O mundo depois de nós
A vida em si é dom de Deus e maravilhosa apesar de ser difícil em muitos momentos. A Terra é linda, com paisagens e belezas naturais estonteantes, mas entramos numa fase em que os homens já começam a pensar em sair daqui para buscar uma vida melhor em outros planetas.
Redação (01/02/2024 09:45, Gaudium Press) Pertenço a uma geração com características muito exclusivas. Crescemos ouvindo que nós, crianças, éramos responsáveis pelo futuro da nação. Na juventude, nos acostumamos a ouvir que era missão dos jovens transformar o mundo. Já como adultos, a lição dada era: “Viva de forma que o mundo seja um lugar melhor por seu modo de vida”.
Agora, envelheço e me pergunto: onde foi que errou aquela geração que cresceu ouvindo o Hino Nacional na escola? Onde se perdeu a juventude formada por essas crianças?
Nossa vida, como adultos, foi permeada por desafios que outras gerações não tiveram. Hoje, adentrando ou percorrendo a casa dos sessenta – época da vida em que se avalia o que se fez, pensa-se em como aproveitar bem o tempo que resta e se vai preparando o espírito para a grande viagem – me entristeço ao ver o estado do mundo depois de nós.
Não existia saco de lixo
Vejamos alguns aspectos: nunca a humanidade produziu tanto lixo. São toneladas e mais toneladas de dejetos de todo tipo, com muitas embalagens de plástico e isopor sem valor para a reciclagem, criadas para tornar a vida mais prática e os produtos mais caros, e que só servem para poluir terras e águas e causar o adoecimento e a morte de muitos animais.
Hoje, há muitas pessoas que vivem do lixo, e algumas que até se enriquecem explorando as que vivem de forma insalubre no contato com os lixões. Recicla-se e reaproveita-se muita coisa, ainda assim, o lixo é abundante.
Lembro que, na minha meninice, não existia saco de lixo. Cada casa tinha um balde ou uma lata grande, normalmente adquiridas nos postos de gasolina (latas de óleo diesel) ou latas de tinta, de banha. O lixo era formado basicamente de restos de comida, porque não havia embalagens para tudo, como atualmente. Quase tudo que hoje é plástico era lata, que nossas mães aproveitavam para fazer canecas ou plantar flores, e as latinhas menores viravam brinquedos das crianças. Pães e outros produtos do mercado eram embalados em folhas ou saquinhos de papel.
Não havia rações nem veterinários
Para os latões iam os restos de comida, que também não era muito, pois as cascas de verdura e fruta viravam adubo e as sobras dos pratos ou das panelas eram o alimento dos cachorros. [Sei que hoje é quase um crime dizer que cachorros comiam restos de comida! Mas eles comiam e eram muito saudáveis e felizes. Perambulavam pelas ruas, não infringiam a regra “Dentro de casa, cachorro não entra!”, tomavam banho muito raramente, dormiam no quintal, jamais usavam roupinhas e morriam de velhice. Não havia ração e nem veterinários].
Enfim, o que não tinha mesmo aproveitamento ia para os latões. Quando enchiam, nossas mães os colocavam na rua, passavam os lavageiros em carroças, recolhiam tudo aquilo em latões bem maiores e levavam para alimentar os porcos. Depois nós comprávamos os porcos deles e comíamos e todos viviam bem. Quando muito uma verminose de vez em quando.
Havia coleta de lixo e era até engraçado. As latas com lavagem os lixeiros não levavam, apenas as latas com outros produtos. Eles as pegavam e subiam no caminhão entornando-as na caçamba. O caminhão não parava e eles iam esvaziando as latas e jogando-as no chão. Era função da molecada correr atrás do caminhão e trazer para casa a lata que pertencia à sua família.
Um mundo mais sujo
Hoje o mundo está sujo, há um lixo mais infecto. Onde moro, os usuários de drogas – que aumentam cada vez mais – deram para roubar os sacos de lixo. Jogam tudo no chão, levam o que dá para fazer dinheiro. Os sacos vazios são para colocar o produto do que vão catando ou pedindo nas casas e depois vendem nos ferros-velhos, que também proliferam. Onde começa a aparecer ferro-velho, é certo que tem ‘biqueira’ por perto.
Eles jogam o lixo no chão e lixo atrai mais lixo, deixando as ruas, as cidades mais sujas e feias. E esses jovens, também sujos e despenteados, carregando os seus sacos de lixo roubados nas costas, acabam se parecendo com o conteúdo dele: verdadeiro lixo humano, com o qual ninguém sabe o que fazer, numa situação trágica que parece não ter jeito de se resolver: o aumento exponencial do consumo de drogas.
Há pessoas em situação de indigência como jamais houve, nem nos piores períodos da história, nem nos pós-guerras. E não se trata de uma indigência imposta, mas de uma indigência escolhida e alimentada pelo vício.
A trilha sonora que se ouve em todo lugar
Temos também a questão da música, que já nem dá para chamar de música. Brotam das trevas o pior tipo de música que já existiu, com ritmo pobre. Ao se ouvir dez músicas parece ser apenas uma, e com letras que nem dá para comentar, com a obscenidade explícita, escrachada.
E todos são obrigados a ouvir esse infeliz arremedo de música, como se houvesse uma caterva de espíritos trevosos que a dissemina por todos os lugares, numa altura absurda, como se vivêssemos numa geração de surdos: o vizinho toca, o restaurante toca, as lojas tocam, os locais de trabalho tocam, os carros que passam na rua tocam.
Nossos ouvidos acabam sendo violentados pelos acordes estridentes, as vozes irritantes e muito parecidas umas com as outras e as letras baixas e vulgares. E, mais triste, muitas vezes nossos filhos e netos ouvem e gostam… É o que eles têm disponível.
Isso sem falar na degeneração de valores, na decadência da elegância e da compostura no vestir. Parece que as pessoas se arrumam para ficar feias. Roupas rasgadas, camisetas desalinhadas, tênis que já se compram com aparência de estragados e sujos.
E a falta de gentileza. Quando alguém é educado, respeitoso e gentil, nós até estranhamos, porque a moda hoje é ser grosseiro, ‘fazer barraco’, como dizem popularmente, e isso tanto na vida real quanto na internet – esse território de ninguém que tantos ocupam. Prima a ideologia do ‘fazer valer os meus direitos’.
Onde foi que erramos?
Até a religião, que sempre foi uma base sólida e um refúgio seguro, se modificou. Em muitos casos, virou comércio, ‘franchising”, empreendedorismo ou casa de tolerância para a devassidão interna e externa.
A violência cresceu desmesuradamente. Mata-se cruelmente pelos motivos mais banais. Mente-se. Engana-se. Aplicam-se golpes financeiros de toda espécie, tenta-se levar vantagem em tudo. Trapaceia-se, pioram a qualidade dos produtos e dos alimentos, facilitando o surgimento de distúrbios e doenças que não existiam.
E há guerras e rumores de guerras.
Este é o mundo no qual vivo há seis décadas. Um mundo que me deu tantas esperanças e acalentou tantos sonhos, alguns realizados, outros não. Um mundo para o qual eu não gostaria de voltar se tivesse oportunidade. E lamento que seja assim.
Onde foi que erramos? Será que mentiram para nós e que o futuro não dependia de nós? Será que foi o choque entre a opressão política e a libertinagem da revolução cultural?
A vida em si é dom de Deus e maravilhosa apesar de ser difícil em muitos momentos. A Terra é linda, com paisagens e belezas naturais estonteantes, mas entramos numa fase em que os homens já começam a pensar em sair daqui para buscar uma vida melhor em outros planetas.
Os 144 mil do Apocalipse
Questiono-me se, realmente, consegui fazer alguma coisa para deixar esse mundo melhor depois de minha existência e se estarei partindo melhor do que quando cheguei. Ainda há muita gente boa e muitas coisas boas, mas, no frigir dos ovos, infelizmente, não é a maioria.
Muitas vezes, ao longo desta minha vida, ouvi religiosos falando do sentido figurado das 144 mil pessoas mencionadas no Apocalipse, que estariam salvas, ao redor do trono do Cordeiro. Sempre se tomou esse número como uma figura apenas. Recordo-me de ter ouvido, certa vez, um pastor, pregando numa praça pública, dizer: “Imagine que, num mundo onde vivem e já viveram bilhões de criaturas, Deus salvaria apenas 144 mil!”
Hoje, de cabelos encanecidos, decepcionado com este mundo que restará depois de nós, penso na indignação daquele pastor, embora discorde completamente do ponto de vista dele. Será que num mundo de tantos bilhões de pessoas – criaturas cobertas de pecado dos dedos dos pés até o último fio de cabelo – se salvariam 144 mil? É muito. O que para ele parecia ínfimo, para mim, diante do que o mundo se tornou depois de nós, 144 mil é gente demais; infelizmente, não creio que tantos consigam atingir a santidade!
Por Afonso Pessoa
Deixe seu comentário