Eles viram, mas não amaram o suficiente
A reação do povoado de Nazaré – descrita no Evangelho em relação a Nosso Senhor – bem representa a atitude de muitas almas ao longo dos séculos: apegadas a si mesmas.
Redação (30/01/2022 08:03, Gaudium Press): A visita de Jesus a Nazaré, narrada no Evangelho deste IV Domingo do Tempo Comum (Lc 4, 21-30), demonstra a rejeição daquele povoado em relação ao Divino Mestre. Atitude esta que perdura ao longo dos séculos.
Amor desinteressado?
“Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam de sua boca. E diziam: ‘Não é este o filho de José?’ Jesus, porém, disse: ‘Sem dúvida, vós me repetireis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. […] Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria’” (Lc 4, 22-24).
Sabe-se comumente que quanto menor o lugarejo, mais forte o regionalismo. As notícias sobre o grande sucesso das pregações e milagres operados pelo novo profeta, surgido da pequena Nazaré, conduziam o povinho à euforia de ver um dos seus conterrâneos como figura de destaque em Israel. Afinal, um nazareno demonstraria o grande valor da cidadezinha, não só na Galileia, mas em toda a nação.
Por outro lado, esses sentimentos de ufania vinham pervadidos de ressentimentos (assim são as contradições produzidas pelo amor-próprio): por que tantos prodígios manifestados em Cafarnaum, e não em Nazaré? A impressão de discriminação brotava-lhes de uma autoestima desequilibrada. Não conseguiam entender as razões pelas quais Jesus, tendo Se beneficiado da localidade para formar-Se, crescer e viver, a abandonasse para lançar a outras o melhor de seus frutos.
Vemos então, que quando o amor não é puro, paciente, prestativo, mas busca apenas seus interesses pessoais, guarda rancor e se irrita (ver a segunda leitura de hoje: I Cor 13, 1-13). Ademais, produz um tipo de cegueira incurável, enquanto o egoísmo não for extirpado. “Não havia lugar onde Jesus mais quisesse derramar seus divinos favores do que ali”,[1] mas era indispensável a fundamental virtude da humildade para serem os habitantes de Nazaré objeto dos múltiplos dons do profeta taumaturgo.
O “batismo” da rejeição
Se, porém, Jesus sabia desde toda a eternidade que “nenhum profeta é bem recebido na sua terra”, por que desejou então retornar à aldeia de sua juventude? É que, além do batismo penitencial de João, buscava outro, o da rejeição… Esse é o terrível drama do verdadeiro apóstolo: ir aos seus, e os seus não o receberem (cf. Jo 1, 11).
Trata-se de um dos mais dolorosos estigmas, companheiro inseparável de tantos santos ao longo dos séculos, quer os do passado, quer também os do futuro até a vinda de Henoc e Elias, no fim dos tempos. A Santa Igreja, fundada por Cristo, se enriquece com os méritos daqueles que são desprezados por amor à justiça: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o Reino dos Céus!” (Mt 5, 10). Em Nazaré, com Jesus, encontram eles o consolo e a sustentação no exemplo divino.
Reação repetida ao longo dos séculos
“Não é este o filho do carpinteiro?” Assim reagiriam diante de Deus feito Homem os mundanos de todos os tempos. Viver em função de um fim último que se cumpre exclusivamente nesta Terra conduz a leviandades perigosas e arriscadas no tocante à salvação. Os toldados horizontes dos nazarenos não ultrapassavam os estreitos limites da própria aldeia. O maravilhamento manifestado pela oratória do Divino Mestre havia se detido na forma, sem penetrar em sua substância. Se suas palavras eram “cheias de encanto”, só podiam confirmar a fama de seus milagres e tornavam secundária sua origem familiar. Pois Davi não era filho do camponês Isaí? E Moisés — aquele que foi salvo das águas — teve uma ancestralidade à altura da missão que lhe fora conferida?
Bem comenta esta passagem São João Crisóstomo: “Esses insensatos, admirando embora o poder de sua palavra, desprezam sua pessoa, por causa daquele que consideravam seu pai”.[2] Por sua parte, diz São Cirilo: “Mas o fato de ser filho de José, como eles pensavam, impede de ser venerável e admirável? Não veem os milagres divinos, satanás vencido e os numerosos doentes curados de suas enfermidades?”.[3]
Daí o fato de o Divino Mestre ter interpretado o fundo do pensamento deles através desse provérbio popular, como se dissessem: “Ouvimos dizer que, em Cafarnaum, curaste muitos; cura-Te também a Ti mesmo, quer dizer, faz isto igualmente em tua cidade, onde foste concebido e criado”.[4] O fundo da ambição dos nazarenos estava enraizado num amor profundamente egoísta.
Qual deveria ter sido a disposição de alma daquele povoado? E de modo similar, qual deve ser a nossa? O famoso padre Badet tece um esclarecedor comentário:
“Não há caridade perfeita sem abnegação perfeita. Não há puro amor sem a completa ausência de todo pensamento pessoal. Quem se procura a si mesmo, peca contra o amor. Todo voltar-se sobre si mesmo é um ato egoísta e, em consequência, contrário à essência desse sentimento, que é o de se esquecer, de sumir, de desaparecer a seus próprios olhos, enquanto o objeto de seu amor torna-se tudo. Quem ama perfeitamente não faz exigências, não formula desejos, não coloca condição alguma, não pede nenhum favor. Se alguma vontade resta na alma que se desapropriou de si mesma, é a de se conformar em tudo à vontade do Bem-Amado. Ela O faz mestre de tudo, e seu abandono é absoluto, alegre. Eis sua recompensa: a alma que ama a Deus com essa pureza, ocupa o primeiro lugar em seu Reino, porque ela é a última para si mesma. […] Quanto mais ela se faz pequena, mais Deus a faz grande; quanto menos ela pensa em seus próprios interesses, mais Deus a provê magnificamente. Se ela se esquecer de si no amor, o Bem-Amado não a esquecerá!”.[5]
Extraído, com adaptações, de:
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2012, v. 6, p. 49-61.
[1] FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v. II, p. 38.
[2] SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c. IV, v. 22-27.
[3] Cf. SÃO CIRILO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. op. cit., v. 14-21.
[4] GLOSA, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., v. 22-27.
[5] BADET, Jean-François. Jésus et les femmes dans l’Évangile. 6. ed. Paris: Gabriel Beauchesne, 1908, p. 178-179.
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