Rituais xamânicos introduzem e preparam uma ordenação diaconal?
Rituais sui generis ocorreram em uma ordenação diaconal no vicariato apostólico de Aguarico, Equador. Surgem preocupações sobre a elaboração do chamado “rito amazônico”.
Redação (08/06/2025 10:45, Gaudium Press) Os rituais, que para alguns fiéis foram motivo de estranheza, ocorreram durante a ordenação diaconal de John Freddy Cifuentes Carvajal, MXY, realizada na Catedral Nuestra Señora del Carmen, no último dia 3 de junho, em El Coca, Vicariato Apostólico de Aguarico, no Equador, a leste de Quito.
Após a bênção inicial da Eucaristia, a invocação da graça de Cristo e a exortação do celebrante a reconhecer diante de Deus a condição de pecador, uma leitora anuncia o primeiro ato que será realizado. Sui generis:
É “a ‘pichana’ ou ‘limpeza’. Faz parte do rito quíchua. Um ancião sábio, com uma Chakapa (ou Vento da Selva instrumento de folhas usado pelos Xamãs em cerimônias) e tabaco, realiza a ‘limpeza’, ou seja, um ritual para afastar as más energias e harmonizar a alma e o corpo”, afirma. O rito quíchua está presente em diversas culturas dos Andes sul-americanos.
Após o anúncio da leitora, uma pessoa claramente da comunidade indígena, embora não parecendo tão “idosa”, usando um cocar com penas, acende um tabaco de diâmetro grosso ao estilo cubano, mas bastante artesanal.
Depois de acender o charuto, ele pega um galho frondoso nas mãos. O candidato a diácono se ajoelha diante do indígena, para que este agite o galho sobre sua cabeça e ombros, enquanto continua fumando o tabaco, ao som de flautas e pandeiros ao fundo. A fumaça do tabaco vai ocupando o espaço até a cabeça do ordenando.
Tornando mais visível o voo da fumaça, com um gesto ágil, o indígena vira o cigarro em sua boca (a parte de entrada já é a de saída) e quase coloca seu rosto na cabeça do ordenando, enquanto sopra fortemente o cigarro do qual agora sai fumaça abundante e intensa. Em seguida, o indígena se levanta da cadeira e continua espalhando a fumaça pela cabeça e pelos ombros do futuro clérigo, e volta a agitar a Chakapa sobre ele.
Em determinado momento, ele aponta a Chakapa para o céu, para depois voltar a agitá-la sobre o corpo do ordenando, indo de um lado para o outro.
Então, talvez para que a ação da fumaça fosse ainda mais eficaz, ele retira o charuto da boca e roça com os lábios a cabeça do ordenando quatro vezes. Posteriormente, ele pega os galhos e faz o gesto de quem varre a parte superior do corpo do futuro diácono (será a “limpeza”?), e depois traça espirais sobre ele, para então voltar a apontar a Chakapa para um canto ou outro da igreja (será a expulsão dos restos da “limpeza”?).
Durante toda a operação, o diácono permaneceu ajoelhado.
A certa altura, o indígena volta a sentar-se e faz um gesto para que o ordenando se levante. Este finalmente se inclina já de pé diante do indígena e vai para o lado direito da nave, para a cadeira que lhe está reservada, e prossegue-se a cerimônia religiosa católica.
É comum que, nesses ritos de “limpeza”, o “oficiante” invoque divindades de sua cultura, desde a Pachamama – deusa da Terra, Mama Quilla – deusa da Lua até o Viracocha – deus criador. Algum tipo de invocação desse estilo foi realizado ali? O indígena que realizou essa cerimônia quíchua de “limpeza” é católico, ou seu ritual se inscreve plenamente nas religiões pagãs pré-hispânicas, que foram civilizadas pelo cristianismo, para o benefício das comunidades?
A Gaudium Press tentou entrar em contato com o responsável litúrgico por esta cerimônia, o que não foi possível até o momento.
Cerimônias que antecipam o rito amazônico?
Como é do conhecimento geral, está em preparação o chamado “rito amazônico”, de acordo com o Marco Geral do Rito Amazônico, documento de trabalho elaborado pela Conferência Eclesial da Amazônia, que busca ser um rito sui iuris, que não se limita “à adaptação da Liturgia ou do Missal Romano”, mas que “ pretende ser expressão da configuração de uma Igreja com rosto amazônico na liturgia, nos sacramentos e sacramentais”, e também “na espiritualidade, na teologia, na iniciação à vida cristã, na liturgia das horas/oficio das comunidades, na mistagogia, no Ano Litúrgico, nos ministérios, enfim, nas estruturas e organização da própria Igreja” (Marco geral do Rito Amazônico, Introdução), ou seja, a mudança não é apenas litúrgica, mas inclui toda uma cosmovisão católica particular.
Da mesma forma, lê-se nesse documento que o novo rito que buscará sair desses trabalhos se encarna “na espiritualidade dos povos originários” e se impregna da “teologia dos povos originários”:
A espiritualidade indígena, em particular, caracteriza-se por fatores propícios à inculturação da liturgia, tais como: uma espiritualidade integral e integradora; na relação íntima e interconectada com a natureza e as/os ancestrais; rica em signos, símbolos, seres míticos viventes e sonhos; a contemplação como virtude própria.
Essa é a espiritualidade dos povos indígenas, “uma espiritualidade em relação íntima com a mãe natureza”, pois “os povos indígenas alimentam-se da mãe terra onde reside a profunda descoberta de Deus, criador de tudo, ou da existência do transcendente”.
A Síntese Narrativa do processo de escuta do Sínodo da Amazônia registra que “na compreensão integral do território, destaca-se o vínculo entre o mundo tangível e espiritual. O território não é apenas um lugar com seres físicos, mas também 27 espirituais. Nele está toda a comunidade dos vivos (pessoas), dos viventes (seres vivos) e dos antepassados (falecidos). As relações são permeadas por essa transcendência e presença do espiritual”. Nos ritos e celebrações espirituais, “tudo ganha vida, sentido e interpelação. […] é fonte inesgotável de espiritualidade, alimento e saúde”.
Mas, para os povos originários, os espíritos não são apenas os das pessoas, mas “as árvores têm espíritos, os rios têm espíritos, as plantas sentem e se comunicam, também têm espíritos, as pessoas também têm espíritos”. (Marco geral do Rito Amazônico, I. 7)
Como visto, o Marco anuncia um rito não apenas carregado de espiritualidade, mas também do que chama de teologia dos povos originários: “Um rito próprio implica uma teologia autóctone, e a Amazônia a possui, juntamente com a América Latina e o Caribe, que é a teologia indígena”. (Marco geral do Rito Amazônico, I. 8)
“Na Amazônia, especialmente nas últimas décadas, há uma busca maior pela inculturação da liturgia, levando a sério as culturas indígenas, tendo em vista uma Igreja com rosto amazônico. Nesse esforço descobre-se que os povos amazônicos estão organizados em comunidades de seres humanos, interligados com espíritos vivos e, ao mesmo tempo, transcendentes da natureza. Todos formam um mundo integrado e harmonioso, separados por uma leve cortina. Nas celebrações ou ritos religiosos essa cortina desaparece e os espíritos se relacionam e interagem diretamente. O objetivo da celebração ou rito religioso é trazer harmonia cósmica, para gestar vida em toda a criação”.
Desse modo, segundo o documento do Rito amazônica, “a integração ritual no dual e no plural permite verificar que em muitas comunidades antes da celebração com o presbítero, os rituais são celebrados com os xamãs. Ambos os aspectos não são vivenciados como opostos, muito menos como contraditórios. Fazem parte de uma totalidade vivida e celebrada”. E continua, “devemos superar a clandestinidade de algumas experiências religiosas. Avançar num rito amazônico nos permitirá sair da fé clandestina. […] O xamã, neste sentido, não tem uma missão sacerdotal, mas sim profética; a sua atividade não é mediar a eficácia do sagrado, mas dar a conhecer a sua mensagem”.
Essa missão ancestral de caráter “profético” não se limita à espiritualidade indígena e sua teologia, mas inclui também “por exemplo, a alimentação ancestral, a medicina, a saúde, as celebrações, os costumes e outras tradições herdadas dos antepassados”.
Essa “inculturação” defendida para a elaboração do novo rito não será, na verdade, a ponta de lança de uma recolonização, por via litúrgica, das crenças pagãs indígenas que o cristianismo civilizou?
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