12º Domingo do Tempo Comum: Deus pode dormir?
Deus está constantemente sustentando todos os seres para que existam. Entretanto, às vezes ele parece dormir. Por quê?
Redação (23/06/2024 09:32, Gaudium Press) O Evangelho deste 12º Domingo do Tempo Comum apresenta a cena encantadora em que Nosso Senhor, estando a bordo de uma barca com os discípulos, adormece sobre um travesseiro. Durante o percurso, “começou a soprar uma forte ventania e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que esta já começava a se encher” (Mt 4,37), e o Mestre continuava a dormir…
“Os discípulos o acordaram e disseram: ‘Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?’ Ele se levantou e ordenou ao vento e ao mar: ‘Silêncio! Cala-te!’ O vento cessou e houve uma grande calmaria” (Mt 4,38-39).
Esta passagem, riquíssima em significados, foi interpretada de muitos modos ao longo dos séculos. Na opinião de Santo Agostinho, o fato de Jesus dormir é um mistério; os ocupantes da barca podem representar as almas que atravessam sua existência neste mundo sobre o madeiro da Cruz de Nosso Senhor; e a barca pode ser vista enquanto figura da Igreja. Outro modo ainda de visualizar o episódio, de acordo com o santo doutor, está em que sendo nós batizados e templos onde habita a Santíssima Trindade, o nosso coração pode ser comparado a uma barca que navega em alto-mar: ela não pode afundar se o espírito estiver imerso em altas cogitações, e se nela o Mestre estiver acordado.[1] Há ainda quem discuta se a atitude dos discípulos ao acordar Nosso Senhor foi a mais correta, ou se seria melhor deixá-lo dormir.
A barca, coração do homem
Seja como for, vejamos a barca como imagem do coração do homem. Já dizia o justo Jó que a vida do homem nesta terra é uma luta (cf. Jó 7,1). Logo, todos os homens, bons ou maus, têm de enfrentar tribulações e tempestades ao longo de sua existência. Ora, o seguinte problema nos é apresentado: Nosso Senhor está ou não “a bordo” de “nossa barca” nos sustentando, a fim de passarmos ilesos pelas tormentas que nos advêm neste vale de lágrimas?
Por isso, para quem se tornou Templo da Santíssima Trindade no momento do Batismo, todo o cuidado em não expulsar Jesus da “barca” é pouco. E como ele pode ser expulso? Por um só pecado mortal… A alma em estado de pecado deixa de ter o Divino Condutor no “timão”, e fica à mercê de toda espécie de vagalhões.
Contudo, é preciso considerar que, mesmo sendo fiel na prática dos mandamentos e estando Nosso Senhor com nosso “timão” em suas Divinas mãos, haverá momentos em que, para benefício nosso, Jesus parecerá dormir durante a tempestade, a fim de provar a autenticidade de nosso amor e nossa confiança na Providência. Cabe a nós, nesses momentos, confiarmos em que, por mais que Ele pareça dormir, está nos conduzindo e guiando como sempre.
A barca, figura da Igreja
Talvez a exegese mais elevada que se possa fazer da cena é, sem dúvida, ver a barca enquanto figura da Santa Igreja. Nela, estavam presentes O cabeça, o vigário e as colunas. Entretanto, O Cabeça dormia. Por qual razão? Nos dizeres do Pe. Antônio Vieira: “Na tempestade dorme Cristo, porque a barca está segura na Providência de Pedro. Pedro era o piloto da nau, e Cristo o piloto do piloto. Oh admirável Providência do governo universal da Igreja! A nau uma, e os mandadores dois. Os Apóstolos manejavam os remos, mas debaixo do mando de Pedro; e Pedro sustentava o leme, mas debaixo do mando de Cristo. Pedro era o que governava, sim; mas governava governado. A nau governada pela direção de Pedro; mas Pedro governado pela direção de Cristo”.[2]
Ora, a Santa Igreja ao longo da História passou por muitas tormentas, seja com as perseguições, com as heresias ou ainda com os cismas. Porém, apesar de tudo isso, ela saiu vitoriosa, pois Nosso Senhor esteve e estará com Ela todos os dias, até o fim dos tempos (cf. Mt 28,20), como Ele mesmo assegurou, e por isso “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18).
Mas nesses nossos dias, a Barca de Cristo parece soçobrar em meio à tempestade. Será que o Mestre realmente “está dormindo sobre um travesseiro”? Uma coisa é certa: a Igreja é imortal! Alguém poderia perguntar: “mas como, se sua situação parece rumar a uma débâcle?” A estes, aconselhamos que acorram ao Senhor e lhe digam: “Mestre, estamos perecendo e Tu não te importas?” (Mt 4,38). Vossa barca parece naufragar, e as ondas já começam a enchê-la!” (cf. Mt 4,37). Ao que Ele dirá: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes Fé?” (Mt 4,40). Lembremo-nos da primeira leitura:
“Quem fechou o mar com portas quando ele jorrou com ímpeto do seio materno […]; quando marquei seus limites e coloquei portas e trancas, e disse: ‘Até aqui chegarás, e não além; aqui cessa a arrogância de tuas ondas’? (Jó 38,8.10-11.31)
Assim, tenhamos Fé de que, por mais que a Igreja possa aparentar algum declínio, sua Divina Cabeça, o mesmo que é o Senhor dos ventos e dos mares, dirá à tempestade: “até aqui chegarás, e não além” (Jó 38,11).
Por Guilherme Maia
[1] Cf. AGOSTINHO DE HIPONA. Sermo LXIII, 1-3. In: MIGNE, Jacques-Paul (org.). Patrologiae cursus completus: series latina. Paris: Jacques-Paul Migne, 1865, v. 38, p. 424-425.
[2] Obra completa Padre Antônio Vieira: tomo II parenética. São Paulo: Loyola, 2015, v. IX, p. 273-274.
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