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Francisco, o papa da ambiguidade?

Veremos se os cardeais preferirão continuar com o caminho de Francisco ou se escolherão um papa que queira unir a Igreja em torno de um claro conjunto de princípios militantes.

Foto: Wikipedia

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Redação (23/04/2025 10:15, Gaudium Press) Uma das constantes do pontificado de Francisco foi o tratamento favorável que lhe foi dispensado pela mídia secular de língua inglesa. Juntamente com as homenagens que a diplomacia internacional exige, podemos esperar que seus obituários nos principais meios de comunicação sejam benevolentes. No entanto, quando a poeira baixar, podemos começar a nos perguntar: o que exatamente o Papa Francisco se propôs a fazer, e será que ele conseguiu?

Surpreendentemente, a segunda pergunta é um pouco mais clara do que a primeira. Podemos observar os efeitos de suas ações, apesar de o Papa Francisco nunca ter feito uma declaração pública. Por exemplo, ele tomou uma série de medidas para centralizar a Igreja, enfraquecendo os poderes dos bispos para estabelecer novas comunidades religiosas e para controlar a celebração da missa em latim pré-Vaticano II (“tradicional”). Ele também criou uma vasta burocracia de “sinodalidade”, que canalizava as questões locais para Roma, onde as respostas podiam ser cuidadosamente manipuladas ou adiadas indefinidamente. No entanto, ele nunca defendeu o centralismo, insistindo que queria autonomia local, ao mesmo tempo em que impedia que os bispos conservadores americanos fizessem da missa tradicional uma parte importante de sua estratégia pastoral, que os bispos liberais brasileiros criassem diaconisas e que os bispos alemães favoráveis aos homossexuais autorizassem textos litúrgicos para uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Uma maneira de ler esse pontificado, portanto, seria em continuidade com os pontificados do Papa Bento, do Papa João Paulo II e do Papa Paulo VI: simplesmente tentando manter as coisas unidas. Poderíamos chamá-la de leitura “Rowan Williams”, uma vez que a ferramenta retórica preferida do Papa Francisco, em contraste com a de seus predecessores, não foi a persuasão, mas a ambiguidade, em uma sucessão de documentos e declarações que eram extremamente difíceis de serem compreendidos por qualquer pessoa.

Os críticos conservadores do Papa Francisco apontariam, entretanto, que suas declarações délficas (ambíguas) pareciam servir a uma função muito diferente das do Arcebispo Williams. Enquanto o primaz anglicano muitas vezes tinha que responder a declarações estridentemente redigidas e mutuamente contraditórias de partes constituintes de sua Comunhão, com uma formulação que, com um pouco de sorte, poderia ser endossada por anglicanos com uma ampla gama de pontos de vista, as declarações do Papa Francisco pareciam abrir, em vez de cobrir, as rachaduras.

Quando ele condenou a pena de morte, não chegou a afirmar claramente que ela era intrinsecamente má; suas declarações sobre o divórcio e as uniões entre pessoas do mesmo sexo se detinham um pouco antes de afirmar que essas eram desejadas por Deus. Quanto à restrição à Missa Tradicional, ele não chegou a afirmar que a diversidade litúrgica minava a unidade da Igreja. As respostas de seus vários subordinados à questão da ordenação feminina nunca chegaram a cruzar a linha de afirmar que era impossível ter mulheres diaconisas. Em cada caso, muitas pessoas, ao lerem os textos, diriam que essas conclusões estavam implícitas, mas essa era uma implicação retórica, não lógica: a distinção que permitiu Boris Johnson dizer que descrever uma afirmação como uma “pirâmide invertida de bobagens” não era o mesmo que dizer que ela era de fato falsa.

O efeito de cada um desses documentos foi rasgar os termos de uma trégua que havia sido estabelecida por seus antecessores. O Papa João Paulo II havia incentivado seus seguidores a fazer campanha contra a pena de morte na prática, embora admitisse sua legitimidade em princípio, algo com que quase todos podiam conviver, mas o Papa Francisco forçou muitos conservadores a se oporem abertamente à visão agora adotada por muitos liberais: que ela é sempre e em todo lugar errada. Seu documento sobre uniões entre pessoas do mesmo sexo fez com que conferências episcopais africanas inteiras se opusessem abertamente à prática estabelecida de grande parte da Igreja na Alemanha, o mais perto que chegamos de um cisma geograficamente definido há séculos.

Por sua vez, o Papa Bento XVI permitiu que a Missa Tradicional ocupasse um lugar de honra, mas subordinado, na Igreja, algo que a princípio despertou alguma oposição antes de se estabelecer um acordo viável. Porém a nova política do Papa Francisco introduziu uma perseguição aberta contra algumas das poucas áreas em crescimento da Igreja. Sua posição sobre diaconisas afastou seus aliados mais dedicados, os bispos da América Latina e as feministas. Mary McAleese, ex-presidente da Irlanda, respondeu chamando a Igreja de “império de misoginia”. Ao mesmo tempo, muitos conservadores enfurecidos continuaram convencidos de que o Papa Francisco ainda estava planejando ordenar mulheres em algum momento no futuro, algo que nunca imaginaram do Papa João Paulo II, apesar de ele não ter incluído o diaconato em sua rejeição à ordenação de mulheres ao sacerdócio.

Assim, em vez de uma hermenêutica de Rowan Williams, precisamos de alguma outra ferramenta para analisar a estratégia do Papa Francisco, talvez uma que tenha o nome de Juan Perón, presidente militar de seu país natal, a Argentina. Um conto apócrifo ilustrativo de Perón nos relata que, um dia, seu motorista, enquanto dirigia, lhe perguntou se ele deveria virar à direita ou à esquerda. “Sinalize para a esquerda, vire à direita”, respondeu o grande estadista.

Isso nos leva a perguntar: qual é o objetivo da ambiguidade se não for para criar pelo menos a aparência de unidade? Os cínicos nos dirão que um governante pode tirar proveito do conflito entre seus subordinados, quer participe pessoalmente para enfraquecer seus inimigos, quer fique afastado, permitindo que as facções se esgotem lutando entre si.

Essa leitura do Papa Francisco, é preciso dizer, é uma visão minoritária, porque sugere que ele estava mais interessado no exercício do poder do que na imposição de um conjunto específico de políticas na Igreja. Para aqueles que estão profundamente engajados nas diversas batalhas ideológicas que o Papa Francisco desencadeou, tal atitude parece inconcebível, mas a história está repleta de líderes não ideológicos, que gastam seu tempo esmagando rivais, recompensando amigos e criticando os tipos de pessoas de quem não gostam.

Veremos se os cardeais preferirão continuar com o caminho de Francisco ou se escolherão um papa que queira unir a Igreja em torno de um claro conjunto de princípios militantes. O tempo do Papa Francisco no poder tornou esse último projeto muito mais difícil. Talvez seja melhor aconselhar o novo papa a falar pouco e se concentrar em acalmar os ânimos: em outras palavras, para usar uma frase de São Francisco, ser um instrumento de paz.

Por Joseph Shaw

Tradução do artigo de Joseph Shaw em First Things

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