Os cem dias de Leão XIV: paz duradoura ou trégua estratégica?
Leão XIV parece consciente de que o poder do Papa não está em decretar a paz, mas em conduzir com fé um povo que atravessa tempos de turbulência.
Foto: Vatican News/ Vatican Media
Redação (20/08/2025 10:04, Gaudium Press) Cem dias parecem pouco para avaliar o rumo de um pontificado, mas são suficientes para identificar sinais de estilo, de prioridades e de direções que podem marcar toda uma época.
O Papa Leão XIV ascendeu ao sólio de Pedro em circunstâncias nada fáceis, sucedendo um pontificado caracterizado por uma forte presença midiática, de debates acalorados e de um peso histórico considerável. Herdou uma Igreja em crise de identidade, em tensões internas e externas, em uma encruzilhada cultural que exige prudência e firmeza. Seus primeiros gestos e palavras, portanto, não foram apenas de rotina; foram interpretados como mensagens de fundo, sinais de estratégia e até mesmo prenúncios de um modo de governar.
Logo no primeiro dia, a imagem do novo Papa falando de paz, de simplicidade e de reconciliação marcou a memória coletiva. Como relatou a agência de notícias católicas Catholic News Agency, em sua saudação inicial, Leão XIV evocou “a paz de Cristo Ressuscitado, uma paz desarmada, humilde e perseverante”. Não era apenas uma frase piedosa; era uma declaração de intenções. O novo Pontífice queria se apresentar menos como figura de poder e mais como pastor que conduz com serenidade um rebanho sacudido por ventos contrários. A mesma agência destacou em seguida dezenas de frases que, ao longo desses cem dias, reforçaram esse tom: esperança diante das dificuldades, convite à unidade, redescoberta da centralidade da oração, da fé e da caridade como fundamentos da vida cristã. Ademais, o Papa tem feito apelos bastante diretos à paz, não poupando críticas aos atores envolvidos nos conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio.
Contudo, não foram apenas as palavras que marcaram; houve gestos significativos. O vaticanista Andrea Gagliarducci, em seu blog Monday Vatican, observou com agudeza a habilidade de Leão XIV em usar os símbolos: a escolha de uma cruz peitoral simples, a retomada de uma férula de Bento XVI, o cuidado em não se afastar da tradição, sem chocar a sensibilidade de quem buscava sinais de continuidade. Em seu olhar, o novo Papa parece compreender que a geografia da Igreja está mudando e que Roma precisa reposicionar-se não como centro político, mas como ponto de comunhão. Essa visão foi reforçada em outro artigo do mesmo analista, que ressaltou o valor que Leão atribui à comunicação: não apenas falar ao mundo, mas escutar, recolher impressões, criar pontes. Sua visita às estruturas de mídia do Vaticano foi mais do que um ato protocolar; foi uma sinalização de que a palavra da Igreja deve circular com força e credibilidade.
Talvez o evento mais impressionante desses cem dias tenha sido o Jubileu da Juventude em Tor Vergata, que reuniu mais de um milhão de jovens. Essa celebração sinalizou a intenção de Leão XIV em investir na juventude como uma força vital da Igreja. O momento em que um arco-íris iluminou o céu durante a sua chegada foi visto por muitos como sinal providencial. O Papa aproveitou a ocasião para pedir oração pela paz no mundo, reforçando seu estilo de pastor mais do que de diplomata. A cobertura da EWTN Vatican salientou a força dessa cena, que ficou gravada na memória de muitos como um marco de esperança.
No Brasil, onde a religiosidade popular ainda molda boa parte da vida social, a recepção ao novo Papa foi acompanhada com atenção. A revista Exame publicou um levantamento apontando que 38% dos brasileiros aprovam o início de seu pontificado, enquanto 29% ainda não têm opinião formada. Cerca de 45% percebem continuidade com Francisco, o que revela que, apesar das diferenças de estilo, Leão XIV não é visto como ruptura, mas como desdobramento. Este dado é especialmente relevante: em um país que possui uma das maiores populações católicas do mundo, a imagem do Papa não é apenas espiritual, mas também cultural.
No entanto, seria ingênuo pensar que cem dias bastam para definir uma direção sem ambiguidades. O próprio Andrea Gagliarducci alerta que este Papa tem mostrado, até o momento, mais gestos de estabilização do que sinais de mudança profunda. Parece evidente sua intenção de reduzir o personalismo papal e enfatizar o Ministério de Pedro como serviço à unidade. “Menos Robert, mais Pedro”, sintetizou um artigo da EWTN, recordando que o nome de batismo do novo pontífice é Robert, mas que ele escolheu encarnar a figura do apóstolo e não a do homem. Há, portanto, um esforço deliberado de não confundir pessoa e cargo, carisma individual e função eclesial. Se o pontificado de Francisco destacou-se por gestos fortemente pessoais, moldados por sua história, carisma e por certas rupturas com tradições seculares, o de Leão XIV parece, desde o início, estar repleto de simbologia: um esforço consciente de reconectar a Igreja com sua identidade romana e de devolver ao ofício petrino o protagonismo dos holofotes.
As primeiras declarações de Leão XIV também deixam entrever suas prioridades teológicas. Para ele, a fé não se limita a uma adesão intelectual, mas a uma vida vivida em esperança. “É pela virtude da esperança que desejamos alcançar a felicidade plena em Deus, mesmo diante das dificuldades”, afirmou. Este discurso retoma o núcleo da doutrina cristã em sua simplicidade, sem concessões ao modismo, evitando uma retórica pesada. Merece destaque sua ênfase na família como o primeiro espaço de apoio diante das provações da vida. Embora não se trate de uma inovação, mas de uma reafirmação, ela ganha relevância em um contexto cultural em que a instituição familiar é tão fragilizada. A clareza doutrinal nos temas da vida e da família desponta como marca distintiva do pontificado de Leão XIV, que assume a liderança de uma Igreja marcada por ambiguidades recentes nessas questões. Intencionalmente ou não, o Papa parece determinado a fechar qualquer brecha em relação à identidade da família fundada na união fecunda entre homem e mulher. A escolha da Igreja será sempre pela vida — e tudo indica que, nesse ponto, não haverá negociação.
Se olharmos em perspectiva, veremos que Leão XIV ainda não tomou decisões administrativas de grande impacto. Não houve reformas estruturais na Cúria nem novos documentos de peso doutrinário. Seu estilo, até agora, assemelha-se ao de um piloto que prefere estabilizar o avião antes de mudar de rota. Esse comportamento apresenta méritos. Após anos de intensos debates internos e de uma polarização que atravessou a Igreja, a calma pode ser considerada uma virtude, todavia também apresenta riscos, pois a pacificação pode ser entendida como comprometimento; e a serenidade, como deriva.
Ainda assim, o tom adotado pelo novo Papa parece ter diminuído as tensões. Os setores mais críticos, que esperavam rupturas, viram nele um homem de equilíbrio. Os mais progressistas, que desejavam continuidade absoluta, encontraram nele ao menos uma disposição de não retroceder. Nos temas inaugurados com força pelo pontificado de Francisco — como a sinodalidade e o cuidado com a Criação —, a continuidade parece garantida, ainda que sob um estilo diferente. E os fiéis comuns, muitas vezes distantes das disputas de especialistas, encontraram um rosto sereno que fala corajosamente da paz. É um equilíbrio frágil, mas que, nestes cem dias, funcionou.
No entanto, a questão é se essa postura será suficiente para enfrentar os grandes desafios que se avizinham: a secularização acelerada na Europa, a expansão pentecostal na América Latina, as tensões litúrgicas que dividem comunidades, a necessidade de diálogo com o islã em um contexto de guerras e de crises humanitárias, e o acordo secreto para a eleição de bispos com o governo da China. Cada um desses campos exigirá mais do que gestos simbólicos; exigirá escolhas concretas, decisões que podem desagradar, posicionamentos que marcarão para sempre sua imagem e criará inevitavelmente fricções.
Ao final de cem dias, a impressão predominante é de serenidade. Mas a história ensina que serenidades podem ser apenas pausas antes de tempestades. Leão XIV parece consciente de que o poder do Papa não está em decretar a paz, mas em conduzir com fé um povo que atravessa tempos de turbulência. Até aqui, conseguiu imprimir a ideia de que governa menos com slogans e mais com sinais, menos com espetáculo e mais com sobriedade.
Resta ver se esse estilo manso encontrará lugar diante das pressões que inevitavelmente virão. Afinal, como todo piloto que assume o manche em meio a um voo turbulento, Leão XIV precisava estabilizar o avião. A pergunta que fica é se essa pax leonina que vivemos é um movimento de estabilização ou será o status quo definitivo de seu pontificado.
Por Rafael Tavares
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