Dante Alighieri e os lobos vorazes
“Para ele, os princípios se encarnavam e os erros tinham rostos humanos”.
Redação (07/01/2022 11:49, Gaudium Press) Em cada ramo da atividade humana surge, mais dia, menos dia, um homem ou uma mulher exponencial que personifica seu trabalho, que a todos os demais supera, que permanece, em seu campo, sem rival. Um religioso dominicano[1], certa vez, se indagava a respeito do pintor Fra Angélico: “n’est-il pas permis de soutenir qu’en peinture il est resté sans rival, comme Saint Thomas en Théologie, comme Dante en poésie?”.[2] Grande elogio ao artista italiano!
De fato, é difícil querer competir com o Aquinate no campo da Teologia. Seus ensinamentos foram, em grande parte, tomados pela Igreja Católica como alicerces seguros de sua doutrina e verdadeira baliza de ortodoxia.
Com Dante Alighieri algo similar se dá. Tornou-se ele um florão de glória no campo da poesia com sua “Divina Comédia”, poema fascinante, relato de uma viagem fictícia pelos reinos do outro mundo: Inferno, Purgatório e Paraíso.
Tal poema é dividido em três livros, cada um formado por 33 cantos[3] em tercetos decassílabos rimados, de modo encadeado e alternados de forma singular, cuja estrutura, criada originalmente para esta obra, ficou conhecida como “terzina dantesca”.[4] “Nenhuma obra literária foi sem dúvida mais totalmente da Igreja do que a Divina Comédia.”[5]
Críticas severas aos eclesiásticos de seu tempo
Dante Alighieri nasceu em Florença, no ano de 1265. Casou-se aos vinte com Gemma Donati, com quem teve três filhos (dois meninos e uma menina). Participou ativamente da política de seu tempo, sendo, em 1300, eleito como prior, dentre os seis, do Conselho de Florença, já naquele tempo cidade-Estado organizada e com governo democrático independente. Faleceu a 14 de setembro de 1321, exilado em Ravenna, logo após terminar de redigir o “Paraíso”.
Uma característica do “rei dos poetas” não permanece, de forma alguma, implícita em sua obra-mestra: “para ele, os princípios se encarnavam e os erros tinham rostos humanos.”[6]E isto até mesmo quando o assunto eram problemas internos da Igreja.
Assim, o historiador Daniel-Rops afirma: “A Divina Comédia apresenta o Inferno e o Purgatório povoados de cardeais ‘tão gordos que é preciso carregá-los’, de ‘lobos vorazes com roupas de pastores’, de clérigos impudicos. E o poeta indigna-se quando recorda que ‘Pedro e o vaso escolhido do Espírito Santo – São Paulo – iam descalços e magros, e comiam onde podiam!’ Maravilhosos gritos de protesto, dor dilacerante de almas verdadeiramente cristãs’.”[7]
É Dante que lança aos papas do seu tempo esta dura repreensão: “Modelastes um Deus de prata e ouro: a diferença que há entre vós e o idólatra é que este adora um deus e vós adorais cem”. (Inferno, Canto XIX, 112-114).[8]
“Ninguém – continua o historiador – falou com mais ardor e mais ternura da Esposa de Cristo do que aquele de quem se citam frequentemente, com certa complacência, as invectivas contra alguns dos seus chefes e algumas das suas instituições. Fazia-o porque experimentava por ela sentimentos filiais de uma imperiosa exigência. Queria vê-la infinitamente pura, infinitamente bela, rigorosamente fiel aos preceitos do seu Mestre, livre de todas as crostas com que a miséria do homem recobre esse vaso de eleição do Espírito Santo.”[9]
“Com efeito, se esta Igreja mereceu as críticas mais severas, a sua grandeza consistiu em nunca ter aceitado essa mácula e em ter sabido, não poucas vezes, reencontrar o fermento que tornaria a levedar a massa”.[10]
“Em vestes de pastor, lobos vorazes…”
Sete séculos nos separam da morte deste lumiar do cristianismo ocidental. Que diria Dante Alighieri – ou melhor, escreveria – a respeito dos problemas que hoje afligem a Igreja Católica?
Se bem que inseridos, originalmente, num contexto bastante diverso deste que predomina em nossos dias, não parecem especialmente aplicáveis à realidade que vivemos hoje?
O poeta os coloca como sendo proferidos por São Pedro (Segue o original, toscano, e, abaixo, a tradução portuguesa de Ítalo Eugenio Mauro):
Non fu la sposa di Cristo allevata
del sangue mio, di Lin, di quel di Cleto, per essere ad acquisito d’oro usata;
ma, per acquisito d’esto viver lieto, e Sisto e Pio e Calisto e Urbano sparser lo sangue dopo molto fleto.
Non fu nostra intenzion ch’a destra mano de’ nostri successor parte sedesse, parte da l’altra del popol cristiano;
né che le chiavi che mi fuor concesse, divernisser signaculo in vessillo che contra battezzati combattesse;
né ch’io fossi figura di sigillo a privilegi venduti e mendaci, ond’io sovente arrosso e disfavillo.
In vesta di pastor lupi rapaci si veggion di qua sú per tutti i paschi: o difesa di Dio, perché pur giaci? |
Não foi, de Cristo a Esposa, alimentada
do sangue meu e de Lino e de Cleto por na conquista do ouro ser usada;
mas, por chegar a este viver dileto, Sisto, Pio, Calixto – em sua paixão – e Urbano lhe votaram puro afeto.
Não foi desígnio meu que à destra mão dos sucessores meus parte vivesse, e parte, à outra, do povo cristão;
nem que das minhas chaves se pudesse a insígnia conspurcar para a bandeira que contra batizados combatesse;
nem que usasse o meu selo, à ligeira, por privilégios venais e mendazes que iriam levar-me a irar desta maneira.
Em vestes de pastor, lobos vorazes veem- se daqui sobre qualquer pastagem: ó cólera de Deus, por que inda jazes?” |
(Paraíso, Canto XXVII, 40-53)
Por João Paulo Bueno
[1] M. A. Janvier, O.P.
[2] “De Fra Angélico não é permitido sustentar que, na pintura, permaneceu ele sem rival, como São Tomás na Teologia, como Dante na poesia?”
[3] Com exceção do “Inferno”, onde o primeiro verso serve de introdução.
[4] Os versos seguem o esquema ABA-BCB-CDC-DED, e assim por diante, e são redigidos em toscano.
[5] ROPS, Henri-Daniel. História da Igreja de Cristo: A Igreja das Catedrais e das Cruzadas. São Paulo: Quadrante, 1993, p. 674.
[6] Id., p. 670.
[7] Id., p. 139.
[8] Cf. Id., p. 618.
[9] Id., p. 674.
[10] Id., p. 139.
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