De Angélico a Angélico
No dia 18 de fevereiro a Igreja celebra a memória do Beato Angélico, inigualável pintor e peculiar figura do cristianismo ocidental do séc. XV.
Redação (18/02/2024 08:34, Gaudium Press) É realmente palpável a consonância entre as pinturas de Fra Angélico e o pensamento do Doutor Angélico, São Tomás de Aquino, a ponto de se poder dizer que o primeiro transpôs para o campo artístico a doutrina do segundo.
Pela santidade de vida e pela genialidade na técnica, alma excepcional
A célebre passagem bíblica: “pelos seus frutos os reconhecereis” (Mt 7, 16) é tão verdadeira quanto sucinta. Salvo remotas e pontuais exceções, em todo legado doutrinário, literário ou artístico pode-se divisar com mais ou menos clareza a personalidade do autor: seu gênio, suas intenções e sentimentos como que “impregnam” a obra realizada de forma patente e indelével. “Omne agens agit simile sibi” — repetia o Doutor Angélico — “todo agente age como a si mesmo”; assim, a obra de um homem é reflexo dele mesmo, e não só dele, mas também de todos aqueles dos quais recebeu influência.
Diversos estudiosos se empenharam em investigar as documentações biográficas a respeito do pintor e frade dominicano Guido di Piero, o renomado Fra Angélico — cuja vida e obra até hoje impressionam por um aspecto singular: a excepcionalidade.
Excepcional foi ele por ter levado uma vida digna de ser coroada com a honra dos altares num século cuja corrupção de costumes daqueles que realizavam seu mesmo ofício, nomeadamente em sua terra, era generalizada; excepcional, outrossim, por ter elaborado pinturas incomparáveis pela técnica e pelo significado, nas quais podemos vislumbrar princípios filosóficos e teológicos que remontam a outra figura, também excepcional, que, dois séculos antes, usara o mesmo hábito dominicano: São Tomás de Aquino, o “Doutor Angélico”.
“São Tomás de Aquino da pintura”
Em 1346, o Papa Clemente VI indicou aos membros da Ordem dos Pregadores que seguissem fielmente a São Tomás de Aquino.[1] Com efeito, o Aquinate lograva, e com muita razão, de imensa reputação e popularidade.
Um de seus grandes admiradores foi, sem dúvida, Santo Antonino Pierozzi, frade que até chegou a ser conhecido como “Alter Aquinas”, e que cunhou, por primeira vez, a expressão “Doctor Angelicus” ao se referir ao santo de Aquino.[2] Foi ele um dos paladinos da reforma dominicana, e habitava no mosteiro de Fiesole quando Fra Angélico ali se instalou.
É de se concluir que Fra Pierozzi tenha exercido forte influência, caracteristicamente tomista, sobre o beato pintor,[3] além de tê-lo feito conhecer a Escolástica, bem como a forte influência do Aquinate sobre esta corrente filosófica medieval — e especificamente sobre a Ordem Dominicana.[4] Assim, também podemos deduzir que Fra Angélico certamente estudou as obras de São Tomás de Aquino,[5] entre as quais a Suma Teológica, para plasmar sua concepção do homem, da existência e da eternidade, antes de dar-lhe vida por meio do pincel: “Frei João assentará toda a sua obra pictórica sobre esta fundamentação doutrinária da escolástica de São Tomás de Aquino”.[6]
Um detalhe não nos escapa aos olhos: a figura do Doutor Angélico aparece diversas vezes nas pinturas do monge — isso é, pois, sinal inequívoco de sua profunda admiração pelo mestre da Escolástica; admiração que talvez seja o motivo pelo qual seus irmãos de hábito o apodassem “Angélico”: por considerarem-no um “Santo Tomás de Aquino da Pintura”.[7]
Antes de mais nada, a vocação religiosa
“Se não tivesse sido dominicano”, Fra Angélico “não teria sido o artista que foi”.[8] Este monge escolheu, de fato, o caminho da concepção pictórica, mas com uma forte carga espiritual. A vocação religiosa, que se sobrepôs à artística, teve raízes mais profundas, que lhe impulsionam, em momentos decisivos, a tomar uma direção que marcou toda a orientação de sua vida e de sua obra.[9]
É, pois, realmente palpável a consonância entre as pinturas de Fra Angélico e o pensamento do Doutor Angélico, a ponto de se poder dizer que o primeiro transpôs para o campo artístico a doutrina do segundo. Esta reversibilidade, síntese maravilhosa de espírito cristão, rendeu a Frei João de Fiesole o título de São Tomás da pintura, pois o pintor alcançou, no seu campo específico de atuação, uma genialidade semelhante à do teólogo.[10]
Por João Paulo de Oliveira
[1] Cf. FOMENT, Eudaldo. Santo Tomás de Aquino, el oficio del sabio. Barcelona: Ariel, 2007, p. 304.
[2] Cf. CLÉMENT, André. La Sagesse de Thomas d’Aquin. Paris: Nouvelles Editions Latines, 1983, p. 171, 366.
[3] Cf. SALAVERRI, José María. La Anunciación – conversaciones con Fray Angelico. Madrid: PPC, [s.d.], p. 50-51.
[4] Guillermo Fraile afirma que a influência São Tomás de Aquino foi quem determinou o triunfo da corrente científica na Ordem dos Pregadores. Cf. FRAILE, Guillermo; URDAÑOZ, Teofilo. Historia de la Filosofía. Madrid: B.A.C., 2005, v. 2, t. 2, p. 137.
[5] Cf. SALAVERRI. Op. cit. p. 8.
[6] ITURGAIZ, Domingo. El Angélico. Pintor de Santo Domingo de Guzmán. Salamanca: San Esteban, 2000, p.52 (tradução pessoal).
[7] Cf. ITURGAIZ. Op. cit., p. 20. Cf. etiam: LABRIOLA, Ada. Beato Angelico a Pontassieve – Dipinti e sculture del Rinascimiento fiorentino. Firenze: Mandragora, 2010, p. 97: “Nel 1468 il dominicano fra Domenico da Corella nel suo Theotocon lo designò “Angelicus Pictor”, un apellativo che segnerà la fama artistica e spirituale di fra Giovanni nella letteretura successiva.”
[8] GUIMARÃES FILHO, Luis. Fra Angélico. Rio de Janeiro: A noite, 1937, p.198.
[9] ITURGAIZ, Domingo. Op. cit., p. 85 (tradução pessoal).
[10] Cf. FERREIRA, Carmela Werner. O pintor do sobrenatural. Arautos do Evangelho, ano 10, n.112, abr. 2011, p. 23.
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