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Dores mimadas

“O corpo é exigente e insaciável. O cristão deve tratá-lo como escravo e não como senhor. Sob pretexto de saúde, muita gente se sujeita aos caprichos despóticos da carne.” (Mons. Ascânio Brandão)

Foto: FreepiK

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Redação (27/04/2025 10:44, Gaudium Press) Cuidar da saúde do corpo não é apenas uma necessidade, mas uma obrigação. No entanto, quando esses cuidados extrapolam o limite do bom senso, a alma pode estar correndo perigo.

Nunca se praticou tanto exercício físico, nem houve tanta preocupação com a alimentação saudável e a qualidade de vida como nos dias atuais. A despeito disso, as pessoas continuam morrendo, algumas até durante a prática de exercícios.

E isso acontece por uma razão muito simples: somos seres mortais, destinados à eternidade desde a concepção. Nenhum de nós nasceu para a permanência, ainda que pareça desagradável.

O que faz bem e o que faz mal

Eu cresci vendo as pessoas trabalharem, comerem coisas normais – alimentos simples, saudáveis e saborosos –, beberem água quando tinham sede e descansarem o tempo necessário para repor suas energias.

Agora, é preciso ver se tem glúten, lactose, alérgenos, se o alimento é balanceado, livre de gorduras trans, o que combina com quê, pesar e medir as quantidades, calcular as calorias, tomar de dois a três litros de água por dia, mas não ingerir líquidos durante as refeições.

É recomendado pesar-se, auferir a pressão arterial e os batimentos cardíacos diariamente, tomar whey protein e creatina antes dos exercícios – se você não faz musculação, cross fit, Pilates, caminhada, corrida e não frequenta nenhuma academia, por favor, guarde isso em segredo, pois é tão grave quanto os pecados ecológicos, ou mais!

E, no entanto, as pessoas nunca estiveram tão doentes, tão deprimidas, angustiadas, desanimadas, intoxicadas. Visitam-se os médicos e as clínicas de estética como antes se visitavam os amigos, em busca de algo que parece cada vez mais inatingível.

E, curiosamente, enquanto aumenta a preocupação com o corpo, diminui a preocupação com a alma, o que deixa o homem cada vez mais longe da cura verdadeira.

Nada contra os exercícios físicos e a busca da saúde, mas, com certeza, menos academia e mais Igreja, mais missas e menos treinos poderia fazer um bem enorme a muita gente…

A tirania da carne

Santo Afonso Maria de Ligório, a quem tanto admiro, disse, muito sabiamente: “Pensai que, se os Santos tivessem, como vós, tanto cuidado com a saúde, nunca teriam se santificado”.

Santa Teresa D’Ávila também abordava esse assunto com muita seriedade junto de suas filhas religiosas, às quais recomendava não dar muita atenção ao corpo, explicando-lhes: “Desde que me trato com menos cuidado e delicadeza, passo muito melhor”.

E, sobre isso, Mons. Ascânio Brandão reflete, em seu Breviário da Confiança “que o corpo tratado com extrema delicadeza vai-se tornando cada vez mais exigente, com sério prejuízo para a vida espiritual”. É a tirania da carne, a qual muitos de nós se escravizam sem perceber.

Não se trata de negligenciar a saúde, mas de não colocar os cuidados com o corpo em primeiro lugar nem ter excessiva preocupação com ele. O corpo é nossa ferramenta, e ferramenta boa é aquela sobre a qual não precisamos pensar o tempo todo.

Se o corpo, a saúde, o bem-estar, os músculos ocupam boa parte da nossa atenção, e a aquisição e manutenção de bens materiais o resto, o que sobra para o cuidado com o espírito, as orações, a vida de piedade?

O corpo, sabemos para onde vai e não temos como mudar isso, porém o destino da alma está em nossas mãos, e não é “puxando ferro” que vamos adquirir estatura moral, musculatura espiritual e a salvação da alma.

O outro lado da fixação ao corpo

Por ser um tanto tímido, sempre fui mais de ouvir do que de falar, e, de  uns tempos para cá, sempre que me encontro em alguma reunião ou evento social, tenho  percebido o quanto as pessoas amam os seus corpos e até as doenças deles!

Como já tenho certa idade, é natural que a maioria de minhas interações seja com pessoas mais velhas do que com jovens.

 Ora, numa roda de idosos, metade do tempo é usada para se falar de doenças; a outra metade, de tratamentos e remédios.

Basta um falar que está com dor nas costas que logo aparecem hérnias de disco, bursite, espondiloartropatia, epicondilite, artrite, artrose, cifose, lordose, escoliose, reumatismo, osteoporose, esporão…

Todos esses nomes anotei em rodas de conversa, e estas são apenas as patologias relativas aos ossos e à coluna vertebral. Se fosse falar das doenças cardiovasculares, respiratórias, do aparelho digestivo, da pele etc., um artigo não seria suficiente para nomear todas!

A disputa para ver quem sofre mais

E há uma clara disputa para ver que doença é mais grave, e quem está sofrendo mais, por isso muitos velhinhos fazem questão de decorar os nomes de suas patologias – reais ou imaginárias – e, quanto mais complicado for o nome, mais gosto têm em pronunciá-lo!

Digo reais ou imaginárias porque, muitas vezes, é suficiente o médico aventar a longínqua possibilidade de uma doença e, mesmo sem os exames que a comprovem, os quais geralmente o doutor nem pede, por ser apenas uma leve suspeita, o idoso já sai do consultório “sentindo” todos os sintomas, para o que o Google muito contribui, uma vez que está tudo lá.

Engraçado, ocorre-me agora que a única doença da qual nunca ouço falar é a hipocondria: mania ou crença infundada de estar doente. Esta, parece que ninguém tem…

Como eu disse, metade do tempo se fala de doenças e a outra metade, de remédios. E essa parte é subdividida entre os remédios alopáticos que as pessoas tomam, já tomaram ou pretendem tomar – além de aconselharem que os outros os tomem também – e as receitinhas caseiras, que vão desde o velho chá de erva cidreira da avó até as composições mais perigosas e nocivas que circulam livremente pela internet e podem provocar reações as mais diversas, inclusive provocando o comprometimento das funções hepáticas e renais.

Compreensão necessária

Há uma competição também no nível de dor – algo praticamente impossível de se medir e comparar –, na taxa da diabetes e nos números da pressão arterial. Ninguém quer morrer, mas quase todos querem gabaritar as doenças, que gosto de chamar de “dores mimadas”, às quais muitos idosos dedicam mais atenção e afeto do que aos próprios netos.

Porém, não são apenas as doenças e mal-estares que recebem esse tratamento vip, muita gente – e aí os idosos precisam aceitar a competição dos mais jovens – possui um especial cuidado em cevar as suas dores emocionais e traumas. “Ah, aquilo que aconteceu quando eu tinha 20 anos, na minha infância…”

Existe muito mérito em sofrer, e os santos nos ensinam que sem sofrimento não se chega ao Céu. O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo nos instruiu sobre isso: “Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me” (Lc 9, 23). O problema está em ter um “gostinho” sentimental pelo sofrimento e adquirir uma dependência emocional dele.

Os sofrimentos são os degraus inevitáveis de nosso progresso espiritual, não a nossa condição de vida e, muito menos, um motivo de emulação. Há muito mais mérito em calar o próprio sofrimento do que em proclamá-lo e exagerá-lo, unindo-o aos sofrimentos de Cristo que, “[…] como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador, Ele não abriu a boca”.

Que nossas conversas não se convertam em lamúrias e disputas vãs!

Por Afonso Pessoa

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