Cardeal Christophe Pierre: o diplomata das periferias que poderia ser João XXIV
O Cardeal Pierre é reconhecido por sua habilidade diplomática e por construir pontes em um episcopado frequentemente polarizado.
Dom Christophe Pierre, na Rádio Vaticano. Foto: Vatican news
Redação (01/05/2025 09:34, Gaudium Press) Em meio às especulações sobre o próximo sucessor de São Pedro, o nome do Cardeal Christophe Pierre, 79, francês e núncio apostólico nos Estados Unidos, desde 2016, embora raramente mencionado nas listas tradicionais de “papabili”, apresenta um perfil singular que merece atenção.
Sua trajetória – marcada por experiências nas periferias do mundo e na superpotência dos EUA além de uma alta formação intelectual e experiência diplomática – o posiciona como uma figura de consenso em um futuro conclave. Sua proximidade intelectual com Francisco, aliada à sua habilidade diplomática e conciliadora, poderia ser exatamente o que os cardeais estariam procurando para um pontificado de continuidade, curto e pacífico.
Nascido em Rennes, França, em 30 de janeiro de 1946, Pierre teve uma infância atípica para um futuro cardeal. Seu pai, advogado e ex-prisioneiro de guerra, decidiu emigrar para Madagascar quando Christophe tinha apenas três anos. Lá, iniciou sua educação primária em Antsirabé. Posteriormente, completou seus estudos secundários em Saint-Malo, França, e no Lycée Français de Marrakesh, Marrocos. Essa vivência em contextos culturais diversos moldou sua sensibilidade pastoral e sua compreensão das realidades das periferias.
Pierre ingressou no Seminário Maior da Arquidiocese de Rennes, em 1963, interrompendo seus estudos por dois anos para cumprir o serviço militar. Foi ordenado sacerdote em 5 de abril de 1970. Posteriormente, obteve o título de Mestre em Teologia no Instituto Católico de Paris e o Doutorado em Direito Canônico na Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma. Essa sólida formação o distingue de muitos de seus contemporâneos e o capacita para lidar com questões complexas da Igreja.
A trajetória diplomática de Pierre é extensa e diversificada. Iniciou seu serviço na diplomacia da Santa Sé, em 1977, atuando em países como Nova Zelândia, Moçambique, Zimbábue, Cuba e Brasil. De 1991 a 1995, foi Observador Permanente da Santa Sé junto às Nações Unidas em Genebra. Posteriormente, serviu como Núncio Apostólico no Haiti (1995-1999), Uganda (1999-2007) e México (2007-2016). Desde 2016, ocupa o cargo de Núncio Apostólico nos Estados Unidos.
Nos Estados Unidos, Pierre conquistou a admiração de muitos bispos, mesmo em meio a uma Igreja polarizada. Sua habilidade de diálogo e fidelidade ao magistério do Papa Francisco construíram pontes em um episcopado dividido. Essa boa reputação pode se traduzir em votos decisivos em um futuro conclave.
Pierre expressou publicamente sua sintonia com os temas centrais do pontificado de Francisco. Em entrevista ao Vatican News, afirmou que “a polarização na Igreja vem do fato de se esquecer da concretude da realidade que sempre gira em torno das pessoas. Quando nos fechamos ou nos esquecemos das pessoas, das situações concretas, e avançamos em direção às ideias, ficamos polarizados”, destacando a importância da escuta e do diálogo para evangelizar um mundo em transformação. Sua visão pastoral, centrada nas realidades concretas e na proximidade com os pobres e migrantes, alinha-se com a proposta de uma Igreja em saída.
Apesar de sua trajetória impressionante, Pierre enfrentou críticas, especialmente relacionadas à sua atuação nos casos de McCarrick e do ex-bispo de Tyler no Texas, Joseph Strickland, demitido por Francisco após várias conversas difíceis com Pierre. A relação entre eles foi marcada por tensões, especialmente nos meses que antecederam a destituição de Strickland de sua diocese em novembro de 2023.
Rumores circularam sugerindo que o Cardeal Pierre teria afirmado a Strickland que “não existe depósito da fé”. No entanto, em entrevista ao programa “The World Over” da EWTN, Strickland esclareceu que não poderia confirmar essas palavras exatas. Ele comentou: “Não posso citar diretamente que ele disse que não existe. Ele não usou essas palavras, mas foi isso que eu ouvi”.
Além disso, Strickland relatou que o núncio o aconselhou a não enfatizar tanto o depósito da fé e a alinhar-se com o programa pastoral proposto pelo Papa Francisco. Ele afirmou: “O núncio me disse que deixasse de centrar-me no depósito da fé e que cumprisse o programa”.
Essa orientação foi interpretada por Strickland como uma tentativa de minimizar a importância do depósito da fé em sua missão episcopal. Ele expressou preocupações de que a ênfase na sinodalidade e outras reformas poderiam desviar a atenção dos ensinamentos tradicionais da Igreja.
Alguns setores consideram sua postura nesses episódios como pouco firme. Além disso, sua recusa em conceder entrevista a um repórter do canal LifeSiteNews, em geral crítico às posturas do Papa Francisco, foi interpretada por alguns como sinal de fechamento ao diálogo. Pierre, segundo fontes de Gaudium Press, negou-se a dar uma entrevista a Michael Haynes na Sala Stampa Vaticana, antes do consistório em que foi criado cardeal em outubro de 2024. Naquela ocasião, alguns interpretaram que isso seria uma contradição ao espírito de sinodalidade e escuta que Pierre prega nos Estados Unidos.
O núncio Christophe Pierre tem desempenhado um papel significativo na promoção da Renovação Eucarística no país. Em diversas ocasiões, ele expressou o entusiasmo do Papa Francisco por essa iniciativa, destacando a importância de redescobrir o poder da Eucaristia como meio de conversão do coração, compromisso com a evangelização. Durante a abertura do Congresso Eucarístico Nacional em Indianápolis, em julho de 2024, o Cardeal Pierre enfatizou que a verdadeira renovação eucarística deve ir além das práticas devocionais, promovendo a unidade e a pastoralidade na Igreja.
Em relação à sua atuação junto aos bispos americanos, o Cardeal Pierre é reconhecido por sua habilidade diplomática e por construir pontes em um episcopado frequentemente polarizado. Ele tem sublinhado a necessidade de uma conversão eucarística também entre os próprios prelados, encorajando-os a vivenciar pessoalmente a transformação que desejam para os fiéis. Vale observar que Pierre tem sabido vincular com habilidade a proposta da sinodalidade e a renovação eucarística no país.
Apesar de não ter sido convidado para a Assembleia Sinodal que discutiu o tema da sinodalidade, Pierre afirmou que a Igreja “deve ser intransigentemente pró-vida” e que ela não pode abandonar sua defesa da vida humana inocente. Ele defende uma abordagem “sinodal” para o aborto, enfatizando a necessidade de ouvir e entender, em vez de simplesmente condenar.
Quanto à sua relação com os cardeais americanos, sabe-se que Pierre mantém uma proximidade com os cardeais Blase Cupich e Robert McElroy, ambos alinhados com a visão pastoral do Papa Francisco. Sua colaboração tem sido fundamental na promoção de iniciativas que refletem os temas centrais do atual pontificado, como a sinodalidade e a atenção aos marginalizados.
No tocante à política de imigração dos Estados Unidos durante a administração Trump, o Cardeal Pierre expressou preocupações, concorde com a postura do Papa Bergoglio em defesa dos migrantes e refugiados. Ele destacou a importância de ver Cristo nos outros, especialmente naqueles que são diferentes ou que enfrentam desafios, promovendo uma cultura de acolhimento e solidariedade.
Em tempos de crescentes críticas à diplomacia vaticana — marcada por silêncios incômodos e acordos opacos — o nome de Christophe Pierre surge como símbolo de um possível retorno ao profissionalismo e à clareza. O controverso acordo entre a Santa Sé e o governo comunista chinês sobre a nomeação de bispos, cujos detalhes continuam, em grande parte, secretos, é um dos pontos mais nebulosos da atual política externa do Vaticano. Soma-se a isso a infrutífera mediação na guerra entre Rússia e Ucrânia e a dificuldade histórica da Santa Sé em manter uma posição coerente frente ao conflito entre Israel e Palestina. Diante de tais malogros, a longa e eficaz trajetória diplomática de Pierre — com passagens por realidades complexas como Haiti, México e Uganda — pode parecer aos cardeais eleitores uma correção de rumo discreta, porém urgente. Ele teria, pelo menos, a vantagem de saber quando falar… e quando não assinar.
Com 79 anos, Pierre seria uma opção caso os cardeais queiram um Papa de transição, com um pontificado curto, mas com capacidade de estabilização após as intensas transformações dos últimos anos. Sua experiência diplomática e sua afinidade com o pensamento social e sinodal de Francisco poderiam atrair votos de cardeais de diferentes regiões, incluindo África, Brasil e Europa. Pierre também é, entre os franceses no Colégio Cardinalício, o oposto de seu “concorrente natural”, o Cardeal Jean-Marc Aveline, de 66 anos. De fato, Aveline é considerado um dos vanguardistas de Francisco, contudo enfrenta dificuldades por ser jovem demais e por carecer da robusta experiência em situações de alta tensão; falta-lhe estrada. Pierre, por sua vez, tem estrada de sobra — e talvez idade na medida certa.
Entretanto, a história da Igreja mostra que papados de “transição” podem surpreender, como o de João XXIII, o qual mesmo sendo eleito aos 76 anos nesse contexto, convocou o Concílio Vaticano II. Por sua vez, Francisco, eleito com a mesma idade, foi visto por muitos como um Papa de curta duração, mas seu legado é uma reviravolta profunda na forma como o mundo vê o Catolicismo. Christophe Pierre, ainda que discreto, talvez seja o nome inesperado capaz de unir diplomacia, seriedade, continuidade e estabilidade no próximo capítulo da história da Igreja. A propósito, João XXIII também foi núncio apostólico na França, terra natal de Pierre.
Questionado pelo National Catholic Register sobre o que a Igreja Católica necessita após a morte de Francisco, Pierre disse que ela “precisa antes de tudo estar próxima das pessoas, estar atenta às reais necessidades das pessoas, especialmente dos pobres”. Ele ainda exortou os católicos a “lembrarem que Jesus os encontrou e mudou suas vidas”. Ele encorajou os fiéis a “serem testemunhas de Jesus para o mundo de hoje”. “Conheci Jesus, e isso transformou a minha vida”, disse o prelado. “E porque Jesus transformou a minha vida, não posso fazer outra coisa senão anunciar a sua presença através do meu testemunho de vida, e também por meio de minha maneira de viver [e da minha maneira de] ver o mundo”, arrematou o purpurado ao jornal católico pertencente a EWTN.
A história da Igreja já viu esse filme antes. João XXIII foi eleito com 76 anos para ser um “papa de transição”. Convocou um Concílio. Francisco também foi eleito com 76 e virou o mundo católico de cabeça para baixo. Christophe Pierre, com seus 79, parece idoso demais para ser papa — e é justamente por isso que pode vir a sê-lo. Ele tem o que falta a outros: tempo suficiente de estrada; mas não tempo demais de pontificado pela frente.
Quem sabe, talvez a história esteja prestes a se repetir, com um ex-núncio surpreendendo o mundo com o nome de João XXIV — como gracejou o Papa Bergoglio certa vez ao referir-se ao nome de seu sucessor —, ou pelo menos os vaticanistas mais distraídos que não o viram como papabile. Se ele transformará a próxima Assembleia Eclesial de 2028, onde será definida a aplicação do Sínodo da Sinodalidade, em um Concílio Vaticano III, só saberemos depois do habemus papam.
Por Rafael Tavares
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