Santo Oto de Bamberg: de chanceler de Lúcifer a embaixador de Cristo
Santo Oto estava persuadido de que a santidade monástica era a chave para sustentar a prática da virtude, tanto no clero quanto nos leigos, razão pela qual deitou grande esforço em estimular a vida religiosa, a ponto de receber o cognome de pai dos monges.
Redação (30/06/2024 09:10, Gaudium Press) Nenhum poder é dado aos homens senão do Alto (cf. Jo 19, 11), o que corresponde a dobrar os joelhos diante de Cristo e reconhecer que tudo lhe vem d’Ele; quando se nega a tal, apropria-se daquilo que não lhe pertence, ambiciona ocupar o trono de Deus, assim como outrora o príncipe dos Anjos. Fazendo isso, o governador se muda em usurpador, César transforma-se em Lúcifer.
Pois bem, em plena Idade Média, no coração da Civilização Cristã, Lúcifer ganhou um novo nome: Henrique.
O mundo que Oto conheceu quando jovem
Famosa é a querela promovida pelo imperador Henrique IV em torno da investidura laica, isto é, da possibilidade de um leigo conferir cargos eclesiásticos. Os interesses políticos do monarca levavam-no, entre 1075 e 1076, a revoltar-se contra a Santa Sé, nomear Bispos para diversas dioceses e caluniar o Papa São Gregório VII. Este último o excomungou em seguida, depondo-o do trono.
Após uma pretensa conversão, que o levou a bater, descalço em pleno inverno europeu, às portas do Castelo de Canossa, Henrique insubordinou-se outra vez e foi novamente deposto em 1080, elegendo um antipapa numa tentativa de vingança.
A notícia de tais convulsões abalou a Cristandade inteira e, naturalmente, o império em especial. Podemos tomar como certo que elas chegaram aos ouvidos de um alemão de dezoito anos chamado Oto; quiçá tenha sido a primeira ocasião na qual a vida do imperador excomungado afetou a daquele jovem, e certo é que, infelizmente, não foi a última…
O rio dos acontecimentos desemboca na corte de Henrique
Na verdade, julgamos possível que Oto já não morasse na Alemanha quando da segunda deposição do imperador. Nascido de família nobre, mas desprovida de recursos, o rapaz de boa cultura, memória singular e elegante aparência decidiu migrar à Polônia, a fim de ganhar a vida como preceptor de crianças. Em pouco tempo, seus dotes diplomáticos lograram a benevolência dos grandes do país, inclusive do próprio duque da Polônia, Boleslau III.
A amizade entre ambos chegou a tal ponto que, quando este último enviuvou, no ano de 1085, Oto, já sacerdote, serviu de instrumento para arranjar o novo matrimônio, engajando-se numa delegação para pedir a mão da noiva. A futura consorte não era ninguém menos do que Judite, irmã de Henrique IV. Naquela época iniciou-se o relacionamento entre o imperador e ele, relacionamento este que haveria de estreitar-se bastante: alguns anos depois, Oto seria convocado à corte.
É difícil imaginar a delicada situação de consciência do clérigo que, enquanto se dedicava aos ofícios litúrgicos na capelania real, ia penetrando cada vez mais – talvez instintivamente, talvez sem mesmo desejá-lo – na confiança e na amizade daquele rei, por sua vez a diversos títulos inimigo da Igreja. Segundo consta, Santo Oto o teria admoestado a retornar à unidade visível do Corpo Místico e à submissão ao verdadeiro Pontífice. De qualquer forma, isso não bastou para desmerecê-lo junto a Henrique, que o nomeou chanceler. E ainda era só o começo…
Uma encruzilhada no monte de São Miguel
Por ocasião do Natal de 1102, estando há alguns meses vacante a sé episcopal de Bamberg, o monarca cismático reuniu as mais ilustres figuras eclesiásticas de seu entourage, a fim de anunciar-lhes oficialmente quem seria o prelado da diocese.
Cena paradoxal: a procissão ajaezada com toda a pompa de um império, circundada de cruzes, subia ao topo de um monte dedicado a São Miguel, a fim de conhecer o futuro guardião do rebanho de Bamberg – seu futuro Anjo, segundo o termo empregado pelo Apocalipse para referir-se aos Bispos (cf. Ap 1–3). Presidindo o cortejo, no centro de todas as atenções… Lúcifer. Sim, pois Henrique fazia aquela investidura sem autorização do Papa.
Enquanto os legados cochichavam acerca dos possíveis candidatos, Henrique tomou a mão de Oto e proclamou: “Eis que este é o vosso senhor, este é o Bispo da Igreja de Bamberg”.
Houve um clamor de descontentamento na assembleia. Ninguém esperava esse nome. Henrique IV defendeu seu eleito com a truculência que lhe era própria e fez cessar as discussões no ambiente, mas não foi capaz de calar a perturbação na alma de Oto.
Ao receber a notícia, o jovem clérigo começou a chorar, lançou-se aos pés do imperador, suplicando que o múnus não fosse conferido a ele, pobre e indigno. Contudo, tal reação só fez solidificar Henrique em sua convicção de que havia escolhido o homem certo, afinal, a humildade e o desinteresse são o berço da lealdade. No fim, Oto aceitou a investidura.
Claustro sagrado e impenetrável da consciência
Um ato de pusilanimidade? Uma prevaricação? Teria sua amizade pessoal com o monarca falado mais alto do que a submissão a Roma?
O fato de Santo Oto estar canonizado pela Igreja não impede, per se, o surgimento de perplexidades desse gênero. Afinal, como determinar o momento exato em que alguém atravessou os umbrais da santidade?
Acresce que o estudo da História jamais constituirá uma ciência exata; um mesmo ato pode resultar virtuoso ou pecaminoso, conforme a intenção com a qual é realizado. Trata-se de um discreto matiz, sim, mas tão decisivo quanto aquele que diferencia a composição molecular do carvão e a do diamante.
Estratégia de guerra?
Com efeito, o futuro Bispo de Bamberg encontrava-se numa posição delicada. Infiltrado no olho do furacão, no cerne duro do adversário, poria tudo a perder com um passo em falso. Ele já havia renunciado a duas tentativas de nomeação ao episcopado. O que ocorreria após uma terceira?
Pesa muito em seu favor o fato de, uma vez aceito o cargo, ele haver determinado que jamais se manteria nele sem uma ratificação de Sua Santidade, Pascal II, razão pela qual enviou-lhe uma missiva em tom submisso. E a resposta chegou não só positiva, mas calorosa.
É possível que se tratasse de um lance estratégico. Em sua sagacidade, ele deve ter elaborado uma maneira de aceitar o cargo, de modo a tirar partido para a Santa Igreja.
Seja como for, dúvidas a respeito da própria fidelidade sempre pairarão na consciência de todo homem, mesmo na dos Santos. Apesar do rescrito de Pascal II, Santo Oto quis passar ainda três anos preparando-se para a sagração episcopal, pois não se sentia digno. Só em 1106 dirigiu-se a Roma para ser ordenado.
Ainda o problema de consciência
Após alguns contratempos no caminho – um tal Conde Adalberto o capturou nos vales tiroleses, e o Santo só foi libertado mediante o concurso das armas – chegou a Roma no dia da Ascensão, e de lá dirigiu-se a Anagni para ter com o Papa. Pascal II pediu que esperasse algum tempo, até à festa de Pentecostes. Santo Oto voltou à hospedagem para descansar, ou ao menos tentar descansar…
Durante a noite, outra crise de escrúpulos o assaltou: estaria ele preparado para carregar o ônus episcopal? A provação foi tão forte que, no dia seguinte, lá estava ele novamente na estrada, decidido a voltar à sua pátria para viver como um particular.
Pode-se bem imaginar a aflição de seus companheiros de viagem. Somente um louco tomaria uma atitude tão incoerente. De fato, poucos são capazes de compreender a dureza dos problemas de consciência que acometem os Santos.
Oto já havia percorrido o caminho de um dia inteiro, quando se avistaram os núncios do Papa, os quais vinham ordenar-lhe que voltasse a Anagni para a sagração. Era Deus a lhe dizer, como outrora ao Apóstolo: “Basta-te a minha graça” (II Cor 12, 9).
Santo Oto e a Igreja de Bamberg
A cerimônia teve lugar no dia de Pentecostes, e Oto voltou a Bamberg no início de 1107.
Seria longo narrar em detalhes a excelente administração do Santo, manifesta seja na sua vigilância em manter a grei no redil de Roma, apesar da delicada situação diplomática com o imperador – naquele tempo, Henrique V –, seja no seu esforço em afervorar o clero, seja no grande número de basílicas e mosteiros que construiu – um deles, aliás, a pedido de São Norberto, para abrigar uma comunidade de premonstratenses.
Como bom medieval – ou melhor, como homem de fé – Santo Oto estava persuadido de que a santidade monástica era a chave para sustentar a prática da virtude, tanto no clero quanto nos leigos, razão pela qual deitou grande esforço em estimular a vida religiosa, a ponto de receber o cognome de pai dos monges. Por exemplo, foi das suas mãos que Santa Hildegarda recebeu o véu.
Mas esse período não constituiu a fase mais brilhante do percurso vital do Bispo de Bamberg. Ele já havia feito de tudo: lecionara, servira como capelão de um duque e de um imperador, fora chanceler, finalmente Bispo. Faltava-lhe ainda um galardão: o de missionário.
Bamberg recebe uma visita
Em finais de 1122, por ocasião de um concílio de corte, visitou Bamberg um personagem singular: era Bispo, de raça espanhola; porém, algo em sua austeridade dava-lhe ares de um eremita do deserto. Seu nome, Bernardo.
Esse prelado gozava de grande fama de santidade e zelo, motivo pelo qual Santo Oto fez questão de o receber e ouvir dele suas mais recentes aventuras em prol do Evangelho.
Bernardo contou como convencera o duque da Polônia a dar-lhe autorização para dirigir-se à Pomerânia, a fim de converter os povos pagãos que a dominavam. Descreveu também como havia entrado na região descalço e trajado rudemente, na esperança de espalhar as sementes do Reino de Deus, e como os pomerânios o julgaram segundo as aparências e, pensando tratar-se de um indigente que fora até eles na tentativa de conseguir comida fácil, expulsaram-no do país.
Enquanto desdobrava a narrativa, o prelado ibérico ia analisando as reações de seu interlocutor. Na verdade, ele tinha uma intenção bem clara com todo aquele discurso… Sabia que Oto, gozando de excelente apresentação pessoal e estando à frente de uma rica diocese, possuía todas as condições de impressionar os pomerânios e conquistá-los para a Fé. Percebendo as boas disposições do Bispo de Bamberg, lançou mão de toda a sua capacidade de persuasão e fez a proposta.
Apóstolo da Pomerânia
O pedido foi ainda reforçado por uma embaixada de Boleslau IV, que, unindo o útil ao agradável, pretendia converter aqueles povos a fim de torná-los um pouco mais tratáveis. O duque da Polônia também prometia apoio logístico para a missão.
Conforme atesta um biógrafo contemporâneo, o coração de Santo Oto inflamou-se de alegria com ambas as propostas. Tendo meticulosamente enviado um pedido de autorização a Calixto II – certamente não queria repetir as amargas experiências de outrora – iniciou os preparativos para a missão. Começava uma nova etapa na existência de nosso Santo – ou antes, a segunda grande odisseia de sua vida. Na primeira, ele havia travado uma luta interior; agora empreenderia uma guerra exterior, uma campanha de conquista. Aquele que outrora, embora talvez sem culpa alguma, pudera chamar-se “chanceler de Lúcifer”, merecia agora o título de embaixador de Cristo.
Não mais os ambientes palacianos dos tempos da capelania imperial, não mais as sutilezas do convívio entre homens de poder. Protegida por densas florestas, repletas de serpentes e animais selvagens, a Pomerânia abrigava um povo assustador, que julgava normal, entre outras coisas, assassinar as próprias filhas, e que havia pouco crucificara um missionário.
Algum tempo antes da jornada, houvera ali uma revolta contra o jugo de Boleslau, revolta esta que o duque afogou em sangue. Ainda se viam cadáveres em putrefação pelas ruas.
Poderíamos descrever Santo Oto enfrentando todo gênero de escolhos, fugindo de cidades, queimando ídolos pagãos, realizando milagres, sempre fiel a um plano de guerra, cujo título bem poderia ser: a evangelização através da beleza, pois seu método consistia em encantar os nativos com a magnificência dos ornamentos litúrgicos. Calcula-se que, ao longo de seu labor apostólico, Santo Oto tenha batizado mais de vinte e duas mil pessoas, convertendo-se no Apóstolo da Pomerânia.
Com setenta e sete anos e repleto de méritos, faleceu o embaixador de Cristo a 30 de junho de 1139.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 270, junho 2024. Por Ney Henrique Meireles.
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