O desafio canônico herdado por Leão XIV
As reformas exigidas são vastas: um judiciário independente dentro do arcabouço da Santa Sé, uma redefinição de jurisdição entre o Estado da Cidade do Vaticano e a Igreja universal e, talvez o mais delicado, uma renovação geracional nas instâncias jurídicas.
Foto: Vatican news/ Vatican media
Redação (30/07/2025 15:07, Gaudium Press) Quando o Papa Leão XIV surgiu na loggia central da Basílica de São Pedro, muitos presumiam que seria um papado de continuidade, enquanto outros acalentavam esperanças de reformas necessárias. Entretanto, poucos imaginavam o terreno minado que ele herdaria não apenas doutrinal ou pastoral, mas também jurídico. O sistema legal do Vaticano, como demonstram os casos ainda em desdobramento de Libero Milone e Angelo Becciu, encontra-se hoje enredado em contradições tão profundas que se levantam dúvidas sobre a compreensão do conceito de justiça canônica por parte daqueles que deveriam ser seus máximos guardiães.
A recente decisão em segunda instância contra Libero Milone vai além de um simples desfecho processual; ela escancara uma lacuna. Milone, antigo Auditor-Geral do Vaticano expulso em circunstâncias que evocam um desertor da Guerra Fria, teve seu processo de ressarcimento rejeitado não por falta de mérito, mas por ambiguidade conceitual. Em 2017, a Gendarmaria Vaticana invadiu o escritório e a residência de Libero Milone, confiscando seus equipamentos e acusando-o de espionagem. Pressionado, Milone renunciou, sempre negando as acusações. O Vaticano alegou que ele investigava autoridades sem permissão. Atualmente, ele processa a Santa Sé por danos pessoais, porém seu pedido tem sido sistematicamente negado.
A linguagem da sentença revela uma desconexão ainda mais profunda. O Vaticano é descrito como carente de uma “ordem pós-revolucionária” — um eufemismo para a ausência de separação de poderes. Tudo emana do Papa; portanto, em teoria, tudo a ele retorna. No entanto, essa centralização é invocada de forma seletiva. A responsabilidade, como a névoa nas manhãs romanas, dissipa-se no instante em que se tenta agarrá-la.
Como bem observa Andrea Gagliarducci em seu último artigo no blog MondayVatican, não se trata meramente de tecnicalidades jurídicas, mas “estamos diante de uma verdadeira crise de identidade institucional”. Se os próprios tribunais vaticanos não interpretam a Santa Sé segundo sua lógica canônica, como pode a justiça ser propriamente administrada? A Santa Sé corre o risco de deixar de ser o coração da clareza moral para se tornar um labirinto jurídico.
O caso do Cardeal Becciu aprofunda ainda mais o abismo existente. Que o IOR, instituição pontifícia, processe a Secretaria de Estado, braço governativo do Papa, por uso indevido de fundos destinados ao próprio Papa, transcende a ironia. É quase uma heresia. Em termos de direito canônico, o Papa é a pessoa jurídica da Santa Sé; processar a si mesmo é um gesto digno de Kafka. Não se trata de pormenorizar a atuação do Cardeal Becciu como Substituto da Secretaria de Estado no famoso caso do investimento falido em uma propriedade de luxo em Londres, mas de garantir que ele seja processado e julgado sem arbitrariedades jurídicas.
A tudo isso se soma o fato de o mesmo Promotor de Justiça do Vaticano — Alessandro Diddi — atuar tanto na primeira instância quanto na apelação, contrariando os princípios mais elementares de imparcialidade processual. Os escândalos de escutas telefônicas, a disputa dos fundos de aposentadoria em Malta e a derrota jurídica em Londres revelam um judiciário vaticano tateando nas sombras à procura de coerência.
Vale lembrar: o Papa Francisco prometera transparência e responsabilidade. No entanto, os mecanismos erigidos para concretizar tais ideais — tribunais especiais, processos inéditos, reformas financeiras abrangentes, mudanças na Lei Fundamental do Estado Cidade do Vaticano — parecem hoje ter gerado mais confusão jurídica do que clareza institucional.
E é nesse cenário que entra Leão XIV, um religioso de formação jurídica, versado na ciência precisa do Direito Canônico. Cabe-lhe restaurar a credibilidade de um sistema judicial que perdeu não apenas funcionalidade, mas sua essência. Contudo, como desembaraçar um sistema em que o acusador é também juiz, em que os órgãos do Estado são negados como tal, e em que os recursos ecoam contradições em vez de correções?
As reformas exigidas são vastas: um judiciário independente dentro do arcabouço da Santa Sé, uma redefinição de jurisdição entre o Estado da Cidade do Vaticano e a Igreja universal e, talvez o mais delicado, uma renovação geracional nas instâncias jurídicas. Esta última pode provar-se a mais árdua, já que os rostos por trás desses processos não parecem ser facilmente substituíveis.
A tentação de suspender os recursos ainda não iniciados, deixando a poeira assentar antes de reconstruir os alicerces, é real. E talvez Leão XIV assim proceda, com a prudência de um canonista que sabe que a jurisprudência não se escreve apenas em pergaminhos, mas com decisões.
Mas não se escapa à ironia final. Em uma Igreja governada não por parlamentos, mas por sucessores de Pedro, onde a justiça deveria espelhar o divino, estamos agora discutindo escutas telefônicas, sequestros de ativos e recursos interpostos pela mesma mão que expediu a sentença original.
Sim, Leão XIV é um homem do direito. Todavia, precisará não apenas de todo seu saber canônico, como também de uma graça especial para endireitar este edifício torto. Oxalá tenha tempo suficiente no Trono de Pedro para dar um novo rumo às coisas. Felizmente, seu pontificado promete ser longo.
Por Rafael Tavares, Gaudium Press
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