelação do Promotor de Justiça do Vaticano, que havia solicitado ao tribunal que anulasse algumas sentenças de “inocência” proferidas para alguns réus em algumas acusações e revisasse as penas impostas a outros. O tribunal de apelação decidiu que o recurso do Promotor havia sido apresentado com um defeito processual e fora do prazo exigido, permitindo que a defesa argumentasse sua inadmissibilidade. O tribunal aceitou o argumento da defesa.
O processo de apelação continua, é claro, mas está progredindo lentamente. A Suprema Corte do Vaticano será chamada a decidir sobre a recusa do Promotor de Justiça Alessandro Diddi, que desde então se afastou do julgamento. A apelação só prosseguirá se os pedidos da defesa forem aceitos, o que significa que a sentença de primeira instância não pode ser agravada.
Os dois dramáticos desdobramentos, no entanto, também testemunham uma mudança substancial no clima do Vaticano. O Papa Francisco queria que o julgamento fosse concluído, chegando a intervir com quatro rescritos para “facilitar” a investigação, e tinha total confiança no promotor do Vaticano. Três reformas significativas do sistema judicial do Vaticano sob o Papa Francisco também fortaleceram a posição do promotor, mesmo à custa de um equilíbrio normal de poder, considerando que o promotor de justiça é o mesmo para a primeira instância e para a apelação.
Com o Papa Francisco, o tribunal provavelmente teria sido convocado a “inventar” uma fórmula para manter o caso da acusação em andamento, deixando de lado os pedidos da defesa.
Esse já não é o caso, uma vez que a atitude do presidente do Tribunal de Apelação, Arellano, também parece ter como objetivo reequilibrar o funcionamento da justiça do Vaticano. Em quatro dias de audiências, Arellano não se limitou a ouvir a defesa e permitir que esses dois acontecimentos dramáticos ocorressem. Ele proporcionou, quase despercebido, uma mudança de paradigma substancial.
Na ordem que anunciava todas as decisões do julgamento, Arellano criticou a prática de citar ou usar exemplos da jurisprudência da “república vizinha” (ou seja, a Itália) tanto pela defesa quanto pelo promotor de justiça do Vaticano. Essa posição tem um peso enorme, mesmo que não possa ser avaliada a curto prazo.
O julgamento sobre a gestão dos fundos da Secretaria de Estado não foi apenas um julgamento contra um sistema do Vaticano. Foi um julgamento enraizado em um conceito italiano de jurisprudência, com a adição de uma conotação moral normalmente pertencente ao direito canônico. Em última análise, o promotor de justiça, Alessandro Diddi, era advogado na Itália, e todos os advogados no julgamento tiveram que lidar com um sistema jurídico como o do Vaticano. O Estado da Cidade do Vaticano, de fato, adotou o código penal italiano. Mas nunca aceitou o código mais recente, o Código Rocco, ainda em vigor, porque era um produto do fascismo. Assim, quando se entra no Vaticano, os códigos mais recentes datam de 1913, com procedimentos que não são mais usados na Itália.
É um Estado diferente, entre outras coisas, com uma lógica totalmente diferente. Mas, a este respeito, é o tribunal do Vaticano que deve afirmar a força da lei nacional (ou seja, a lei do Vaticano) sobre a da “República vizinha”. Isso não aconteceu. Paradoxalmente, o pontificado do Papa Francisco testemunhou uma aproximação com o seu complicado vizinho italiano. O acordo entre a Itália e a Santa Sé, que estipula que os funcionários do Vaticano também pagariam impostos na Itália, remonta a 2015. Esse acordo minou a soberania da Santa Sé.
Até mesmo a Autoridade de Informação Financeira, cujos membros haviam sido internacionalizados, voltou a ser administrada por italianos das fileiras do Banco da Itália. E, obviamente, a justiça do Vaticano nunca esteve tão intimamente ligada à justiça italiana como quando Giuseppe Pignatone foi nomeado presidente do Tribunal de Primeira Instância. Ao mesmo tempo, os membros do tribunal frequentemente ocupavam cargos na Itália — as últimas reformas do Papa Francisco também eliminaram a exigência de que pelo menos um juiz trabalhasse exclusivamente para o Vaticano.
No entanto, muitos dos escândalos financeiros da Santa Sé tiveram origem na Itália ou envolvem casos italianos que afetam apenas tangencialmente a Santa Sé. Os julgamentos do Vatileaks também tiveram origem na Itália.
Em suma, a posição de Arellano representa uma ruptura com uma tendência que havia sido quebrada com grande dificuldade, à custa de uma campanha midiática sem precedentes contra ela, e que havia retornado com o Papa Francisco, acompanhada por uma campanha midiática que apoiava o trabalho do Papa contra a corrupção.
Essa mudança de paradigma também afetará o pontificado de Leão XIV?
Leão XIV acaba de tomar uma primeira decisão significativa, que é a nomeação do bispo Filippo Iannone como prefeito do Dicastério para os Bispos; ele está sob enorme pressão, e muitos centros de poder se fortaleceram e se agravaram no último mês do Papa Francisco. Sua entrevista para sua biografia não foi vista como uma resposta eficaz às acusações de encobrimento de abusos no Peru, embora a resposta às alegações sobre suas ações tenha sido precisamente a base para sua decisão de conceder essa entrevista.
A versão resumida de uma história longa e complicada é que a lua de mel de Leão XIV com a mídia está chegando ao fim.
Os dramáticos desdobramentos do julgamento no Vaticano podem, de certa forma, reacender as campanhas midiáticas contra o Vaticano, que chegam a ter como alvo o próprio papa. Alguns sinais disso já surgiram. Por exemplo, há um debate renovado sobre as cartas do Papa Francisco que supostamente levaram à decisão do Cardeal Becciu de não participar do conclave. O uso dessas cartas, na realidade, representa um ataque ao Cardeal Pietro Parolin, bem como uma pressão indireta sobre Leão XIV para que comece a mudar a equipe do governo. E a ceder à pressão para introduzir certos elementos específicos em sua equipe de governo.
Enquanto isso, o julgamento do século no Vaticano está se tornando uma questão secundária, com um impacto incerto sobre o destino do pontificado atual e até mesmo sobre a avaliação histórica do anterior. O tempo dirá se isso terá algum efeito sobre as decisões de Leão XIV.
Por Andrea Gagliarducci
Artigo publicado originalmente em inglês no site Monday Vatican, em 29 de setembro de 20225. Tradução Gaudium Press
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