A virtude do demônio
“A ociosidade caminha com lentidão, por isso todos os vícios a atingem.” (Santo Agostinho)
Redação (15/05/2022 08:58, Gaudium Press) Esta semana, assistindo à live do Pe. Ricardo Basso sobre a Consagração a Nossa Senhora – sempre uma fonte de aprendizado e entusiasmo, mesmo para quem não esteja fazendo o curso com ele – impressionou-me uma frase que ele citou: “O desânimo é virtude do demônio”. Palavras do dom da sabedoria do Monsenhor João Clá, por quem, mesmo não sendo um Arauto, eu tenho um profundo respeito.
De cara, eu gostei da atribuição de uma virtude ao tinhoso, pois a gente sempre pensa no demônio como um ente desprovido de qualquer atributo, esquecidos da sua origem. Ele é um anjo e um anjo de alta constituição hierárquica, portanto, foi dotado de muitas virtudes. O problema é que ele não correspondeu a elas, deixando-se levar pelo orgulho e pela inveja. Se essas duas chagas pestilentas fizeram cair um anjo de luz, o que não faz conosco, pobres mortais?
Uma vez caído, e levando consigo o séquito dos seus asseclas – porque tudo o que não presta sempre tem uma legião de seguidores – o tal não se contentou, ferido em seus brios, ao ser derrotado por São Miguel, o qual, certamente, tinha como inferior, ainda mais porque o valente Arcanjo era o potencial seguidor e protetor daquela que ainda estaria por vir, Maria. Uma razão a mais para o dragão se sentir humilhado e enfurecido, pois, sendo anjo, detinha o poder de antever que, no futuro, teria de se curvar ao poder de uma simples mulher, que seria constituída Rainha dos homens e dos anjos.
Aborto: direito das mulheres?
E, quando digo uma “simples mulher”, não estou de forma alguma depreciando o gênero feminino, mas falando da simplicidade própria a Maria Santíssima, a mais humilde das criaturas, uma menina ainda quando foi visitada pelo Arcanjo São Gabriel, que se mostrou tão dócil à sublime missão de trazer o próprio Deus ao mundo.
Fico imaginando este acontecimento nos dias atuais, uma mocinha órfã, talvez ainda não casada, apenas prometida em casamento, esperando um filho que não é do seu futuro marido. Teria todo o amparo legal para fazer um aborto. Não que eu queira comparar Nossa Senhora a uma mulher que se sente no direito de abortar porque “quem manda no seu corpo é ela”, mas o que eu tento imaginar é a qualidade dos filhos que foram impedidos de nascer. Muitos poderiam ser pessoas comuns, como a maioria de nós, mas, quantos gênios, quantos santos, quantos seres capazes de mudar para melhor o destino do mundo não foram parar num balde de coleta porque suas mães têm o direito de decidir!
Bem, mas isso foi apenas uma digressão, perdoem-me, é que talvez eu não tenha digerido direito ainda a frustração do presidente “católico para inglês ver” dos Estados Unidos diante da derrota do projeto de lei sobre o direito ao aborto no Senado americano. Como católico que afirma ser, o sr. Joe Biden deveria estar comemorando e não tão frustrado com esse resultado, acusando os senadores republicanos de terem “optado por se opor ao direito das mulheres americanas de tomar as decisões mais pessoais sobre seus corpos, suas famílias e suas vidas” .
E, já que enveredei por este assunto – às vezes as palavras tomam vida própria, queiram me perdoar – aproveito para inserir também a informação da secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen. Ela comentou que “eliminar o acesso das mulheres ao aborto teria efeitos muito prejudiciais para a economia norte-americana, impedindo algumas mulheres de finalizarem seus estudos, reduzindo o potencial de renda ao longo da vida e mantendo algumas fora da força de trabalho”. Tem coisas que nem o diabo, que as provoca, entende!
O pior desânimo
Mas, voltemos ao nosso foco, o desânimo, virtude do demônio, com a qual ele consegue levar para os seus domínios um incontável número de almas. Quantas pessoas, inclusive católicos, não vivem por aí afirmando estarem desanimadas? Os padres, coitados, já devem estar cansados de ouvir essa queixa. As pessoas estão desanimadas com o casamento, com os filhos; e os filhos, desanimados com os estudos, com a vida, com a estrutura familiar. Vivemos num universo de desanimados.
As pessoas se deitam para dormir e não rezam, não fazem um exame de consciência sobre o seu dia, porque estão desanimadas; então, entregam suas retinas para a prejudicial luz azul de seus celulares até adormecerem por desanimarem também de ver sempre as mesmas coisas. De manhã, quando o celular as desperta, desanimadas para sair da cama, apertam o botão de soneca e permanecem ali, o máximo que podem, sem dormir, mas também sem conseguir vencer o desânimo de se levantar para começar a viver a bênção de mais um dia.
Muitos estão desanimados com os preços – e quem não está? – mas desanimados a ponto de não terem iniciativa para reagir. O quilo da cenoura custa R$ 17,00, o de tomate R$ 12,00 e o do bife R$ 35,00. As pessoas vão ao mercado, compram tudo isso e saem desanimadas, incapazes de usar a criatividade e substituir o que está custando um absurdo por produtos mais baratos e tão nutritivos ou saborosos quanto os de preço abusivo. Desanima-se até de pensar!
Os que trabalham estão desanimados com seus empregos. Os que estão desempregados estão desanimados para procurar emprego. Os que não têm dinheiro estão desanimados por não tê-lo, e os que têm, desanimados com as perdas em seus investimentos.
Todos parecem ter um motivo para estar desanimados e, os que não têm nenhum, desanimam por não ter do que se desanimar. E, enquanto isso, o inimigo nada de braçada, arrebanhando sem nenhum esforço aqueles que não estão dispostos a lhe opor resistência. E assim, o desânimo se alastra mais que o coronavírus, e para isso, não há lockdown, máscaras ou vacina que deem jeito! Nem Cloroquina resolve!
No entanto, de todos os desânimos, há um que é imbatível: a prática da religião. Desânimo de ir à Missa é pior que praga. É tão contagiante que às vezes até o carro quebra na hora de sair de casa, ou parentes e amigos são contaminados à distância e resolvem vir fazer uma visita bem no momento em que a família estava vencendo o desânimo para sair e ir à Igreja. Rezar o terço, então, misericórdia! Na terceira Ave-Maria a pessoa já está bocejando e olhando com desespero para todas as contas que ainda precisam ser desfiadas… Desânimo de confessar, desânimo de conversar. Desânimo de pensar sobre o desânimo para poder vencê-lo.
Ação contra o desânimo
Santa Terezinha escreveu em suas memórias: “Diante de tal situação, sou tentada de desânimo, porém compreendo que também o desânimo é efeito do orgulho. Quero, portanto, meu Deus, fundar minha esperança só em vós! Já que tudo podeis, dignai-vos fazer nascer em minha alma a virtude que desejo” .
E Santo Agostinho, com cujas palavras abrimos este artigo, mostra-nos que a ociosidade, filha dileta do desânimo, caminha devagar e, por isso, é atingida por todos os vícios. Este mesmo santo nos disse que “não basta fazer coisas boas, é preciso fazê-las bem”. Talvez, aí comece o império do desânimo sobre nós. Vamos deixando de fazer bem as coisas e, depois, vamos deixando de fazê-las. Quando vemos, já se instalou o desânimo sobre nós, e tudo se torna difícil, a vida começa a parecer sem graça e sem sentido. Por cederem ao desânimo, pessoas se matam, casamentos acabam, carreiras são destruídas, amizades se desfazem e almas perdem o Céu.
O desânimo requer uma ação, uma resposta à altura: a esperança, como diz Santa Terezinha. Esperança fundada em Jesus. Esperança que se traduz em confiança. Conforme disse São Paulo, que teve todos os motivos do mundo para ceder ao desânimo, mas não o fez: “Tudo posso naquele que me fortalece.” (Fl 4, 13).
Se formos parafrasear o Apóstolo, podemos dizer que nada podemos naquele que nos desanima. E ele usa e continuará usando essa virtude inversa sobre todos nós. Muitos caem pelos mais diferentes pecados. Há um enorme contingente de seres humanos que adulteram, traem, matam, roubam, mentem, enganam, corrompem e se deixam corromper sem se importar, sem ter crises de consciência. Esses já são terreno ganho, e só se preocupa com eles Deus e Nossa Senhora, sempre abertos ao seu arrependimento e à sua conversão. O demônio já os tem, por isso, ignora-os. Quem interessa para ele é você, sou eu, são nossas famílias, são os que rezam, os que se arrependem, os que se importam. É com foco nesses que ele aperfeiçoa o seu marketing, sutilmente, fazendo com que pessoas boas, de vida reta, que cultivam bons valores e são afeitas ao bem, simplesmente, desanimem.
É indiscutível que há pessoas que estão doentes, cujo desânimo é patológico. Entretanto, refiro-me aqui a bilhões de pessoas desanimadas. Nem todas as nossas mazelas emocionais podem ser classificadas como depressão. Trata-se, sobretudo, de uma influência preternatural e, se não nos apegarmos à fé, se não reagirmos, se não pedirmos ajuda a Nossa Senhora, a nossos anjos da guarda e aos santos que nos assistem, infelizmente, seremos vencidos. Constituiremos uma multidão de derrotados, numa guerra silenciosa que, sem usar nenhuma bala e sem derrubar uma só gota de sangue, fará mais vítimas que as mais potentes bombas nucleares juntas.
Por Afonso Pessoa
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