“E os dois serão uma só carne”
A liturgia deste 27º Domingo do Tempo Comum nos apresenta, em palavras da Revelação, uma perfeita síntese da moral católica a respeito do matrimônio.
Redação (06/10/2024 10:22, Gaudium Press) A primeira leitura (Gn 2,18-24), extraída do Gênesis, explica claramente por que Deus criou o homem e a mulher.
Ao criar o primogênito do gênero humano, Deus pôs em sua alma o instinto de sociabilidade, que se manifesta pela necessidade de uma companhia e por um desejo inextinguível de amar e de ser amado. Depois de o introduzir no Jardim do Éden, disse Ele: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18a), e fez desfilar diante de Adão todos os animais — que no Paraíso lhe obedeciam[1] —, a fim de que lhes desse um nome. Terminado, pois, o cortejo da fauna criada por Deus, Adão desencantou-se, porque “não encontrou uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,20), e se sentiu só.
Uma vez que chegou a esta conclusão, “Deus fez cair um sono profundo sobre Adão” (Gn 2,21) — já que era conveniente causar-lhe surpresa — e retirou-lhe uma das costelas, da qual formou Eva. Bem poderia ter modelado outro boneco de barro, mas preferiu tirá-la dele, visando deixar patente que um era feito para o outro. Deste modo, promovia entre ambos uma união completa.[2]
Uma pergunta formulada com perversa intenção
“Naquele tempo, alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-Lo à prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar–se de sua mulher” (Mc 10,2).
Encontrava-Se o Divino Mestre evangelizando “a região da Judeia, além do Jordão” (Mc 10,1). Enquanto ensinava as multidões, os fariseus, adeptos de uma moral de exterioridades, se aproximaram d’Ele. Não queriam aprender, mas destruir, como ressalta São Beda: “É de se notar a diferença que há entre o espírito do povo e o dos fariseus: o primeiro vem para ser instruído pelo Senhor, para que cure seus enfermos, […] os últimos, para enganá-Lo, tentando-O”.[3]
A Sabedoria Divina desmonta uma armadilha humana
“Jesus perguntou: “O que Moisés vos ordenou?” (Mc 10,3)
Nosso Senhor é a Sabedoria Eterna e Encarnada e, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não só conhece tudo, desde toda a eternidade, como também contempla tudo num perpétuo presente, pois para Ele não há passado nem futuro. Para Ele, então, não constituía novidade o fato de Lhe apresentarem tal problema.
Sabendo qual era o péssimo intuito dos fariseus ao montar aquela armadilha, Jesus responde com inteira naturalidade e de modo peremptório, indo diretamente ao ponto aonde tencionavam levá-Lo. Os interpeladores, uma vez descobertos, tiveram que confessar suas intenções.
A primitiva pureza do matrimônio é restabelecida
“No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe!” (Mc 10,6-9).
Nesta passagem, o Salvador consagra o matrimônio na Nova Lei, restabelecendo o vínculo conjugal exclusivo e perene, que só a morte pode desfazer. Com efeito, este não permanece no Céu, como Jesus esclarece mais tarde, a propósito de uma discussão com os saduceus (cf. Mt 22,30); trata-se de uma aliança permanente apenas nesta vida. O casamento é uma vocação, e os que forem chamados a abraçá-la hão de deixar seus pais “e os dois serão uma só carne”.
O contrato natural elevado a Sacramento
Nosso Senhor Jesus Cristo elevou o matrimônio — de si um contrato natural — à categoria de Sacramento. Na celebração das núpcias, os ministros são os próprios nubentes. Ao pronunciarem a fórmula pela qual manifestam o consentimento para sua união, além de terem aumentada a graça santificante, lhes é dada uma assistência especial para mais facilmente manterem a fidelidade mútua e cumprirem os deveres de seu novo estado.
União de dois que resolveram abraçar juntos a cruz
Isto quebra a ideia romântica ― tão difundida pelas produções cinematográficas de Hollywood e pelas novelas televisivas ― de que a vida matrimonial é uma realidade feita de rosas… Sim, há rosas perfumadas, de pétalas muito bonitas, mas com caules crivados de espinhos terríveis… Porque não existem dois temperamentos iguais! Se não há dois grãos de areia ou duas folhas de árvore idênticas, menos ainda duas criaturas humanas, pois quanto mais se sobe na escala dos seres, maior é a diferença entre eles.
Não nos iludamos! Em qualquer estado de vida, o verdadeiro caminho a ser trilhado é o da cruz! Depois do pecado original, ela sempre estará presente no convívio social, havendo desavenças e desencaixes inclusive entre esposos. Falsa seria a afirmação de que é possível existir um casal tão inteiramente harmônico, que cada um dos consortes nunca tenha de fazer esforço para adaptar-se ao outro. Daí a importância do Sacramento, que “purifica os olhos da natureza, faz suportáveis as desgraças, enternecedoras as enfermidades, amáveis a velhice e os cabelos brancos. A graça torna o amor paciente. Ela o fortifica face ao choque dos defeitos com que ele se deparou”.[4]
Age com grande insensatez quem se baseia na estrita beleza física ao contrair matrimônio, esquecendo-se de que, com o correr dos anos, a fisionomia e a pele vão adquirindo outra aparência… Pior ainda é o erro no qual incorre quem se casa por sensualidade, acreditando na mentira de que a felicidade está em dar vazão a paixões voluptuosas no relacionamento matrimonial. Neste não pode haver libertinagem; cada um deve respeitar a si mesmo e o outro, tendo como objetivo a prole.
Soltar as rédeas das paixões é inconcebível em qualquer circunstância, pois o combate a elas é o cerne de nossa luta e de nossa cruz!
Extraído, com adaptações, de:
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2014, v. 4, p. 403-419.
Por Guilherme Maia
[1] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 96, a. 1.
[2] Cf. Idem, q. 92, a. 2; a. 3.
[3] SÃO BEDA. In Marci Evangelium Expositio. L. III, c. 10: ML 92, 229.
[4] MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. La sainteté du mariage. In: Exposition du Dogme Catholique. Grâce de Jésus-Christ. V – Mariage. Carême 1887. 10.ed. Paris: P. Lethielleux, 1903, v.XV, p. 41.
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