Quando a caridade afasta de Deus
Jesus disse: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes, nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim”, mas Ele também disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”.
Redação (13/04/2025 16:51, Gaudium Press) Nos últimos tempos, um religioso carmelita tem levado um grande número de pessoas a rezarem o Rosário de madrugada, reacendendo a fé de muitos e a crítica de outros tantos. E, há poucos dias, um dos críticos, também religioso, fez um comentário irônico: “Pode rezar o Rosário às 4 da manhã, mas, às 6, vai dar café para os moradores de rua.” Ou seja, você “até pode rezar”, desde que faça a caridade…
Há muitos aspectos dentro dessa situação. O primeiro é que todo católico, verdadeiramente católico, deve recitar todos os dias o Rosário, ou ao menos um terço, sem precisar de um incentivo especial para isso. É algo que deve fazer parte da sua piedade, do seu dia a dia, como fazem os Santos.
A vida de oração ideal e a realidade…
No entanto, sabemos que, na prática, infelizmente, isso não acontece. Então, externo o meu reconhecimento ao frei que incentiva essa ação piedosa a um número tão expressivo de pessoas, pelo menos durante a Quaresma.
Mas a esse fervor deve se unir um questionamento dos fiéis católicos: por que uma prática que deveria ser normal e constante atrai multidões, como se fosse algo completamente novo?
Sem dúvida, uma das respostas se encontra na realidade de que se esfriou a fé de muitos, e um incentivo parece ter o poder de despertar da letargia. Graças a Deus, ainda há bons pastores que lembram ao rebanho a importância da oração, sobretudo, a oração do Rosário, pedida em diversas ocasiões por Nossa Senhora.
Que esse compromisso não seja uma prática fugaz, apenas nas madrugadas da Quaresma, mas parte integrante da vida devocional de todo católico, no tempo que lhe for mais propício, seja de madrugada ou em qualquer outro horário, mas que não se durma sem rezar o Rosário.
A oração que enfurece o demônio
Outro ponto a ser levado em consideração é que qualquer oração incomoda o inimigo de Deus, mas a reza do Rosário o enfurece. Se você quer derrotar o demônio, reze o Rosário todos os dias!
Logo, não há muita novidade nas críticas que o frei tem recebido; com certeza ele não é o único que as recebe, apenas isso se tornou mais visível devido à popularidade que ele conquistou. Mas, no mundo em que vivemos, rezar e incentivar outros a rezarem, infelizmente, não é bem visto.
Por outro lado, a prática da caridade também é muito importante, tanto que as Sagradas Escrituras afirmam que “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 26). No entanto, a obra sem fé é um desastre completo!
Todo aquele que reza sabe que Nosso Senhor Jesus Cristo prescreveu a caridade e que ela deve ser tão natural para o católico como respirar ou alimentar-se. É praticamente impossível encontrar uma pessoa de fé que não pratique a caridade, que não ajude seu irmão. Mas tem muita gente que faz o bem sem uma gota de fé. O nome disso não é caridade, é assistência social.
Se ele desse pão no lugar da oração…
Se o mesmo frei, em vez de reunir uma quantidade extraordinária de pessoas para rezar e meditar a Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo todos os dias, saísse às ruas para dar pão a quem tem fome, certamente estaria fazendo muito menos bem às almas, e agradando menos a Deus do que incentivando a oração e a intimidade com Cristo, como tem feito.
As pessoas que se levantam mais cedo e se reúnem para a oração (ainda que virtualmente) logo em seguida saem de suas casas para trabalhar, muitas deixam os filhos pequenos, outras saem à procura de trabalho para garantir o sustento de suas famílias. E, não há dúvida que, quando um reza, toda a família acaba sendo beneficiada, pois aquela pessoa está trazendo Nosso Senhor Jesus Cristo e Maria Santíssima para dentro da sua casa, para dentro da sua vida; ao passo que aquele que dá o pão vai encontrar todos os dias as mesmas pessoas à espera do pão porque sabem que alguém vai lhes levar o sustento, sem que isso as modifique espiritualmente e nem impeça que, no dia seguinte, elas voltem para receber o mesmo pão, das mesmas mãos, alimentando uma situação que não muda, e que reforça a decadência.
Quando a caridade rouba o tempo da oração
Outro aspecto que chama muito a atenção e precisa ser considerado é que muitos daqueles que praticam a caridade, mesmo que o façam com as melhores das intenções – e não apenas por autopromoção – não encontram tempo para rezar. E, quando a caridade nos rouba o tempo da oração, é sinal de que as coisas vão mal, muito mal…
Rezar é tão importante que Nosso Senhor Jesus Cristo, o próprio Deus feito Homem, se retirava constantemente para orar, afastando-se da multidão, e assim ensinava aos seus discípulos. Muitos ensinamentos Ele nos deu com palavras, mas a oração foi nos dada com o seu exemplo, assim como a caridade.
Sem dúvida, no dia do Juízo, a caridade que fizermos será levada em conta, sobretudo se a fizemos por amor a Deus e não por nós mesmos, mas, se não tivermos levado uma vida de oração, se não tivermos tido intimidade com Deus, certamente Ele nos dirá: “Quem é você? Eu não o conheço!”, porque a caridade feita por egoísmo ou por qualquer outra motivação que não seja fazer a vontade de Deus pode ter o efeito reverso de nos afastar d’Ele.
Quando Jesus está perto de nós?
No que tange à preocupação com os pobres, hipócritas sempre existiram; nos Evangelhos, temos um claro exemplo disso:
“Jesus se achava em Betânia, em casa de Simão, o leproso. Quando ele se pôs à mesa, entrou uma mulher trazendo um vaso de alabastro cheio de um perfume de nardo puro, de grande preço, e, quebrando o vaso, derramou-lho sobre a cabeça. Alguns, porém, ficaram indignados e disseram entre si: ‘Por que esse desperdício de bálsamo? Poderia ter sido vendido por mais de trezentos denários, e serem dados aos pobres’. E irritavam-se contra ela. Mas Jesus disse-lhes: ‘Deixai-a. Por que a molestais? Ela me fez uma boa obra. Vós sempre tendes convosco os pobres e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem; mas a mim não me tendes sempre’” (Mc 14, 3-7). A mesma passagem é narrada por São Mateus (Mt 26, 6-13).
E quais são os momentos que temos a Jesus mais perto de nós? São exatamente os momentos de oração, as Missas, os terços, as meditações. Porém, se abrimos mão desses momentos em detrimento de fazer a caridade, levando diuturnamente o mesmo pão, para as mesmas pessoas, sem rezar por elas, sem evangelizá-las, sem lhes falar de Deus e lhes mostrar as verdades da fé, poderemos estar fazendo a elas mais mal do que bem.
Sem contar que quem não reza faz mal a si mesmo, à própria alma, podendo facilmente passar da caridade à revolta e à adesão a falsas doutrinas que visam deformar a verdadeira mensagem de Cristo e corromper a sua Igreja.
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”
Sim, Jesus incentivou a caridade e disse palavras muito fortes a respeito delas: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes, nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim”, mas Ele também disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”.
Portanto, se a nossa caridade não for feita em Cristo, por Cristo e com Cristo, ela será seca e estéril como um deserto. Façamos o bem, acolhamos e auxiliemos os irmãos necessitados, na medida de nossas possibilidades, mas não nos esqueçamos de entregar o cuidado deles nas mãos de Deus para não corrermos o risco de acreditar que o mundo mudará por nossas mãos e nossas ações.
Coincidentemente, enquanto meditava sobre essa questão do Rosário da madrugada e das pesadas críticas ao frei que o promove, deparei com um texto do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira no qual ele denuncia o chamado “apostolado de infiltração”[1]: o “desejo de levar a toda a parte o apostolado sugeriu a muitos apóstolos leigos que era indispensável que ingressassem em ambientes inconvenientes ou até francamente nocivos, para aí levar a irradiação de Nosso Senhor Jesus Cristo, e converter as almas”.
Dr. Plinio deixa claro que “toda a tradição católica vai em sentido diverso: nenhum apóstolo, salvas situações excepcionalíssimas, e, portanto, raríssimas, tem o direito de entrar em ambientes em que sua alma pode sofrer detrimento”.
E, à pergunta sobre quem, então, há de salvar aquelas almas que se encontram em ambientes onde nunca entra uma influência católica, onde jamais uma palavra, um exemplo, uma centelha de sobrenatural penetra, se são condenados em vida e têm desde já o inferno por partilha, ele responde com o dom da sabedoria que o caracterizava, evocando as aparições de Jesus após a Ressurreição:
“Assim como não há paredes materiais que resistam a Nosso Senhor, que a todas transpõe sem as destruir, assim também não há barreiras que detenham a ação da graça. Onde não pode, por um dever da própria moral, penetrar o apóstolo militante, aí penetra, entretanto, por mil modos que só Deus sabe, a sua graça. E é a graça de Deus e não a ação do homem que fará os verdadeiros milagres.”
E arremata, declarando que, “não há melhor nem mais eficaz apostolado de infiltração do que aquele que realizam as religiosas contemplativas, fechadas pela sua Regra Monástica entre as quatro paredes de seu convento. Beneditinas, Carmelitas, Dominicanas, Visitandinas, Clarissas, Sacramentinas, eis as verdadeiras heroínas do apostolado de infiltração”.
Portanto, seja acordando às 4 horas da manhã para acompanhar o Rosário do Frei Gilson ou na hora mais adequada à sua realidade, reze. Reze todos os dias. Faça do Santo Rosário a sua fortaleza e, sempre que possível, pratique a caridade, preferivelmente, sem fazer alarde; algo apenas entre você e Deus, que não precisa ser publicado ou visto pelos homens.
E não se esqueça de que a sua oração constante e sincera por alguém que sofre pode fazer por ele muito mais do que o pedaço de pão que mata apenas a fome momentânea. De fato, quando este gesto não é feito por amor a Deus, não abre as portas para a graça.
Por Afonso Pessoa
[1] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Em defesa da Ação Católica. Parte IV, Cap. 3: “O apostolado da infiltração”. São Paulo, Artpress.
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