Ganswein: o cardeal que queria esbofetear o “Papa Ratzinger”
Para apreciar o livro “Nada além da verdade” do secretário de Bento, só há um caminho: lê-lo.
Redação (25/01/2023 09:51, Gaudium Press) Ao contrário do que expressou Hernán Reyes Alcaide em Religión Digital, a leitura de “Nada além da verdade”, que logo concluiremos, não nos deu nem remotamente a impressão de um esforço de “horas e horas para dar forma a um livro […] [para] procurar opor a figura do [Papa] emérito ao do reinante”. São simplesmente as memórias do secretário junto ao seu admirado chefe e pai espiritual, nas quais se contam fatos pitorescos da vida de Bento, dão-se pinceladas calibradas da personalidade de um Pontífice muito distorcida pela mídia, narra-se um ou outro ‘segredo’ que explica certas reações e ações de Ratzinger, e um resumo dos principais marcos de seu magistério, muito característicos.
É claro, a grande mídia, sempre ávida pela manchete e sensacionalismo, tem destacado os pontos da obra que mostrariam uma contradição entre Bento e Francisco; mas guiar-nos pelo que a mídia diz, resultaria em uma avaliação tendenciosa e empobrecida. Nós simplesmente recomendamos a leitura.
Continuamos, então, neste espaço, revelando algumas das ‘pérolas’ que estão guardadas em “Nada além da verdade” – aliás, estão pedindo uma pista sobre o livro In buona fede, do Cardeal Muller – sempre em busca de que estas revelações não sejam spoilers (revelação nociva) para o grande número de leitores que a obra tem e terá, e também esclarecendo que não são um resumo da mesma, mas simplesmente algumas linhas que nós ressaltamos.
O Cardeal que convenceu o Cardeal Ratzinger?
Já que o Cardeal Christoph Schonborn, Arcebispo de Viena, também criticou a obra, dizendo que era uma “indecorosa indiscrição”, aproveitemos, então, esta oportunidade para contar que este cardeal confirma o que o Arcebispo Ganswein disse em “Nada além da verdade”. No conclave, quando o número de votos ia indicando que Ratzinger poderia ser eleito Papa, angustiado, ele sentia que uma “guilhotina” ia cair sobre ele. Porém, neste momento, um Cardeal “co-irmão” anônimo, ou seja, Schonborn, enviou-lhe uma carta que o comoveu muito, recordando-lhe que, na missa de exéquias de João Paulo II, dias antes, ele próprio havia homenageado a figura do Cardeal Wojtyla de Cracóvia, porque em cada etapa de sua carreira, e em um sentido talvez não desejado por ele, respondeu com um sim ao Senhor que lhe dizia “Segue-me”. E que, se Jesus Cristo indicasse a ele, Ratzinger, que devia segui-lo, carregando a pesada cruz do Papado, ele deveria ser obediente como o fora o elogiado João Paulo II. Ratzinger, já como Papa, declarou que essas palavras de Schonborn atingiram sua medula e, portanto, pode ser então que Schonborn seja parcialmente culpado pela existência de um Papa chamado Bento XVI. Nada do que se envergonhar, mas algo para ‘se orgulhar’, certo?
Um homem que ouvia muito, a todos, respeitando a dignidade de cada um
Na verdade, teria sido mais fácil atacar se Ratzinger fosse o Rottweiller ou o Panzerkardinal que alguns o caricaturaram. Mas as linhas de Ganswein confirmam a pessoa serena, participativa, gentil, elegante, e consciente do gigantesco peso da missão que Deus lhe confiou em 2005.
Por exemplo, o Arcebispo de Urbisaglia relata que, dentro da Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger incentivava fortemente as relações humanas pessoais e que, quando um tema tinha que ser analisado em conjunto, o debate começava pela exposição da opinião daquele que tinha um posto inferior, de modo que ninguém ficasse constrangido em contradizer a opinião de um alto funcionário. É claro que o prefeito tinha a última palavra, mas sempre ouvia atentamente as várias opiniões. Quando a solução proposta por seus colaboradores lhe parecia adequada, ele a aceitava com prazer; quando não, fazia uma síntese e expressava com categoria algo como: “O senhor avaliou segundo uma perspectiva que em si é correta, mas talvez não completa. Existe esse outro aspecto que pode levar a uma solução diferente…”
O medo dos ‘lobos’
Ratzinger tinha consciência, talvez com demasiada clareza, de que a cruz do Papado pesava muito mais do que seus ombros podiam suportar: “por um lado, um sentimento de inadequação e constrangimento humano pela responsabilidade que me foi confiada diante da Igreja universal, como sucessor do Apóstolo Pedro nesta sede de Roma”. Essas foram as palavras como Papa na sua primeira mensagem aos membros do Colégio dos Cardeais, na Capela Sistina, no dia seguinte à sua eleição.
Esse sentimento de tarefa sobre-humana se repetiria na Missa de início do ministério petrino, em 24 de abril, quando assumiu esta grande tarefa que “excede verdadeiramente toda capacidade humana”. Mas daquela missa, a frase que a mídia mais repetiu foi o pedido de “rezem por mim, para que eu não fuja, por medo, frente aos lobos”. No entanto, Mons. Ganswein sublinhou que, naquela época, tais expressões “não se referiam a temores específicos relacionados ao futuro de seu pontificado”, mas que ele seria fortemente atacado pelos ‘lobos’.
O cardeal que queria esbofetear o Papa
Ganswein conta outra das muitas anedotas pitorescas, esta do próprio conclave que elegeu Ratzinger, a do ‘Cardeal que queria esbofetear o Papa’.
Ganswein se pergunta em quem votou o Cardeal Ratzinger no conclave, e afirma estar convencido de que foi o então cardeal arcebispo emérito de Bolonha, Giacomo Biffi, por quem Ratzinger nutria uma forte admiração por ser “um bloco”, “guiado apenas pela luz da verdade” e de “extraordinária” inteligência e formação.
Acontece que, já na primeira votação do conclave, o cardeal Biffi havia recebido um voto, mas apenas um voto, que se manteve fiel nas três primeiras votações. Já no almoço, após a terceira votação, Biffi desabafa com um arcebispo, e lhe diz: “Se eu descobrir quem insiste em votar em mim, dou-lhe uma bofetada”. Então o arcebispo responde: “Estamos perto da eleição do novo Papa [Ratzinger já era imbatível] e é bastante evidente que é ele quem sempre lhe dá o voto. Então o senhor quer esbofetear o Papa?”
Os promovidos que não são da sua linha
Por que Ratzinger (ao contrário de outros…?) nunca quis nomear para altos cargos personalidades apenas na linha de “sua própria visão teológica”? Mons. Ganswein dá exemplos concretos, que não deixam de levantar diversas suspeitas, entre outras razões pelos cargos de importância que ainda ocupam na Igreja, mas por estar no centro de acirrados debates: o Cardeal Mario Grech (Bispo de Gozo, 2005), hoje Secretário Geral do Sínodo dos Bispos; o falecido Cardeal Hummes, que Ratzinger nomeou prefeito da Congregação para o Clero em 2006; Cardeal Tobin, que se tornou secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada em 2010; Cardeal Braz de Aviz, que se tornou prefeito dessa mesma Congregação em 2011; o muito criticado cardeal jesuíta Hollerich, que se tornou arcebispo de Luxemburgo também em 2011; e os cardeais Tagle (arcebispo de Manila, 2011) e Zuppi (bispo auxiliar de Roma, 2012), atual presidente do episcopado italiano, os dois últimos frequentemente incluídos entre aqueles que os vaticanistas adoram chamar ‘papáveis’.
Enfim, à medida que as páginas de “Nada além da verdade” vão sendo percorridas, o leitor começa a sentir que está tomando conhecimento deste homem, com seus diversos matizes, que chegou ao Pontificado não por “acaso”, mas por algo que se foi convertendo em sincera convicção de muitos e finalmente em aclamação, e que deixou uma sólida construção magisterial que deve necessariamente servir de referência para os séculos futuros. Querer fugir disso, humm…, complicado e perigoso. (Gaudium Press / Saul Castiblanco)
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