Quem eram os zuavos pontifícios?
O píncaro do heroísmo consiste em estar disposto a suportar a vergonha e a chacota, e a passar por covarde em face do mundo inteiro. Então se verte o sangue da alma, muito mais valioso que o do corpo. Dos membros de um peculiar corpo de guerra, os zuavos pontifícios, a Providência exigiu que vertessem sangue do corpo e da alma.
Redação (24/04/2024 09:44, Gaudium Press) Giovanni Maria Mastai Ferretti foi eleito Papa em 16 de junho de 1846, adotando o nome de Pio IX. Já nos primeiros anos de seu reinado, teve de enfrentar sérias revoluções originadas por movimentos patrióticos italianos, que atentavam contra seu domínio sobre os Estados Pontifícios.
Entretanto, como as revoltas iniciais não obtiveram pleno sucesso, os conspiradores resolveram esperar algum tempo até que os ânimos se reacendessem, o que demorou cerca de dez anos.
Finalmente Vítor Emanuel II, rei da Sardenha-Piemonte, começou uma política de anexação dos pequenos estados da Península Itálica, pela qual se erigia como uma verdadeira ameaça para os Estados Pontifícios. A seu serviço encontrava-se Giuseppe Garibaldi, líder dos soldados revolucionários – chamados “camisas vermelhas” –, que tinha em vista invadir os territórios do Papa.
Nasce o batalhão
Compreendendo a real gravidade dos fatos e considerando o desinteresse das potências europeias pelas questões relativas à Igreja, Pio IX encarregou seu ministro das armas, Mons. Mérode – sacerdote belga e antigo oficial – de providenciar a defesa dos domínios eclesiásticos. Este decidiu, então, convocar o General Louis de La Moricière, célebre herói da guerra colonial na África, para se tornar o comandante geral das forças pontifícias, dentre as quais se destacava o novo batalhão de atiradores franco-belgas, conhecido como zuavos pontifícios.
Com vistas a auxiliar La Moricière em sua função junto a esse grupo de combatentes, foi convocado também Louis de Becdelièvre, que se encarregou da formação e disciplina dos integrantes, transformando aqueles jovens cheios de entusiasmo em verdadeiros soldados. Apesar do pequeno número, eles estavam dispostos a enfrentar qualquer tempestade. E esta não tardou em se armar no horizonte…
Tendo Garibaldi encerrado a conquista da Sicília, marchava com suas tropas sobre Nápoles, último bastião antes dos estados do Papa. La Moricière decidiu então que os zuavos, embora em grande desproporção numérica, combateriam contra o exército italiano e concretizariam o ideal – até então apenas teórico – da luta pela Igreja: era chegada a hora tão desejada por seus homens.
Castelfidardo: a prova da fidelidade
Como primeira das preparações, Becdelièvre aconselha que todos se confessem e estejam prontos para comparecer diante do supremo tribunal de Deus.
Uma vez em paz com o Senhor, e tendo abertas diante de si somente as portas da vitória ou as do Céu, os zuavos se lançam ao combate. A 18 de setembro de 1860, o General La Moricière dirige-se para Ancona, perto de Castelfidardo, e dá batalha em campo aberto contra as tropas garibaldinas.
No entanto, os desígnios divinos são muitas vezes contrários aos dos homens: em vez de conceder a esses jovens soldados um triunfo definitivo, a Providência exige algo muito mais árduo: a fidelidade em meio ao opróbrio. Devido à supremacia numérica do exército inimigo, eles são derrotados.
Vendo-se obrigados a se refugiar em Loreto, os combatentes recolhem-se diante de uma imagem de Nossa Senhora, a fim de obter forças para os próximos sofrimentos.
É fácil conceber a decepção generalizada que o insucesso causou nos meios católicos, aumentando o descontentamento daqueles que eram contrários à formação daquela força militar.
Apesar de tudo, esse sentimento foi contra-arrestado em outra parcela da Opinião Pública por certa comoção e até mesmo um surto de entusiasmo, e assim novos recrutas se alistaram para incrementar o pequeno exército papal.
Entre eles, vale a pena mencionar o caso de Queré, um jovem camponês iletrado – de má aparência e dialeto ininteligível – que provinha da Bretanha e se apresentou em Paris para alistar-se nas fileiras pontifícias. Além de seu “currículo” insuficiente, o mancebo possuía um defeito na constituição do pé, de modo a torná-lo impróprio à marcha. Aproveitando-se de que ele esquecera seus documentos, negaram-lhe a entrada no esquadrão. Contudo, o bretão estava tão determinado que, apesar de ter vindo a pé de sua aldeia a Paris, voltou ainda uma vez à sua terra e retornou à capital, trazendo desta vez a documentação exigida. Diante de tal mostra de decisão, não houve outra coisa a fazer senão aceitá-lo.
Um outro soldado, em carta para sua família, externou a seguinte ideia: “A Deus e a seu Vigário eu não tenho para oferecer nem fortuna, nem nobreza, nem talentos, nem influência alguma; tenho apenas meu sangue, e isso eu lhe dou”.
Mas enquanto crescia o número dos soldados pontifícios, chegando a seiscentos homens em janeiro de 1861, Vítor Emanuel fazia sua entrada triunfal em Nápoles, última de seu caminho em direção às terras do Papa.
Profícuo período de inação
Apesar disso, após a Batalha de Castelfidardo houve certa calmaria em ambos os lados, o que não impedia que se travassem muitos pequenos enfrentamentos.
Para os zuavos, esse período foi de grande proveito na preparação tanto militar quanto espiritual, devido à proximidade com Pio IX, ao qual eles prestaram juramento de fidelidade em janeiro de 1861.
Nesse tempo de certa inação, dois fatos merecem especial destaque. O primeiro foi a chamada Convenção de Setembro: um acordo assinado em 1864 entre Vítor Emanuel II e Napoleão III, que coordenava a retirada das tropas francesas do território italiano e a não-agressão às terras papais. O segundo, no mesmo mês do ano seguinte, foi a morte de La Moricière. Com esta perda, Pio IX viu-se na contingência de ceder às instantes solicitações que lhe advinham de todas as partes para dispensar Mons. Mérode da função de ministro das armas, e transferi-la ao general alemão Hermann Kanzler, que, diga-se de passagem, revelou-se muitíssimo eficaz.
A nova nomeação, somada à indignação geral causada pela retirada das tropas francesas, renovou o fervor dos zuavos e dos católicos que, do mundo inteiro, vinham alistar-se nas fileiras pontifícias. Por causa disso, de um batalhão cujo contingente, em 1865, não passava de quinhentos homens, o exército cresceu em dois anos para 2.289, dos quais 872 eram holandeses, 659 franceses e 495 belgas.
“Coopero com a mais santa das missões”
Sentia-se no palpitar dos corações o surgimento de nova força, que bem poderia ser expressa pelas palavras do Barão Onffroy: “Quereríamos ver nascer, em favor do digno Sucessor de Pedro, o magnífico movimento que se verificou na época de Godofredo de Bouillon e de São Luís rei, em vista da libertação dos Lugares Sagrados”.
Aquelas eram verdadeiras graças de cruzada, que conferiam aos soldados um dinamismo e uma coragem que superavam a simples natureza, como fica claro na carta de um deles à sua família: “A ideia de que eu coopero com a mais santa das missões, que estou cumprindo a vontade divina, me dá uma força que não é natural”.
Afirmações como estas testemunham a ação da graça nas almas dos combatentes para as novas lutas que viriam.
Mentana: a grande vitória
O ano de 1867 veio intensificar a atuação do esquadrão papal. Já em fevereiro, Garibaldi percorreu o norte da Itália agrupando homens para avançar sobre a Cidade Eterna. Sua sanha anticatólica era tão evidente que certos fiéis chegaram a considerá-lo o anticristo.
Devido à retomada das hostilidades, os zuavos voltaram também à ação e combateram os garibaldinos em várias ocasiões: Bagnoregio, Montelibretti, Farnese, Monte-Rotondo, entre outras. Graças a Deus, na quase totalidade dos enfrentamentos a vitória pendeu para lado dos defensores da religião, em boa medida graças ao seu treinamento e ao novo comandante.
Entretanto, não era possível manter uma vida em constante guerra. Para isso, fez-se necessário encerrar o assunto de uma vez por todas, através de uma grande batalha.
Com o retorno do apoio de Napoleão III ao exército papal, surgiu a ocasião propícia para finalmente constituir um exército razoável. Agora seriam cinco mil homens – dos quais cerca de dois mil e quinhentos zuavos – a apresentar batalha a dez mil inimigos.
Mentana foi o lugar onde, no dia 3 de novembro, ambos os exércitos se enfrentaram. Apesar da desproporção numérica, ao se encontrarem as duas bandeiras os zuavos avançaram com tal élan que, “em um instante, os garibaldinos foram alcançados, atingidos pelas baionetas, lançados por terra e perseguidos sem poder se reagrupar”. Finalmente, os exércitos papais os expulsaram da cidade para onde haviam fugido, deixando mil mortos e feridos, além de 1.398 prisioneiros.
A vitória foi completa. Ao chegar em Roma, o batalhão entrou aclamado aos brados pelo povo: “Viva Pio IX! Viva a França! Viva o Papa-Rei! Vivam os zuavos! Viva a tropa pontifícia! Vivam os franceses!”
A queda de Roma e a dissolução dos zuavos
A Batalha de Mentana foi sucedida por uma nova calmaria de três anos, até que, em julho de 1870, iniciou-se a guerra franco-prussiana, a qual obrigou uma nova retirada do apoio francês… Era a ocasião propícia para que os revolucionários italianos voltassem a se armar contra Roma, mas desta vez com a intenção de esmagar… Somavam sessenta mil homens, divididos em três frentes de ataque.
Por seu lado, o General Kanzler determinou que o exército papal, composto por apenas sete ou oito mil soldados, se restringiria à defesa da cidade de Roma em quatro postos. Humanamente falando, era um enfrentamento suicida, e as tropas sabiam disso.
No dia 19 de setembro, ao tomar conhecimento de que os revolucionários estavam a pouco mais de dezesseis quilômetros da capital, Pio IX convocou o ministro e lhe disse: “Queremos que a resistência seja a estritamente necessária para demonstrar a realidade de uma agressão e nada mais”. Aturdido pela ordem, Kanzler redarguiu: “Santidade, a armada inteira deseja combater e morrer”. Entretanto, o Papa insistiu: “Nós lhes pediremos que se rendam e não que morram; isso será um sacrifício ainda maior”.
No dia seguinte o Santo Padre expediu uma carta ao general, reiterando a decisão: “Nesse momento em que a Europa inteira deplora numerosas vítimas, consequência de uma guerra entre duas grandes nações, que não seja jamais dito que o Vigário de Jesus Cristo – ainda que injustamente atacado – tenha consentido numa efusão de sangue”. Era este o momento mais exigente: comunicar aos zuavos a ordem de se render.
E assim aconteceu. No dia 20 de setembro, pouco depois de iniciada a batalha, a terrível mensagem foi transmitida pelos comissários e a luta se encerrou com a rendição dos defensores do Papa. Talvez a maior dificuldade desses heróis tenha sido justamente presenciar a entrada dos adversários, que os cobriam com um dilúvio de insultos e agressões, enquanto a bandeira branca da capitulação era içada sobre a cúpula de São Pedro.
Após terem recebido a bênção do Papa, todos retornam às respectivas pátrias. À rendição seguiu a dissolução dos exércitos pontifícios.
A guerra dos zuavos terminou, mas nimbada pela altíssima honra de ter servido à mais alta das missões. Eles passaram para a História quais cruzados, inesquecíveis baluartes de amor e de sacrifício pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 266, fev. 2024. Por Luiz Eduardo Trevisan.
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