Leão XIV: o primeiro mês de Pontificado e os rumos de uma nova era para a Igreja
Espera-se que Leão XIV reassuma plenamente a vocação clássica de pontifex: o construtor de pontes; pontes entre facções dentro da Igreja, entre culturas e sensibilidades teológicas, entre o passado e o futuro, entre fé e razão, entre o centro e as periferias.
Foto: Vatican news
Redação (08/06/2025 12:10, Gaudium Press) A eleição do Papa Leão XIV representou uma mudança suave, mas decisiva na história recente da Igreja Católica. Se o conclave que o elegeu não foi particularmente longo, o mesmo não pode ser dito sobre o processo de discernimento que o precedeu. Após mais de uma década de pontificado do Papa Francisco, marcada por reviravoltas, ambiguidades teológicas e uma reestruturação profunda da Cúria Romana, a Igreja parecia ansiar por equilíbrio e clareza. Leão XIV, um norte-americano de perfil discreto, mas profundamente enraizado na tradição agostiniana, ascende ao trono de Pedro, trazendo consigo uma aura de sobriedade, harmonia e promessa de reconciliação no interior da Igreja.
Neste artigo, analisaremos o primeiro mês do pontificado de Leão XIV, e tentaremos inferir – com base nos seus primeiros gestos, discursos e nomeações – qual será o estilo e a prioridade de seu governo, seguindo as análises do vaticanista Andrea Gagliarducci, publicadas no blog MondayVatican, que oferecem insights valiosos sobre o início deste novo ciclo papal.
O escudo e o programa
O brasão de armas de Leão XIV já é, por si só, uma declaração de intenções. Ao centro, a figura do Uno, cercada por três círculos entrelaçados, recorda tanto a Trindade quanto a ideia neoplatônica de unidade que tanto fascinava Santo Agostinho. Não por acaso, Gagliarducci observa que o brasão é “o reflexo de um pontificado que buscará restaurar a ordem na complexidade”. [1]
Esse conceito — unidade na diversidade — aparece de forma recorrente nos pronunciamentos do papa. Em sua homilia inaugural, Leão afirmou que “a Igreja deve ser como a alma no corpo: unificadora, sem absorver, sem anular.” Há aqui um eco distante de Bento XVI, mas também uma crítica velada ao que muitos viram como a fragmentação e descentralização promovidas durante o pontificado de Francisco.
O Silêncio como mensagem e não omissão
Um dos traços mais marcantes de Leão XIV até agora tem sido a contenção. Como nota Andrea Gagliarducci em seu artigo de 13 de maio de 2025, intitulado “Pope Leo XIV: What will his team be like?”, “o novo papa ainda não fez nomeações decisivas, e isso não é um sinal de fraqueza, mas de método”.[2] Segundo Gagliarducci, Leão XIV parece determinado a evitar decisões precipitadas. A prudência e a escuta são seus primeiros gestos políticos — e teológicos.
Neste sentido, é possível inferir que antes de reverter temas do pontificado anterior, Leão prefira cobri-los com um reverente manto de silêncio. Este silêncio não deverá ser entendido como omissão, mas como uma forma de reconectar a Igreja com a Tradição anterior ao seu predecessor. Isso não irá contentar os opositores mais ferrenhos de Francisco, contudo, será um possível estilo de governo, ao menos nos primeiros anos. Será interessante ver como Leão lidará com os temas da Sinodalidade, Ecumenismo e Ecologia Integral.
Ao contrário de Francisco, que iniciou seu pontificado com gestos de ruptura (como a escolha do nome Francisco, a recusa de usar a mozzeta vermelha e os aposentos papais, e a suspensão temporária de várias estruturas da Cúria), Leão optou por uma continuidade simbólica, mesmo que em silêncio. Seus poucos discursos públicos até agora têm sido marcados por um tom sereno, profundamente teológicos, com referências claras aos Padres da Igreja, especialmente Agostinho e Inácio de Antioquia.
A questão da Cúria e as primeiras decisões
Embora ainda não tenha promovido grandes mudanças, é notável que Leão XIV já tenha começado a se reunir com figuras importantes da Cúria. Gagliarducci menciona que o Papa “tem escutado, discretamente, cardeais da ala mais diplomática da Igreja, e não parece disposto a adotar o estilo autocrático de decisões unilaterais”.[3]
A manutenção temporária do Cardeal Parolin e do Arcebispo Peña Parra na Secretaria de Estado, apesar do envolvimento com a gestão de Francisco, demonstra essa paciência e capacidade de transição. Mais ainda: o Papa parece estar testando a lealdade e a disposição de certos dicastérios em colaborar com uma nova mentalidade eclesial, mais unitiva e menos fragmentada.
É preciso recordar que, nos dois últimos anos, as principais transições no episcopado mundial foram conduzidas pelo Dicastério para os Bispos, liderado na época pelo então Cardeal Prevost. Isso significa que o atual Papa possui um panorama privilegiado das sedes vacantes, dos candidatos ao episcopado e das movimentações estratégicas possíveis dentro da Igreja. Ele conhece bem os perfis em jogo e poderá, com discrição, realocar membros da Cúria, os quais deseja afastar do núcleo de decisões, atribuindo-lhes sedes diocesanas — uma forma tradicional e eficaz de reequilibrar forças.
Neste contexto, especula-se que o cardeal argentino Víctor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, possa ser enviado de volta a La Plata ou a alguma outra diocese na Argentina. O mesmo destino poderia ser reservado a outros curiais europeus e personalidades influentes na atual estrutura romana. É possível que Leão já tenha um plano para cada um deles — e, mais importante, um conhecimento claro de quem os poderia substituir com fidelidade à nova orientação.
Circula também a expectativa de que Leão traga mais cardeais das Américas para cargos de relevância na Cúria. Um dos nomes cogitados para assumir seu antigo dicastério — o dos Bispos — é o do Cardeal Blaise Cupich, arcebispo de Chicago. Outro nome que surge com frequência nas conversas informais, nos cafés de Roma, é o do Cardeal Sérgio da Rocha. Sua presença em um dicastério romano daria ao episcopado brasileiro, o mais numeroso da América Latina, uma representação mais efetiva junto ao governo central da Igreja.
Dificilmente Leão XIV desmontará a estrutura da Cúria moldada pela reforma de Francisco. No entanto, é provável que a configure com membros de maior estatura intelectual e afinidade teológica com sua visão eclesial. Ao mesmo tempo, deve manter o precedente aberto por Francisco quanto à presença feminina nos dicastérios, uma inovação aplaudida em amplos setores da Igreja. Resta saber em quais posições Leão apostará na contribuição das mulheres, e se buscará aprofundar esse caminho com equilíbrio e discernimento. Circulavam rumores de que o Papa Francisco desejava nomear uma mulher para liderar a Sala de Imprensa da Santa Sé — um gesto simbólico com grande impacto institucional. Resta saber se Leão XIV retomará essa intenção, agora que o prefeito Paolo Ruffini, à frente do Dicastério para a Comunicação, aproxima-se da aposentadoria ao atingir os 70 anos, idade limite para leigos em cargos curiais.
A missa tradicional e o diálogo com os tradicionalistas
Um dos grandes desafios herdados por Leão XIV é a relação com os católicos tradicionalistas. A virtual abolição da Missa segundo o missal pré-conciliar durante o pontificado anterior gerou divisões profundas, especialmente nos Estados Unidos, terra natal do novo Papa. Embora ainda não tenha se manifestado explicitamente sobre o tema, a expectativa é grande.
Gagliarducci, em seu artigo “Leo XIV: What sort of pontificate will it be?” de 20 de maio de 2025, aponta que “o novo papa possui sensibilidade litúrgica, e não ignora o valor pastoral e espiritual da forma extraordinária do rito romano”.[4] Ainda é cedo para falar em uma reversão de Traditionis Custodes, porém, há sinais de reequilíbrio. Leão XIV parece inclinado a ver a liturgia não como campo de batalha ideológico, mas como escola de unidade.
Entretanto, é importante recordar que um dos principais ícones do tradicionalismo norte-americano, o ex-bispo de Tyler, Joseph Strickland, foi removido de seu cargo durante o pontificado de Francisco, justamente sob a supervisão do então prefeito do Dicastério para os Bispos, Cardeal Robert Prevost. Esse episódio sugere que, ao menos nesse ponto, Leão compartilha mais afinidades com a abordagem de Francisco do que os tradicionalistas talvez gostariam de admitir. A extensão do espaço que ele concederá a esses grupos será um fator decisivo para compreender seu projeto eclesial, especialmente no que diz respeito à Igreja em sua terra natal.
Vida e família na era pós-Amoris Laetitia
Outro ponto de interesse será a abordagem aos temas de moral familiar e sexual. Amoris Laetitia, documento central do pontificado de Francisco, gerou intensa controvérsia por suas ambiguidades interpretativas, especialmente no que diz respeito à comunhão para divorciados recasados.
Leão XIV, segundo fontes próximas ao novo Papa, parece inclinado a retomar o ensinamento tradicional da Igreja de maneira firme, porém elegante. “Não haverá condenações explícitas, mas o ensinamento será claro”, diz um diplomata vaticano citado por Gagliarducci.
Em vez de confrontar o legado anterior, Leão parece disposto a deixar certos documentos no retrovisor, deixando que o silêncio e o tempo façam o seu trabalho.
O problema dos abusos e um problema herdado
O Papa Francisco deixou dossiês delicados em aberto. Casos como o de Gustavo Zanchetta e Marko Rupnik mancharam a credibilidade da Igreja no trato com abusadores, especialmente quando protegidos por redes de poder e influência. O fato de Rupnik, após ter sua excomunhão levantada misteriosamente, seguir exercendo o sacerdócio na Eslovênia é um escândalo ainda sem resposta.
Leão XIV terá que lidar com esse legado de forma exemplar se quiser restaurar a confiança. Segundo Gagliarducci, o Papa “conhece bem a gravidade do problema” e vê a purificação institucional como passo necessário à unidade da Igreja. Espera-se que ele promova investigações independentes e uma política de tolerância zero, não apenas no discurso, mas na prática.
Diz o ditado popular que ninguém escolhe os pais, tampouco a herança. No caso de Leão XIV, é razoável supor que ele preferiria ter recebido um legado menos marcado por escândalos de abusos e problemas financeiros. Sem dúvida, será revelador observar como o Pontífice enfrentará esses dois espinhosos “presentes de grego” deixados pela misericórdia do seu predecessor argentino.
Unidade: tema central do pontificado?
Se Francisco usou imagens fortes para caracterizar a Igreja — um hospital de campanha, um poliedro — Leão XIV já parece ter escolhido a sua: a harmonia. Não à toa, sua primeira viagem apostólica está marcada para Niceia, cidade símbolo do primeiro grande Concílio ecumênico da Igreja e também símbolo de unidade doutrinal e eclesial.
A escolha não é acidental. Niceia é também o ponto de convergência entre Oriente e Ocidente cristão. Tudo indica que Leão deseja retomar com vigor a causa da unidade entre os cristãos, especialmente com os ortodoxos. Sendo agostiniano, Leão XIV conhece bem o pensamento de Plotino, que falava do Uno e de suas emanações. Essa imagem parece ressoar profundamente em sua espiritualidade e em sua teologia pastoral.
Conclusão: Quão alto “rugirá” Leão?
O primeiro mês de Leão XIV foi definido por silêncio, escuta e gestos discretos, porém cheios de simbologia e estratégia. Sem pressa por rupturas, o Papa se tornou modelo de reconciliação, clareza doutrinal e renovação orgânica — o que, segundo Gagliarducci, sinaliza “uma continuidade com Francisco, sem confusão nem descontinuidade abrupta”.
Se Francisco foi eleito para agitar e sacudir – como disse aos jovens da JMJ: “hagan lío” –, comparando a Igreja a um “hospital de campanha” ou a um “poliedro multifacetado”, Leão XIV parece destinado a recolher os cacos e promover a unidade. Seu nome — uma evocação a Leão XIII — e o tom de sua primeira mensagem aos cardeais remetem a uma Igreja em busca de equilíbrio e esperança, fundada num sopro de brisa tranquila mais que num trovão e num brado profético aos céus mais que num rugido aos inimigos.
É plausível que a unidade cristã seja um eixo central do seu pontificado. A sua viagem inaugural a Niceia (para celebrar os 1.700 anos do Concílio) assume papel simbólico decisivo, numa lógica agostiniana. Seu escudo e seus primeiros pronunciamentos reforçam essa perspectiva, deixando claro que a urgência é semear comunhão antes de confrontação.
Nos Estados Unidos — sua terra natal e palco de tensões litúrgicas — será crucial observar como ele receberá os tradicionalistas. O pontificado de Francisco abandonou a “forma extraordinária do rito romano” segundo a expressão de Bento XVI, abrindo feridas, e criou ambiguidades em documentos como Amoris Laetitia. Leão XIV, segundo fontes, como a de Gagliarducci, tende a “reafirmar o ensinamento tradicional com elegância” e evitar rupturas abruptas
Também é com atenção que se aguardam suas medidas sobre os escândalos de abuso — os casos de Zanchetta e Rupnik ainda não solucionados, com consequências reputacionais e jurídicas. A forma como Leão se posicionará em relação a esses “presentes envenenados” do pontificado anterior será testamento de sua sensibilidade pastoral e política.
Por fim, espera-se que Leão XIV — homem que encarna harmoniosamente três mundos eclesiais: a América do Norte, o sul global e a tradição europeia — reassuma plenamente a vocação clássica do pontifex: o construtor de pontes; pontes entre facções dentro da Igreja, entre culturas e sensibilidades teológicas, entre o passado e o futuro, entre fé e razão, entre o centro e as periferias. Sua mensagem inaugural evocou a imagem de um povo “sempre em paz, mas pronto para servir”, e seu estilo, marcado pela escuta atenta e a sobriedade de gestos, sugere que a força do seu pontificado residirá na serenidade lúcida, não na retórica tempestuosa. Talvez o verdadeiro “rugido” de Leão XIV seja a mistura de um brado eloquente com um silêncio pacificador.
Por Rafael Tavares
[1] Gagliarducci, Andrea. “Pope Leo XIV: What Will His Team Be Like?” MondayVatican, 13 de maio de 2025. Disponível em: https://www.mondayvatican.com/vatican/pope-leo-xiv-what-will-his-team-be-like
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Gagliarducci, Andrea. “Leo XIV: What Sort of Pontificate Will It Be?” MondayVatican, 20 de maio de 2025. Disponível em: https://www.mondayvatican.com/vatican/leo-xiv-what-sort-of-pontificate-will-it-be
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