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Reformas à vista? Leão XIV e o desafio das finanças do Vaticano

Sabe-se que o tema da má gestão financeira foi uma das considerações dos cardeais durante as Congregações Gerais que precederam o último conclave. Leão XIV assumiu o cargo com um mandato de pôr ordem na casa, doa a quem doer.

Foto: Vatican news

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Redação (26/08/2025 09:39, Gaudium Press) O Vaticano entra no pontificado de Leão XIV em meio a uma tempestade financeira que não pode ser apaziguada com gestos simbólicos ou discursos piedosos. O novo Papa herda não apenas uma cúria marcada por divisões internas e resistências estruturais, mas, sobretudo, um balanço econômico que exibe déficits históricos, um fundo de pensão em colapso e a perda crescente da confiança dos fiéis e doadores. A narrativa de progresso que caracterizou os últimos anos, com auditorias positivas no Instituto para as Obras de Religião e avanços na Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, não oculta o dado essencial: o Vaticano gasta mais do que arrecada, colocando em risco a sustentabilidade a longo prazo da máquina curial devido à falta de transparência financeira.

O jornalista Ed Condon, do The Pillar, já advertira, em análise recente, que a grande tentação de qualquer novo pontífice é ceder à cultura de “fatos alternativos” que permeia o Vaticano. Há sempre quem queira apresentar números filtrados, diagnósticos incompletos e soluções mágicas, encobrindo uma realidade incômoda. O perigo, portanto, não reside apenas no déficit, mas na incapacidade de enfrentá-lo com seriedade. Francisco entregou uma Santa Sé com o banco reformado, sim, mas com uma estrutura orçamentária ainda desequilibrada. O desafio agora é resistir à tentação de prometer reformas espetaculares e, ao mesmo tempo, evitar a paralisia diante do abismo financeiro. O novo Papa precisará escolher bem aqueles que escutará, e deverá encontrar a razão do fracasso de décadas na gestão das finanças vaticanas.

Os números não permitem ilusões. Em 2023, o déficit operacional rondava os 83 milhões de euros, e o buraco no fundo de pensão variava conforme a fonte: entre 630 milhões e até 1,5 bilhão de euros em passivo atuarial. Essa discrepância nos valores já revela a dificuldade de apurar a realidade com precisão. A massa salarial de cerca de 4.200 funcionários pesa no orçamento, e o Vaticano não tem nem a elasticidade fiscal de um Estado comum nem a possibilidade de emitir dívida soberana. Com efeito, o Vaticano vive basicamente das receitas geradas por seus museus, de rendimentos imobiliários, de doações e de algumas instituições acadêmicas e hospitalares. Esse modelo é frágil, dependente de fatores externos como o turismo em Roma e a generosidade de católicos norte-americanos, que já dão sinais de saturação.

Não se trata apenas de números no papel. Os escândalos recentes minaram a confiança. Um dos casos mais significativos é o do investimento milionário em imóveis de luxo em Londres, que resultou em perdas de mais de 140 milhões de euros, deixando a imagem de uma cúria sem capacidade de discernimento econômico, vulnerável a intermediários inescrupulosos e marcada por disputas internas que terminam em tribunais. O julgamento do Cardeal Becciu e a subsequente perda de poderes da Secretaria de Estado foram humilhações públicas para a instituição. A transferência da autoridade sobre ativos financeiros da Secretaria para a APSA não foi apenas uma reforma administrativa, mas uma confissão tácita de que o coração da diplomacia papal não soubera proteger nem administrar os recursos que lhe foram confiados.

Outro caso emblemático é o de Libero Milone, que foi nomeado auditor geral em 2015 e demitido, dois anos depois, por supostamente espionar membros da Cúria. Ele afirma ter sido afastado porque descobrira fundos ocultos e resistências internas à transparência. Há anos, ele processa o Vaticano por demissão injusta e continua a alertar sobre o risco de colapso do sistema se não houver correção estrutural. “A Igreja só sobreviverá se acertar suas finanças”, declarou em entrevistas, ressaltando que, sem transparência, não haverá doadores. Seu testemunho ecoa entre aqueles que conhecem por dentro a máquina curial; não é falta de fé, é má gestão. E má gestão custa caro.

O fundo de pensão é a bomba-relógio mais evidente. Há décadas, contribuições insuficientes e promessas generosas aos empregados acumularam um déficit que já não se pode disfarçar. Para uma instituição com menos de cinco mil funcionários, um passivo potencial superior a um bilhão é insustentável. Ou haverá aportes extraordinários — o que significaria liquidar ativos, vender imóveis ou captar doações específicas — ou haverá cortes nos benefícios futuros, com implicações humanas e políticas. Francisco evitou medidas drásticas, pedindo que não houvesse demissões em massa e promovendo políticas trabalhistas. Porém a aritmética é implacável, e Leão XIV terá que escolher entre a impopularidade de ajustes dolorosos e o risco de colapso financeiro.

Se a herança que Leão XIV recebe é amarga, sua biografia pode ser uma vantagem. Robert Prevost, agostiniano vindo de Chicago, não é um diplomata de carreira nem um teólogo abstrato. Com formação em matemática, experiência administrativa na ordem religiosa, ele tem uma reputação de gestor pragmático como bispo. Embora isso não signifique que ele tenha uma varinha mágica, Prevost entende de números com clareza e pode evitar medidas drásticas que nada resolvem. Sua origem norte-americana o aproxima de grandes doadores que, historicamente, sustentam o Peter’s Pence (Óbolo de São Pedro) e outras iniciativas. Sua imagem de seriedade pode servir para reconstruir a confiança perdida, sobretudo nos Estados Unidos, onde a transparência financeira é exigência básica de qualquer instituição. Sabe-se ainda que o tema da má gestão financeira foi uma das considerações dos cardeais durante as Congregações Gerais que precederam o último conclave. Leão XIV assumiu o cargo com um mandato de pôr ordem na casa, doa a quem doer.

Nas primeiras semanas de pontificado, Leão XIV já deu sinais de que entende a gravidade do problema ao lançar uma campanha de arrecadação para reforçar o Peter’s Pence, exibindo até mesmo um vídeo na Praça de São Pedro, em junho de 2025. O gesto, contudo, é insuficiente. Campanhas emocionais podem render alguns milhões, mas não resolvem déficits estruturais de dezenas de milhões anuais. A verdadeira batalha será reequilibrar o orçamento sem comprometer a missão universal da Igreja. Para isso, não basta pedir mais doações; é preciso convencer de que o dinheiro será bem utilizado.

A solução exigirá medidas duras. O Vaticano precisará rever a gestão de seus imóveis, muitos deles subutilizados ou deficitários. A venda de parte do patrimônio é sempre uma opção polêmica, pois simbolicamente parece trair a ideia de permanência. A racionalização de recursos humanos também terá que entrar na agenda. É verdade que demitir funcionários do Vaticano é politicamente delicado e pastoralmente doloroso, mas é possível reduzir custos via aposentadorias incentivadas, congelamento de novas contratações e revisão de benefícios, sem romper abruptamente o pacto social. Francisco quis que os cardeais pagassem aluguéis pelos seus apartamentos em Roma como medida de austeridade, e proibiu os funcionários da cúria a receberem presentes ou estipêndios superiores a 40 Euros. Não se sabe se o pontificado de Leão XIV irá reforçar medidas como estas, que provaram ser impopulares e economicamente ineficazes.

A questão da auditoria é, sem dúvida, a mais delicada. O caso Milone demonstrou que a cultura vaticana resiste à transparência. Mas sem auditores independentes, a credibilidade externa continuará comprometida. Leão XIV precisa escolher: ou se alia a esse instinto de autopreservação da cúria ou confronta essa realidade, reabilitando um órgão com real independência. Não será fácil, porque tocar nos segredos financeiros da Santa Sé é tocar no nervo exposto de clérigos habituados a administrar sem prestar contas. Ed Condon tem razão: só é possível superar a crise se o papa rejeitar a cultura de encobrimento e encarar a realidade tal como é, sem meias verdades.

O dilema de Leão XIV não é teórico. Cada decisão terá repercussões imediatas. Um ajuste duro no fundo de pensão pode salvar as contas, mas gerar revolta entre funcionários e cardeais aposentados. A venda de ativos pode melhorar o caixa, mas provocará críticas de que o Vaticano se desfaz de seu patrimônio histórico. Uma campanha de arrecadação pode trazer alívio momentâneo, mas sem reformas profundas parecerá apenas mais um pedido desesperado de socorro. O equilíbrio é tênue entre a firmeza do governante e a paciência do pastor.

Leão precisará enfrentar o caos com serenidade, pois de nada adianta apertar se o resultado for apenas pânico e perdas bilionárias. Já vimos reformas radicais que terminaram em prejuízos multimilionários. Leão XIV precisa de compreensão histórica, memória institucional e inteligência prática para perfilar um futuro onde prevaleça a transparência em todas as transações financeiras da Santa Sé.

O tempo dos atalhos acabou. O Papa, que iniciou seu pontificado com a imagem de matemático e administrador, terá que provar que sabe não apenas rugir, mas também calcular. Vislumbra-se um tempo de reformas, mas estas só produzirão frutos se começarem pela reforma da cultura financeira do Vaticano. No fim das contas, talvez seja a humildade diante dos números o fator que salvará a Santa Sé do colapso.

Por Rafael Tavares – Gaudium Press 

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