São Lourenço Justiniano e a arte da guerra
Descendente da importante família dos Giustiniani, São Lourenço nasceu na cidade de Veneza, em 1380. Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que impunha respeito e admiração.
Redação (01/03/2025 15:13, Gaudium Press) Aos dezenove anos, São Lourenço teve uma visão de Nosso Senhor que lhe recomendava entregar-se inteiramente a Ele. Atendendo ao apelo divino, incorporou-se no convento da Ordem dos Cônegos Regulares de São Jorge, na ilha de Alga, perto de Veneza. “Regulares” porque viviam em comunidade, sujeitos a uma regra.
Ordenado sacerdote, pouco depois foi eleito Geral de sua Ordem. Aplicou-se de tal modo a restaurá-la que é considerado seu segundo Fundador.
Indicado para ser Bispo de Castello, perto de Veneza, não quis aceitar, mas o Papa Eugênio IV o nomeou para o cargo, em 1433. Com sabedoria, ele pacificou as dissensões que agitavam a República aristocrática de Veneza. Fundou quinze mosteiros e velou pelo esplendor do culto divino.
Em 1450, tornou-se o primeiro Patriarca de Veneza. Combateu a decadência do clero e é considerado precursor da reforma eclesiástica que São Carlos Borromeu empreenderá em Milão, depois do Concílio de Trento.
Passados alguns anos, foi atingido por forte febre e percebeu que a morte se aproximava; rogou que o deitassem no chão, sobre a palha. Os mais destacados membros do Governo iam visitá-lo e pediam sua bênção.
No dia 8 de janeiro de 1456, entregou sua alma a Deus.[1]
Força e astúcia
Escreveu diversas obras, entre as quais “A árvore da vida ou os doze frutos da Fé”, onde afirma:
É próprio aos combatentes de Jesus Cristo desejar o tempo da guerra mais que o da paz, e os trabalhos mais penosos a uma perigosa ociosidade. Pois a preguiça enfraquece muito as virtudes, e a guerra as fortifica.
Eis porque, cheios de magnanimidade, cobertos com suas armas poderosas, eles se lançam contra o inimigo, estimando mais morrer com glória e honra do que fugir covardemente.
No campo físico, uns combatentes procuram vencer o inimigo pela força, outros pela astúcia. Seria um erro na arte da guerra usar somente um desses meios.
O leão e a serpente
Essa regra deve ser aplicada ao combate espiritual. Aquele que quer destruir os inimigos de sua salvação precisa ter força e fineza de espírito. Se lhe faltar uma ou outra será facilmente vencido porque os inimigos contra os quais lutamos possuem as duas.
Sobre a força do demônio, São Pedro o compara a um leão. A respeito de sua esperteza, diz o Gênesis que a serpente era o mais astuto dos animais e seduziu Eva por sua habilidade maliciosa.
Se quiserdes combater somente com a força, vosso adversário vos enganará por seus artifícios. Se empregardes apenas a astúcia, sua força vos esmagará. Buscai, pois, uma e outra. Sede fortes contra os rugidos do leão e prudentes contra a malícia da serpente.
Pedi, então, o socorro de Jesus, o Leão de Judá, que vos concederá a graça da força do leão e a sagacidade da serpente para obter a vitória contra o demônio e seus asseclas.[2]
Piedade que impunha respeito e admiração
Sintetizamos, a seguir, alguns comentários feitos por Dr. Plinio Corrêa de Oliveira sobre o tema.
Notem esta formulação apresentada a respeito da piedade do Santo: Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que impunha respeito e admiração.
Em nossos dias se diria que o jovem muito piedoso é misericordioso e amável para com todo mundo. Porque só se concebe a piedade enquanto causando ternura. Não nego que a piedade também possa causar ternura, mas colocar esse sentimento como nota preponderante é um absurdo.
Sendo moço, São Lourenço entrou para uma Ordem religiosa tão decadente que precisou de uma reforma. E seus membros o elegeram como Geral, deixando-se restaurar por ele.
Qual é o santo que hoje conseguiria ser admitido em certas Ordens religiosas decadentes? E, admitido, conseguiria ficar? E, permanecendo, far-se-ia eleger como Geral? E, eleito Geral, lograria reformar os outros?
Contudo, esse homem reforma sua Ordem e, em vez de tornar-se execrado, é nomeado Arcebispo de Veneza. Ele intervém em tudo, reconcilia facções, combate a imoralidade. Quando se poderia esperar que fosse expulso, é elevado a Patriarca. Eram outros tempos…
O combate físico e o espiritual
Ele se refere a duas espécies de combate: em primeiro lugar, ao combate físico — aludindo aos antigos gladiadores que desciam à arena para lutar – e às regras que o presidem; depois, por analogia, o Santo deduz normas que dirigem o combate espiritual, aquele que o homem deve travar contra os seus inimigos internos, ou seja, suas paixões desordenadas e a ação do demônio dentro de sua própria alma.
Assim como na pugna física é necessário que o guerreiro, ora pela astúcia, ora pela força, saiba vencer as batalhas, também no terreno espiritual devemos ser astutos e fortes contra nossos adversários. E se nos faltar qualquer uma dessas duas qualidades — fortaleza ou astúcia—, perdemos nossa batalha na vida espiritual.
São Lourenço explica como o demônio foi altamente forte quando, com sua cauda, levou uma terça parte dos anjos do Céu para o abismo, isto é, o Inferno.
Entretanto, com Adão e Eva ele não manifestou força, mas astúcia, arquitetando uma tentação toda cheia de lábia, de artimanhas para induzir os nossos primeiros pais ao pecado.
Falseamento da espiritualidade católica
Eu gostaria de fazer uma reflexão para compreendermos o rumo que certas coisas tomaram dentro do falseamento da espiritualidade católica.
As pinturas do demônio o apresentam como astucioso e forte, e as dos Anjos habitualmente os mostram apenas sorridentes, amáveis, bonachões. Dão, portanto, uma ideia deformada, porque unilateral, da natureza dos Anjos.
A bondade e a afabilidade são sumamente convenientes à representação destes. Mas eles são fortes também. Há um coro angélico chamado Potestades o qual, segundo São Tomás de Aquino, têm a missão especial de derrubar todos os obstáculos que se erguem contra a vontade de Deus no universo.
Por outro lado, são sumamente sagazes. Nosso próprio Anjo da Guarda, por exemplo, nos dá bons conselhos, impulsos de alma ajustados exatamente ao nosso estado de espírito, com toda a inteligência e a diplomacia que se pode imaginar num espírito de uma capacidade imensamente superior à nossa![3]
Por Paulo Francisco Martos
Noções de História da Igreja
[1] Cf. GUÉRRANGER, Prosper. L’année litiurgique-Pentecôte. 4. ed. Paris : Librairie H. Oudin. 1901, p. 156-162. ROHRBACHER, René-François. Histoire universelle de l’Église Catholique. Paris : Louis Vivès. 1847, v. 22, p. 170.
[2] Cf. SÃO LOURENÇO JUSTINIANO. L’Arbre de vie ou les douze fruits de la foi. Paris: Ambroise Bray. 1858, 408 p.
[3] Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. São Lourenço Justiniano: força e astúcia. in Dr. Plinio. São Paulo. Ano 17, n. 190 (janeiro 2014), p. 30-33.
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