São Gregório VII: O Papa que venceu o mundo
25 de maio, dia em que a Igreja celebra a memória de São Gregório VII, que aceitou “com muita dor, gemido e pranto” o pesado encargo do Sumo Pontificado. Lutou contra a simonia e a intromissão do poder civil nos assuntos eclesiásticos. Faleceu no exílio.
Redação (25/05/2024 09:02, Gaudium Press) Uma cena singular se desenrolava na fortaleza de Canossa, ao norte da Península Itálica. Três dias haviam passado desde que um maltrapilho vestido de saco penitencial, de pés descalços sobre a neve e em jejum da manhã até à noite, implorava aos brados e de joelhos a entrada na parte mais interna do castelo. Uma circunstância tornava especialmente dramático o espetáculo: bramia o mais impiedoso inverno do século. O inusitado do quadro, entretanto, resultava menos dos fatos que dos personagens. Aquele que não permitia a entrada era o Papa, e o mendigo era o soberano do Sacro Império Romano-Alemão, maior monarca do Ocidente.
Que voltas dera a História para que chegássemos a tal paroxismo?
A guerra delineada
Durante esses dias de 26 a 28 de janeiro de 1077, ocorreu uma das batalhas da enorme guerra em que o Papa São Gregório VII desempenhou o papel de general da Igreja. Redundou, é verdade, numa estrondosa vitória do Pontífice, mas apenas numa das frentes, já que a Igreja estava cercada por vários lados.
Por um deles atacava o Imperador Henrique IV, que se reservava o direito de investir os Bispos e clérigos em seus cargos. Muitas das terras imperiais, que se estendiam desde a metade setentrional da atual Itália até aos confins, e um pouco além ainda, da Alemanha de hoje, pertenciam a episcopados e abadias. Ora, sendo o senhor feudal quem entregava aos vassalos os respectivos domínios, julgava o imperador caber-lhe também esse direito quanto aos clérigos que tomassem posse dessas terras, escolhendo-os. Entretanto, a eleição ou confirmação de um Bispo só pode ser realizada pelo Sumo Pontífice. Bem se intui o problema que daí surgiu: o César nomeava os prelados que bem entendesse, sem requerer a anuência papal. Eis um primeiro e gravíssimo problema… que não vinha só.
Rendosas como eram as terras que cabiam aos clérigos ilicitamente investidos pelo imperador, começou o comércio dessas funções: proliferava a simonia, o sacrilégio nefando praticado já por Simão, o Mago (cf. At 8, 18-24), de submeter o sagrado ao dinheiro. Este segundo mal gerava um filho pior que o pai, ou seja, um clero todo voltado para o lucro, investido nas funções eclesiásticas sem a supervisão de Roma: eis a equação que resulta na devassidão dos que estavam chamados a ser a “luz do mundo” (Mt 5, 14) por seu exemplo. Destarte, multiplicavam-se os escândalos morais de tais sacerdotes, especialmente no que tange ao celibato que deviam guardar. Era um terceiro lado do cerco posto à Santa e Imortal Igreja.
São Gregório discerniu com clareza toda a situação. Impertérrito, resoluto, audacioso, declarou a guerra. Irrompia o rútilo período da reforma gregoriana.
Mas como surgira esse glorioso Papa?
De Hildebrando a Gregório VII
Penumbroso e envolto no mistério como o dilúculo é o despontar da vida deste Pontífice. O nascimento de Hildebrando, este era seu nome, deu-se provavelmente entre 1015 e 1023, na aldeia de Sovana, na Toscana. Nada, ou quase, sabemos de sua infância e mocidade, a não ser que proveio de família modesta e plebeia e que, ainda jovem, fez-se beneditino na Abadia de Santa Maria no Aventino, filha de Cluny, em Roma. Aí formou sua personalidade e começou a delinear os traços da história que escreveria. Moldou-a com a mentalidade cluniacense, que então esculpia o esplendor da Idade Média: seu papado seria um “empreendimento monacal”, e sua ação, a de um religioso cingido da tiara.
Na Cidade Eterna distinguiu-se a ponto de, já em 1046, acompanhar o Papa Gregório VI à Alemanha. Havendo de lá voltado, foi feito cardeal-subdiácono e desde então tornou-se conselheiro e secretário de todos os Romanos Pontífices sucessivos: Leão IX, Vítor II, Estêvão IX, Nicolau II e Alexandre II. Quando da morte deste último, no dia 21 de abril de 1073, foi aclamado como digno sucessor de São Pedro ainda durante as cerimônias funerárias de seu antecessor.
Contrafeito com essa eleição, pediu ao Imperador Henrique IV que a vetasse. Caso o monarca não quisesse fazê-lo, prometia uma severa e inexorável guerra contra as investiduras laicas e contra a simonia que promovia. Feliz e inexplicavelmente, o soberano ratificou a eleição.
Elevado à Sé Apostólica, ordenado presbítero e Bispo – pois não passava então de um diácono –, tomou o nome do primeiro Papa a que serviu, Gregório. “A reforma, pela qual tanto havia trabalhado e sofrido sob os seus predecessores, estava agora em suas mãos”.
Suas providências não se fizeram esperar.
Abrindo fogo
No terceiro mês do ano seguinte, reuniu em Roma um concílio em que ficou decidida a excomunhão de todos os Bispos e clérigos simoníacos ou fornicadores. De um só golpe, São Gregório VII fez sangrar assim os vários rostos da conjuração que assaltava a Igreja. Ferindo a simonia e a clerogamia, golpeava também o imperador.
Este, instigado pelos excomungados, decidiu resolver o caso sem maiores cerimônias. Quando o Servo dos servos de Deus oficiava a festa de Natal na Basílica de Santa Maria Maior, uma tropa de assassinos penetrou no templo acutilando os fiéis e se lançando sobre o Pontífice. Sequestraram-no! Tendo em mãos o Papa, o bando sacrílego correu pelas ruas de Roma a fim escapar para os Alpes, onde o imperador os receberia. Em vão, pois o rebanho defendeu o Pastor.
No dia 22 de fevereiro de 1076, reuniu Hildebrando mais um concílio na Basílica de Latrão. E Henrique IV lançou a cartada do desesperado. Após o canto do Veni Creator, levantou-se um emissário imperial: “O Rei Henrique, nosso senhor, nos envia para vos informar de suas decisões irrevogáveis. […] Nós te dizemos, Gregório, em virtude da autoridade real: desce agora da Sé Apostólica, se é que queres viver. […] Desce! Desce, tu que és maldito pelos séculos dos séculos!”
Por uma dessas ironias da História, foram eles que por amor à vida se retiraram, já que os brados de hostilidade de todos quantos participavam do concílio a isso os impeliram. O Papa anunciou, então, sua intenção de anatematizar Henrique IV e os seus cúmplices. Os padres conciliares reunidos concordaram com o Sucessor de Pedro. Estava excomungado o imperador!
As vitórias
Ora, com este ato todos os vassalos imperiais ficavam ipso facto dispensados da obediência que deviam a Henrique. Seus súditos, entretanto, não só o abandonaram como ainda lhe exigiram que se reconciliasse com a Igreja até o dia 2 de fevereiro do ano seguinte, quando o julgariam pelos seus muitos e inomináveis crimes, que não consistiam apenas na desobediência ao Papado. Se fosse declarado culpado nessa reunião, o deporiam definitivamente de seu cargo.
Da mesma forma que “se fendem os cedros à voz do Senhor” (Sl 28, 5), assim uma palavra do Papa vergou o maior monarca do Ocidente. Tratava-se da mesma força moral que já pesara sobre outros poderosos: o normando Roberto Guiscardo, conquistador do sul da Itália e vencedor no Bósforo, que foi conquistado pelo Papa; o rei da França, Filipe I, que ouviu as repreensões pontifícias; Salomão da Hungria e Sueno II, rei da Dinamarca, entre outros, que sentiram o poder das chaves de Pedro.
Este xeque-mate de São Gregório VII foi o que levou o príncipe a se prosternar e implorar perdão – e a consegui-lo graças à grande misericórdia do Santo – em Canossa. Apesar disso, só no Concílio Ecumênico de Latrão, realizado em 1123 sob a égide de Calisto II, ficaria chancelada solenemente a vitória da Igreja nas três frentes que a assolavam.
Diante de tais fatos, olhos materialistas poderiam ver em São Gregório o homem de vontade acerada, o estadista de largas vistas políticas, o colosso que fez curvar ante si a Europa como não o fizeram César Augusto, Carlos Magno ou Napoleão. Que míope e curta visão!
Nada seria Hildebrando, o pobre plebeu de Sovana, se a graça não o houvesse transformado em São Gregório VII.
Quais foram, pois, os influxos da vida divina, quais as virtudes, quais as devoções que o tornaram um marco na História Universal e um luzeiro na hagiografia?
As armas do Papa
São Gregório VII foi antes de tudo um monge. E foi seu diadema, por isso, a virgindade perfeita. Apesar das calúnias – essas sombras com que a inveja sempre persegue o homem íntegro – levantadas contra ele, jamais uma dúvida resistiu naqueles que puderam fitar o seu olhar nimbado de pureza. A “divina Maria”, como ele A invocava, lhe foi a muralha desta e das demais virtudes, bem como a confidente mais íntima, a mais escutada das conselheiras, a Senhora de todos os seus atos. Mais uma prova de sua santidade, pois não existe Santo sem acendrada devoção à Mãe do Redentor.
Qual foi o efeito da prática da castidade neste varão? “O homem de mãos puras”, exclama Jó, “redobra de coragem” (17, 9). Eis mais uma de suas coroas: a coragem de ter enfrentado toda uma época e uma já secular decadência no clero; a coragem de desmascarar o pecado e punir o pecador. Bem sabia ele que os povos amaldiçoarão e as nações abominarão aquele que diz ao culpado: “Tu és inocente” (cf. Pr 24, 24). O reverso também é verdade: a História aclama São Gregório entre os maiores homens que pela terra passaram.
Esta firmeza, ele a robustecia com o “Pão dos fortes” (Sl 77, 25). A Divina Eucaristia foi o seu farol e a arma com que dispersou os inimigos de Deus. Arma?! É sua tal expressão: “As armas […] mais eficazes contra o príncipe deste mundo são a Comunhão frequente do Corpo do Senhor e a devoção cheia de confiança e de ternura à Virgem Mãe de Deus”.
Tal entusiasmo pelo Sacramento da Presença Real de Nosso Senhor não podia estar separado do amor ao Corpo Místico de Jesus Cristo. “Poucos Pontífices tiveram em grau tão elevado o sentido da Igreja” como São Gregório. Por ela enfrentou as maiores dificuldades, correu as aventuras mais arriscadas e fez o impossível para defendê-la. “Sempre procurei”, escreveu ele na sua última carta pastoral, “que a Igreja fosse livre, pura e ortodoxa”. “Livre” da intromissão do Estado na esfera espiritual, “pura” em seus ministros, “ortodoxa” na sua doutrina.
Essa tríade de devoções era o intacto broquel que levava no peito: o fervor pelo Santíssimo Sacramento, o amor a Nossa Senhora, o desvelo pela Igreja e pelo Papado.
Derrotado?
Apesar de tudo isso, este Pontífice foi derrotado. Sim, pois havendo sido expulso de Roma pelo imperador novamente revoltado, que ali se fez coroar pelo antipapa Clemente III, entregou sua alma a Deus no dia 25 de maio de 1085, exclamando: “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso morro no exílio”. Ó dor! Ser derrotado após toda uma vida de luta…
Amou a justiça e odiou a iniquidade: por seu heroísmo diante das perseguições, acendeu-se uma luz na Igreja que jamais se extinguirá
Derrotado? Só na aparência, pois o futuro lhe traria a vitória.
Derrotado? Não, pois suas últimas palavras são o testamento e a comprovação de sua conformação com Deus, já que amou e odiou o mesmo que Ele: “O Senhor”, canta o salmista, “ama os que detestam o mal” (Sl 96, 10).
Derrotado? Não, porque, no momento em que ele afundou na morte, se acendeu para a Igreja e para o mundo uma luz que jamais se extinguirá: um exemplo de heroísmo para todos os homens e de santidade para todos os católicos. Sobretudo, um modelo para os Sumos Pontífices que não toleram se curvar diante dos postulados mundanos.
O dia de sua “derrota”, esse 25 de maio, é o dia em que toda a Igreja comemora a sua vitória.
Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 269, maio 2024. Por Ângelo Francisco Neto Martins.
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