São Pancrácio: a firmeza de um jovem cristão
“Sou jovem, é verdade, mas para as almas bem-nascidas o valor não espera o número de anos”. Com admirável fortaleza de espírito, São Pancrácio, cuja memória é lembrada no dia 12 de maio, desafiou o detentor do maior poder temporal da época.
Redação (12/05/2024 08:35, Gaudium Press) Pierre Corneille, famoso dramaturgo francês do século XVII, em sua tragicomédia Le Cid, faz dizer o personagem central, Dom Rodrigo: “Sou jovem, é verdade, mas para as almas bem-nascidas o valor não espera o número de anos”. [1]
Esta bela e altiva afirmação bem descreve o estado de espírito de um Santo que, ainda em curta idade, selou com o próprio sangue a Fé que abraçara e cujo nome significa, em grego, “o invencível, o vitorioso, o todo vencedor”: São Pancrácio.
Primeiros contatos com os discípulos de Jesus
Nasceu ele na Frígia, Ásia Menor, por volta do ano 289, e embora sua memória nos tenha chegado esmaecida pelo correr do tempo, não há duvida da devoção por ele despertada na Igreja dos primeiros séculos, pois seu nome e a data de seu martírio já figuravam no Martirológio Jeronimiano, nos Sacramentários Gelasiano e Gregoriano, bem como em outros textos antigos.
A família em que veio ao mundo era rica e muito reta, apesar de pagã. Sua mãe, Ciriada, faleceu ao dá-lo à luz, e quando nosso mártir tinha apenas oito anos, também seu pai, Cleônio, deixou esta vida. Antes de morrer, todavia, entregou-o aos cuidados de seu irmão, Dionísio, que assumiu a tutoria do sobrinho e se empenhou em dar-lhe aprimorada educação.
No intuito de afastá-lo das dolorosas lembranças da perda dos progenitores e proporcionar-lhe a oportunidade de conhecer outros parentes, decidiu o tio levá-lo para a Urbe, centro da cultura e das ciências do tempo, onde ele poderia, ademais, “preparar-se para uma carreira militar ou política”. A Providência, porém, lhe reservava ali bens assaz mais valiosos: “A verdade do Evangelho, o Batismo e a coroa do martírio”.
A nau em que viajavam fez escala em diversas cidades portuárias da Grécia e da Península Itálica, à vista das quais os horizontes de Pancrácio se alargavam: o mundo era bem maior do que imaginava! A certa altura o menino se surpreendeu por ver um grupo de moças e rapazes acorrentados, sendo vendidos como escravos. Seus rostos eram sofridos e pareciam não ter feito mal algum… Espantado com tão triste espetáculo, Pancrácio viu aproximar-se dos prisioneiros alguém que lhes deu comida e roupa; seu tio explicou-lhe que aquele devia ser um cristão, cuja religião considera a escravidão uma injustiça.
Observando os passageiros do navio, viu que alguns, ao entardecer, tomavam juntos a refeição, depois ouviam uma leitura, rezavam, traçavam sobre si o sinal de uma Cruz, davam manifestações de se quererem muito bem e ajudavam os passageiros mais necessitados. Dionísio os identificou como discípulos de Jesus Cristo, que morreu em Jerusalém e, segundo eles, ressuscitou, subindo ao Céu e fazendo-Se presente através do Espírito, em seus discípulos.
Pancrácio desejou conhecer algo mais a respeito dessas pessoas e, percebendo a admiração de seu tio por elas, pediu que lhe falasse de Jesus, sua vida e seus ensinamentos. Dionísio, entretanto, se esquivou de fazê-lo, contando apenas que em sua juventude morou em Roma e ali teve amigos cristãos, vários dos quais foram condenados à morte pelo Imperador Valeriano, junto com Sisto II, o Sumo Pontífice de então, e o famoso Diácono Lourenço. Ao retornar para a Frígia, perdera qualquer contato com eles, mas garantia-lhe que, chegando à Cidade Eterna, não faltaria ocasião para os encontrarem.
Tio e sobrinho se fazem cristãos
Afinal aportaram em Óstia e se dirigiram para o sul da Urbe, onde se localizava a mansão da família, no elegante Bairro do Monte Célio, uma das sete colinas sobre as quais fora fundada.
Vendo crescer no coração de Pancrácio a aspiração de conhecer os discípulos de Jesus, seu tio procurou informar-se acerca das pessoas mais categorizadas dentre eles, do lugar onde se reuniam e de qual seria o momento mais indicado para travar contato.
Marcelino, vigésimo nono sucessor de Pedro, era o Pontífice da época. Devoto, piedoso e casto, ampliara o cemitério cristão mais importante de Roma, a catacumba de São Calisto, e ali construiu túmulos para si e sua família, evidenciando a quadra de paz em que viviam os seguidores de Jesus. Esta, no entanto, não iria durar muito!…
Dionísio e seu sobrinho foram conduzidos até ele. O Papa os acolheu com benevolência e os introduziu no catecumenato. Encantado com o que ia conhecendo a cada dia sobre o Senhor Jesus e seu Evangelho, Pancrácio sentia estarem sendo atendidos seus mais profundos anelos, e ficava cada vez mais horrorizado com a idolatria dos romanos.
O Pontífice não economizava esforços para catequizá-los e ensinava-os a servir-se de seus abundantes bens para multiplicar as obras de misericórdia. Tio e sobrinho aprenderam, assim, quanto os cristãos devem se amar e se ajudar mutuamente em suas necessidades.
Completado o período preparatório, eles receberam o Batismo com admirável devoção e fervor, “provavelmente na Páscoa de 301”.
Começa a perseguição no Oriente
No ano de 285, Diocleciano dividira o Império Romano em duas partes. Reservou para si a do Oriente, com capital em Nicomédia, atual Izmit na Turquia, e confiou a Maximiano a do Ocidente, com capital em Milão. Ambos os governantes se intitulavam “Augusto” e se apoiavam no exercício de suas funções, se bem que a Diocleciano coubesse a primazia.
Passados alguns anos, por volta de 293, a diarquia transformou-se em tetrarquia: Constâncio Cloro foi nomeado “César” por Maximiano, e Diocleciano fez o mesmo com Galério, no Oriente. Esta forma de organizar o poder – dois imperadores “Augustos”, e dois “Césares” a eles subordinados – permitia dividir o Império em quatro regiões, facilitando as operações militares.
A Galério coube governar a região balcânica. Pagão ferrenho, professava hostilidade absoluta contra todas as religiões monoteístas, em particular contra o Cristianismo, e depois de algum tempo conseguiu convencer Diocleciano, um pouco menos intolerante, a pôr fim à Religião de Cristo.
Em 23 de fevereiro de 303 proclamou-se o primeiro édito imperial que impunha pesadas penas aos cristãos, caso não abjurassem sua Fé. Já no dia seguinte foi queimada a primitiva igreja cristã vizinha do palácio imperial, iniciando uma sangrenta perseguição em todo o Oriente.
Transcorridos os meses, uma revolta na Síria e duas tentativas de incendiar o palácio imperial de Nicomédia proporcionaram a Galério pretexto para acusar novamente a Igreja e induzir Diocleciano a publicar um segundo édito, mais rigoroso do que o anterior.
Estando as prisões abarrotadas, Diocleciano, promulgou um terceiro édito, pelo qual concedia liberdade a quem abjurasse e condenava à pena capital quem permanecesse fiel a Cristo. E como ele era o expoente máximo na tetrarquia romana, suas ordens vigoravam em todo o Império, portanto também em Roma, onde logo surgiram denúncias contra os cristãos.
Implacável caça aos cristãos
Diocleciano raramente ia a Roma, pois sabia que os romanos não o perdoavam por ter mudado a capital do Império… Sem embargo, ali permaneceu durante um mês no final do ano 303, a convite de Maximiano, para receber as homenagens pelos seus vinte anos de governo.
Pancrácio e seu tio presenciaram o desfile triunfal dos dois imperadores, sentados em imponentes tronos no alto de um carro puxado por quatro elefantes, seguidos por um cortejo composto de inimigos vencidos, troféus de guerra, porta-estandartes, oficiais das legiões vitoriosas e magistrados. O povo, boquiaberto pelo fausto, aplaudia.
Ao mesmo tempo começou, com sanha implacável, a caça aos cristãos. Dionísio e Pancrácio não pertenciam ao clero nem tinham especial relevância enquanto leigos. Apesar disso, na primavera de 304 apresentou-se na mansão do Monte Célio um oficial de justiça, com uma escolta de soldados, portando a ordem de detenção de ambos. Haviam sido denunciados como seguidores de Cristo e benfeitores de sua Igreja.
Diante do tribunal eles se portaram com a dignidade de filhos de Deus. Na primeira audiência, aberta ao público, o juiz perguntou se era real a acusação que lhes era feita e eles responderam com ufania: “Somos cristãos!”
Bem ciente do teor dos decretos imperiais, que prescreviam penas gravíssimas a quem não queimasse incenso aos deuses, Dionísio declarou serem eles injustos e reafirmou sua Fé. A sentença foi imediata: por impiedade e hostilidade ao imperador era condenado à decapitação.
Duas crenças que se enfrentam
Em seguida o juiz se voltou para Pancrácio e, à vista de sua jovem idade e condição social, sentiu-se inseguro. Suspeitando manifestar ele convicções cristãs apenas por influência do tio, decidiu suspender a audiência e submeter o caso ao próprio Diocleciano.
Na manhã do dia 12 de maio, Pancrácio foi conduzido à presença do Imperador. Impressionado com sua aparência nobre e juvenil, ele o tratou a princípio com benevolência. Recordou-lhe como seus pais haviam prestado culto aos deuses, argumentou que os cristãos constituíam uma seita hostil ao Império e instou-o a se aproveitar de sua nobreza e riqueza para conquistar uma prestigiosa função. Podia receber muitas honrarias, gozar a vida, enfim, ser feliz… bastava, para isso, abjurar sua Fé.
Sem a menor hesitação, Pancrácio respondeu que jamais o faria. Diocleciano tentou intimidá-lo com as penas previstas aos infratores: sequestro dos bens, condenação a trabalhos forçados ou a pena de morte. Tomado por uma força sobrenatural, porém, o jovem reafirmou que se manteria sempre cristão.
Emocionante cena: com assombrosa fortaleza de espírito, um adolescente desafiava o detentor do maior poder temporal da época, que pouco antes vira entrar em Roma com tanto aparato! Não eram dois homens que se enfrentavam, senão duas crenças. Era o Corpo Místico de Jesus Cristo que arrostava o paganismo! Assumido pela força comunicada por Ele à sua Igreja, Pancrácio agia como se fosse ela própria; por seus lábios falava a Esposa Mística do Cordeiro, contra a qual jamais prevalecerão as portas do inferno!
Grandes milagres se operam junto ao seu túmulo
Diocleciano ficou admirado ante tanta firmeza, tal como Pilatos ficara inseguro diante de Jesus no Pretório, mas seu orgulho não lhe permitia reconhecer a evidência. Humilhado e vencido na tentativa de vergar a fé e alegria de um jovem de tão só quatorze anos, o imperador o condenou à morte. No entardecer desse mesmo dia, Pancrácio foi decapitado na Via Aurélia.
Coisas maravilhosas e grandes milagres começaram a se operar junto a seu sepulcro ou no contato com suas relíquias. Menos de dois séculos depois, o Papa Símaco mandou construir no lugar da campa uma igreja, atualmente intitulada Basílica Menor de São Pancrácio. A devoção a ele se estendeu por todo o mundo, sobretudo na Itália, França, Espanha e Inglaterra, onde, no fim do século VI, Santo Agostinho de Cantuária transformou um antigo templo pagão em mosteiro, cujo patrono é São Pancrácio.
A atitude nobre, destemida e coerente de Pancrácio calou fundo nos espíritos de seus contemporâneos, fortalecendo a uns e transformando a outros. Pela inocência de tão valente filho, a Igreja manifestava sua própria inocência; sua força, por cima da fraqueza do jovem; sua veracidade, pela determinação de vontade do mártir. Pancrácio morria pela Igreja, à qual pertencia pelo Batismo de água, e a Igreja se expandia pelo Batismo de sangue de Pancrácio.
É interessante lembrar que, decorrido menos de um ano da morte de Pancrácio, Diocleciano, doente e debilitado, abdicou de seu trono sendo o primeiro imperador a deixar voluntariamente o cargo. Pancrácio fora vitorioso! O futuro deu-lhe razão com a vitória do Cristianismo, que dividiu a História em duas eras: antes e depois de Cristo.
Por Pe. Arturo Nicolás Hlebnikian Momdjian, EP
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 209, maio 2019.
[1] CORNEILLE, Pierre. Le Cid. Acte II, Scène II. Paris: Augustin Courbé, 1639, p.23.
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