Alguns sofismas do mundo contemporâneo
Muitos fabricam falsos silogismos com a explícita intenção de enganar. Mais nocivos, porém, são aqueles que se transformam em propagadores do erro sem perceber. Estaremos nós nesta triste situação?
Redação (03/05/2024 10:26, Gaudium Press) Em uma das suas famosas tiradas de gênio, Joseph De Maistre fez a seguinte analogia: “As falsas opiniões assemelham-se à falsa moeda, que primeiro é cunhada por grandes culpados e, em seguida, utilizada por pessoas honestas, que perpetuam o crime sem saber o que fazem”. E essas “moedas”, em geral, têm nome: sofismas.
O sofisma é uma falha de raciocínio. Embora cometamos muitos erros, do ponto de vista lógico só há duas formas de fazê-lo: ou discorrendo mal com dados corretos, ou bem, com dados falsos.
Mas não podemos concluir que toda falha no pensamento corresponda a um sofisma. Para que este último ocorra, é preciso mais um elemento: má-fé. Muitos fabricam falsos silogismos com a explícita intenção de enganar. Os mais nocivos, porém, são aqueles que se transformam em propagadores do erro, sem se darem bem conta disso. Daí a precisão da analogia com a falsa moeda, apresentada pelo célebre autor ultramontano.
Tal razão me leva a crer que, se o leitor está surpreso por conhecer esse mal, talvez se espante mais sabendo que possivelmente encontra-se afetado por ele… Pois bem, a fim de prevenir – ou curar – a doença, elenco brevemente cinco dos mais habituais sofismas do mundo contemporâneo, fazendo da caneta, bisturi, e da Lógica, medicina.
Fanáticos do antifanatismo
Era um dia de chuva amena aquele em que um sacerdote me narrou um fato singular: conversava ele com um indivíduo que se declarava bom católico. O clérigo, dotado de privilegiado senso psicológico, ficou desconfiado: “Ah… sim. Mas, apenas por curiosidade, o senhor assiste à Missa aos domingos?” A resposta veio com uma segurança desconcertante: “Tanto assim não, padre; sou católico, mas não sou fanático!”
Intriguei-me… Antigamente os critérios para receber o epíteto de fanático pareciam um tanto mais exigentes. Enfim, as coisas mudam com o tempo, talvez fosse o caso de revisar os conceitos. Recorrendo a um bom dicionário, encontrei a seguinte acepção no verbete fanatismo: “Zelo religioso obsessivo que pode levar a extremos de intolerância”.
“Extremos”. Parece-me que aí se encontra o clou do problema. Atualmente, para ser fanático, basta sustentar uma ideia de forma convicta e ter um oponente que o contradiga. Porque, a partir do momento em que há contraponto, existem dois extremos; e onde há extremos, na concepção medíocre do homem contemporâneo, existe extremismo ou, melhor, fundamentalismo. Assim, quem sustenta uma posição – qualquer posição – com vigor, leva a tacha de fanático na testa. Logo, o propugnador da verdade será fanático-extremista também.
Então todo o conhecimento humano – exatamente porque se baseia na verdade – entra em agonia. Começa pela Aritmética: alguém defende que 3 somado a 3 equivale a 6; um outro se lhe opõe, anunciando que 3 com 3 é igual a 2; entra um antiextremista extremado que faz a média e afirma que 3 e 3 são 4. Haverá quem já prepare o esquife das ciências exatas…
Outro caso: os ateístas creem – porque é preciso crer – que Deus não existe; a Igreja prega que existe. Se decidirmos fugir do “fanatismo”, teremos de temperar as duas correntes: Deus existe pela metade. A bem dizer, creio que este seja o cemitério de todas as ideologias.
O mal não está em ser extremista na acepção hodierna da palavra – estar decidido ao tomar uma posição. Encontra-se, isto sim, em abraçar um extremo falso. Ou, mal talvez pior – para utilizar o idolatrado “talvez” dos fanáticos do antifanatismo –, em opor-se ferrenhamente a tomar qualquer partido.
Oh, antifanatismo, quantos fanatismos tu não tens suscitado?
Alguém poderia questionar: “Mas e o princípio de que ‘a virtude está no meio’?” Respondo: convém precisar que esta máxima aristotélica adotada por São Tomás de Aquino não é absoluta, em primeiro lugar, porque não se aplica às virtudes teologais. Ademais, o Angélico explica que, mesmo às cardeais, ela se impõe apenas em certo sentido, enquanto tais virtudes medeiam entre dois vícios opostos, geralmente excessos de um equilíbrio, como acontece, por exemplo, com a valentia, que se encontra entre a covardia e a temeridade. Toda virtude é, sim, um extremo, enquanto se conforma ao máximo com a reta razão, em oposição aos vícios, que se distanciam desta. Seria ridículo queixar-se de que um juiz está sendo justo em excesso, ou que um político tem sido por demais honesto…
Um círculo de quatro pontas
“Sou católico, mas não sou fanático”. Ainda ecoa a frase em minha mente, evocando logo outra expressão, análoga e também muito difundida: “católico não praticante”.
É de se perguntar o que entendem estes por católico. Se o qualificativo correspondesse a um cargo profissional ou denominação honorífica, dos quais alguém pode manter-se como titular sem precisar exercê-lo, ou, quem sabe, se designasse simplesmente aquele que crê nos dogmas, quiçá teriam razão. Tratar-se-ia dos tais “católicos de IBGE” de que tem se falado nos últimos tempos. Contudo, Martinho Lutero já fez o favor de obrigar a Igreja a esclarecer para os séculos futuros que quem julga ser necessária apenas a fé, sem obras, é herege.
Católico no sentido estrito é, por definição, aquele que pratica a Religião Católica. Agora, o que vem a ser um praticante que não pratica? Não faço ideia…
Na verdade, isso faz lembrar uma expressão latina vinda do catálogo dos sofismas, denominada contradição nos termos, que consiste em unir duas realidades que se excluem mutuamente. Exemplifico: um círculo quadrado contém duas realidades excludentes, porque a forma circular pressupõe a ausência de ângulos.
Aliás, também a nossa cara Matemática o atesta: 2 é igual a 2. Logo, 2 menos 2 é igual a 0. Da mesma forma: católico é igual a praticar o Catolicismo; católico menos praticar o Catolicismo é igual a 0.
Deus é um só
Época houve em que feras circenses se fartaram das carnes de homens convictos de seus ideais religiosos; fogueiras em praças tiveram as chamas da fé como comburente; espadas tiraram faíscas de outras em defesa das próprias crenças. Mas esses tempos acabaram. Ou melhor, acabaram com eles.
Para que os homens não mais se imolassem pela verdade, optou-se por se imolar a verdade no altar da conciliação.
“Há um só Deus” (Ef 4, 6). As religiões monoteístas creem em um só Deus; logo, creem na mesma Divindade. “Deus é um só”… ouve-se muito aqui, lá e acolá. Eis um dos cutelos sacrificadores da verdade.
Sim, se a Lógica fosse uma pessoa, creio que há muito já estaria morta. Entretanto, dentro do túmulo, teria por certo dado volta e meia em face de tão grande sofisma. Volta e meia porque o cutelo vibrou o golpe numa regra basilar do silogismo, a qual ensina a não valorizar de forma diferente as palavras nas premissas. Analisemos: “crer em um Deus” e “crer no mesmo Deus” são coisas diferentes.
O próprio São Paulo não afirma sem mais que “há um só Deus”. Imediatamente antes disso, ele precisa: “Há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo” (Ef 4, 5-6). Traduzo em miúdos o que diz o Apóstolo: segue da existência de um único Deus e Senhor que há uma única verdade a respeito d’Ele – uma só fé – e uma única prática conforme a essa verdade – um só Batismo.
O mesmo Ser Supremo não pode, simultaneamente, ordenar preceitos que se excluam: proibir e permitir que se coma carne de porco; aprovar e censurar a poligamia ou o divórcio; acolher e repudiar o culto às imagens; anunciar, por um lado, que há um prêmio e um castigo eternos e, por outro, que não há vida após a morte, ou que estamos sujeitos à reencarnação. Deus não pode estar em contradição consigo.
A verdade é una e imutável. Onde há verdades diferentes, de duas uma: nenhuma das verdades ou apenas uma é… verdadeira. Se existe tão somente um Deus, o que se conclui pela razão natural, só pode haver uma doutrina autêntica sobre Ele.
Cuidado com estas moedas falsas
Mencionei de início a consideração de De Maistre sobre as opiniões falaciosas: são como as moedas falsas. Pois bem, deixei para o fim deste artigo as duas mais comuns.
Segundo o parecer de um estadista de nomeada como – Metternich – que pode soar heresia aos ouvidos contemporâneos, mas toda verdade tem seus matizes –, “duas palavras são suficientes para criar o mal; duas palavras que à força de serem esvaziadas de todo sentido prático, encantam no vazio os sonhadores. Essas palavras são liberdade e igualdade”.
Comecemos pela primeira. Ela tem, é claro, um valor inapreciável, quando verdadeira. Porém a maioria das moedas que circulam com esse nome não possui autenticidade.
Como identificar a que temos no bolso? É tão simples como ler a inscrição que nela vem escrita. O termo liberdade, continua Metternich, é como religião. De que credo se trata? Da mesma forma, a que liberdade se está referindo? O que se entende por liberdade?
Recitam as Institutas de Justiniano que ela consiste na faculdade de fazer o que quiser, exceto aquilo que a lei proíbe. Qualquer sociedade com um mínimo de civilização imporá limites aos seus cidadãos. Do contrário, se estabelece o caos. Mas quais são as fronteiras da verdadeira liberdade?
Se em sua moeda estiver timbrado “minha liberdade termina onde começa a do outro”, saiba que se trata de uma falsificação, porque, no fundo dessa ideia, está a de que a moral se baseia num mero trato de coexistência pacífica, sem fundamento em valores absolutos. A baliza passa a ser simplesmente a própria comodidade. Perdoe-me a truculência dos exemplos: Quer acabar com sua saúde cometendo todo tipo de excessos? Fique à vontade, desde que não me amole a vida. Deseja acabar com sua família? Se seus membros não se sentirem ofendidos, qual é o problema? Optou por se matar? Por favor, só não me cause contratempo com isso… Onde iremos parar?
A liberdade não consiste em ser escravo dos próprios instintos e paixões, mas no nosso império sobre o que temos de mais caro: nós mesmos. Ela é a moeda com que compramos o Céu, pois nos dá a possibilidade de adquirirmos mérito; quando não falsificada ou vil ouropel, é “a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8, 21).
Entretanto, como na maioria das vezes esse conceito não se encontra bem definido nas mentes, torna-se fácil transformá-lo numa espécie de chavão demagógico e etéreo, que todo o mundo ama, defende, procura… sem saber exatamente do que se trata. É o que a Lógica chama de equivocidade, ou seja, empregar uma palavra com vários sentidos distintos, para levar o raciocínio aonde se quer.
O que diria Terêncio?
Falta abordar a igualdade, em cuja exposição remeto-me a uma brilhante explicitação de Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Quantas vezes não se escuta: “A justiça manda que, no ponto de partida da vida, todos tenham as mesmas oportunidades”. Será real a assertiva?
Tomemos a célula-mãe da sociedade: a família. Há um fator natural, misterioso e sagrado, que está intimamente ligado a ela: a hereditariedade biológica. É evidente que algumas famílias são melhor dotadas, sob esse ponto de vista, do que outras.
Há famílias em que se transmite através de muitas gerações o senso artístico, ou o dom da palavra, ou o tino médico, ou a aptidão para os negócios. A própria natureza – e, portanto, Deus, que é seu Autor – invalida, através da família, o princípio da igualdade no ponto de partida. Ora, por que a implicância em impô-la artificialmente no patrimônio, na cultura e em tantos outros campos?
Um dos famosos oradores togados, Terêncio de nome, discursou em defesa de uma ideia que depois se vulgarizou no seguinte adágio: “Quando duas pessoas fazem a mesma coisa, a coisa não é a mesma”. Uma vez mais, os antigos tinham razão. Ainda que todos fizessem e pensassem o mesmo, fariam e pensariam de forma diferente.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 242, fevereiro 2022. Por Ângelo Francisco Neto Martins.
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