Leão XIV diante da missa tradicional e o futuro da governança eclesial
A decisão de Leão XIV terá implicações que vão além da pastoral local. A manutenção, a flexibilização ou o endurecimento das restrições colocadas por Traditionis Custodes influenciarão o delicado equilíbrio entre reconciliação e ortodoxia, bem como entre tradição e autoridade.
Foto: Vatican news/ Vatican media
Redação (19/07/2025 10:22, Gaudium Press) A recente revelação de dois trechos do relatório interno do Dicastério para a Doutrina da Fé — redigido durante o pontificado de Francisco e mantido em sigilo até agora — reintroduziu na esfera eclesial uma controvérsia que parecia resolvida, ou ao menos adormecida: a questão da missa tradicional e seu lugar no coração da Igreja. Mais do que a liturgia em si, o que está em debate é o modelo de Igreja, de autoridade, de reconciliação. E a indagação, não apenas dos observadores mais atentos mas também dos fiéis, é uma só: o que fará Leão XIV com os chamados “tradicionalistas”?
O novo Pontífice, cuja eleição foi recebida com curiosidade e relativa esperança por quase todos os setores da Igreja, herdou um campo minado. A herança do Motu Proprio Traditionis Custodes, promulgado por Francisco em julho de 2021 e que restringe a celebração da missa segundo o missal de 1962, ainda repercute. Ao impor severas restrições à celebração da liturgia tradicional — aquela codificada por São Pio V e enriquecida por séculos de desenvolvimento orgânico —, Francisco não só confrontou a sensibilidade litúrgica de uma minoria pujante, como também reacendeu debates sobre o verdadeiro sentido de comunhão eclesial.
A jornalista Diane Montagna, especialista em assuntos do vaticano, foi quem obteve e publicou os trechos do relatório original enviado às dioceses do mundo inteiro em preparação ao Motu Proprio “Traditionis Custodes”. A leitura desses documentos, como observou Andrea Gagliarducci, “complica a narrativa oficial do Vaticano”. De fato, o que ali se evidencia não é um clamor episcopal pela restrição, mas uma preferência por preservar a liberdade anteriormente garantida por Bento XVI em seu Motu Proprio “Summorum Pontificum” de 2007.
Francisco, ao apresentar sua decisão, afirmou tê-la baseada em uma ampla consulta ao episcopado mundial. A divulgação dos relatórios, ainda que parcial, levanta sérias dúvidas acerca da solidez dessa justificativa. Ademais, reacende a sensação, já cultivada em certos ambientes eclesiais, de que houve uma decisão tomada “a priori”, servindo a consulta apenas como um ornamento retórico.
O Vaticano, como de praxe, limitou-se a afirmar que os documentos eram “incompletos”. No entanto, o dano simbólico já estava causado. E, em Roma, onde os gestos significam tanto quanto os documentos, os olhos se voltam para aquele que, agora, detém as chaves de Pedro.
O pontificado de Leão XIV ainda se encontra em seus primeiros meses, contudo esses períodos não são neutros. Desde a sua primeira homilia, na qual evitou qualquer menção direta aos temas espinhosos do pontificado anterior, optando por uma exortação à conversão e à centralidade de Cristo, o novo Papa tem buscado construir uma imagem de serenidade sem passividade. Sua carta aos peregrinos da tradicional peregrinação Paris-Chartres foi interpretada por muitos como um aceno — ainda que tímido — aos círculos tradicionalistas. Trata-se de um aceno, não de uma saudação de acolhimento.
Andrea Gagliarducci, em recente análise, observou que “o Papa Leão XIV ainda está escolhendo qual será o seu método de governo”. E essa escolha — mais do que a decisão pontual sobre a Missa — é o verdadeiro ponto de inflexão. Pois, se, por um lado, é verdade que a liturgia tradicional envolve apenas uma parcela restrita dos católicos, por outro, a maneira como ela é tratada revela a compreensão mais profunda que o Papa possui sobre a Igreja: é ela um organismo plural que se enriquece nas diferenças legítimas? Ou uma estrutura centralizada em que a uniformidade é condição para a comunhão?
A controvérsia litúrgica, embora teológica, apresenta traços políticos inegáveis. O conflito com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada por Marcel Lefebvre, ainda não foi superado. As excomunhões de 1988, as tratativas conduzidas sob Bento XVI, os gestos ambíguos de Francisco — como a autorização de confissões válidas pelos sacerdotes da FSSPX — e o endurecimento das regras contra a missa antiga revelam uma tensão ainda não resolvida.
Sob esse prisma, a decisão de Leão XIV terá implicações que vão além da pastoral local. A manutenção, a flexibilização ou o endurecimento das restrições colocadas por Traditionis Custodes influenciarão o delicado equilíbrio entre reconciliação e ortodoxia, bem como entre tradição e autoridade. Embora o Papa tenha demonstrado, segundo consta, interesse maior por temas como a evangelização urbana, os jovens e a inteligência artificial, ele não poderá postergar indefinidamente uma resposta.
A missa tradicional tornou-se, nos últimos anos, mais do que uma forma litúrgica, converteu-se em símbolo. Para muitos fiéis, ela representa continuidade, reverência e sacralidade. Para seus críticos, ela é sinal de resistência, nostalgia ou até rebeldia. Essa dualidade forçada — que não corresponde à realidade dos fiéis que frequentam o rito antigo — acabou por colocar o Papa em uma encruzilhada: ceder ou manter?
Porém o problema não reside apenas no conteúdo da decisão, mas sobretudo na forma como ela será tomada. Francisco, como assinala Gagliarducci, tomou sua decisão sem um verdadeiro processo sinodal. Diante das novas evidências, “Traditionis Custodes” parece ter sido imposto sem debate público, sem escuta real, numa atitude que remete, ironicamente, aos tempos pré-conciliares que tanto se quis superar. Assim, paradoxalmente, foi o próprio Francisco — adepto do “caminhar juntos” — quem reintroduziu uma lógica monárquica no exercício do poder pontifício.
Leão XIV, por sua vez, parece hesitar. Seus gestos são interpretados como sutis: evita confrontos, mas também evita decisões. Isso é prudência ou omissão? Ainda é cedo para julgar. Mas o que se sabe é que sua decisão — quando vier — revelará o seu modelo de papado.
Nas últimas décadas, muito se falou sobre conservadores e progressistas, tradicionalistas e modernistas, esquerda e direita eclesial. Todavia essas categorias parecem cada vez mais incapazes de capturar a complexidade do real. Um bispo que defende a liturgia tradicional pode estar profundamente alinhado com as reformas sociais do Papa. Um jovem que ama a missa em latim pode ser engajado em causas ambientais. A fé católica é mais rica do que os rótulos.
Leão XIV talvez compreenda isso. Ao menos, seus discursos têm evitado os clichês ideológicos. Porém, é necessário que esse entendimento se traduza em atos. O tempo da ambiguidade está se encerrando; o momento exige decisões claras — e, sobretudo, justas.
Não se trata aqui de restaurar o passado, nem de fazer concessões táticas, mas de reconhecer que a liturgia não é um campo de batalha, e sim um espaço de comunhão. Os fiéis ligados ao rito tradicional não são inimigos, são filhos da Igreja, e como tal, merecem escuta, respeito e eclesialidade.
A missão de Leão XIV não é fácil. Ele precisará escolher entre a lógica do poder e a lógica da comunhão, entre o centralismo romano e a responsabilidade subsidiária dos bispos, entre a imposição e a reconciliação, entre a prudência que constrói e o silêncio que omite.
A liturgia tradicional será, neste cenário, não o fim, mas o sinal indicativo de qual Igreja Leão XIV deseja construir.
A história julgará Leão XIV não apenas por suas decisões doutrinais, mas sobretudo pela sua capacidade de governar com justiça. Entre o empirismo litúrgico e a nostalgia militante, Leão ensaia um papado de harmonia, amparado na tradição, com rigor jurídico e diplomacia em suas melhores expressões.
Resta saber se essa equação será suficiente para dar novo fôlego à liturgia e à comunhão. Talvez ele consiga o impossível: desagradar a todos, mas pacificar muitos, o que, convenhamos, é quase um milagre em tempos tempestuosos como estes em que vivemos.
Por Rafael Tavares | Para a Gaudium Press
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