Montserrat: milagres, lendas e mistérios
O mosteiro de Montserrat, tão frequentado por santos, como Inácio de Loyola ou Francisco de Borja, continua sendo um dos mais célebres lugares religiosos da Espanha, a arca de belas lendas e tradições.
Redação (01/11/2021 05:00, Gaudium Press) No mesmo lugar onde agora se alça, airoso e desafiante, o mosteiro de Nossa Senhora de Montserrat, não longe das ilustres terras de Barcelona, há mais de mil anos habitava um experimentado ermitão, conhecido como João Garín, homem dedicado a Deus, que vivia em cavernas e grutas nas alturas daquela serra.
Ainda que o silêncio e a soledade pontuassem a vida inteira do santo anacoreta, sua pessoa saltaria do anonimato para a fama por um acontecimento realmente dramático e inimaginável.
No alto da montanha…
O então conde de Barcelona, Wifredo[1], tinha uma filha, menina de excepcional beleza, chamada Riquilda. Ao completar doze anos, nela apresentaram-se sinais inequívocos de possessão diabólica. Tais sinais chamavam a atenção de toda a corte, que incessantemente recorria a certos homens de Deus a fim de libertar a jovem moça do poder do maligno.
Nem preces, nem exorcismos, nem longas e intermináveis súplicas lograram devolver a saúde à tão bela jovem. Em tão amarga situação, era de consenso geral que a última pessoa capaz de obter o favor do Céu seria o santo ermitão que vivia penitenciando-se nas altas montanhas de Montserrat.
A menina foi, pois, conduzida à gruta do ermitão, onde deveria permanecer durante nove dias para receber os exorcismos e orações do frei João. O resultado não pôde ser mais positivo: o demônio deixou, por fim, a inocente presa.
O conde Wifrido, querendo garantir definitivamente a cura de sua filha, quis deixá-la na companhia do eremita durante algum tempo, enquanto ele mesmo agradeceria a Virgem Santíssima o favor recebido. Ficaram, então, sós — eremita e menina — naqueles altos páramos.
Por profundos vales
Entretanto, após não longo período, o eremita deteve-se demasiado na admiração daquela inocente alma; atenção que, paulatinamente, o fez atropelar todas suas convicções religiosas e esvanecer por completo suas boas intenções, pecando, por fim, com a jovem.
Fora de si por seu ato, e por medo de uma ulterior investigação, degolou a pobre moça e a enterrou entre os rochedos e areias da gruta.
João, quando realmente deu-se conta do sucedido, horrorizado consigo mesmo, fugiu incontinenti; ninguém soube o que havia acontecido, nem mesmo o próprio conde. Com o peso de seu crime às costas, palmilhou caminhos e estradas sem rumo, vindo a chegar — decerto por milagre — à própria Roma.
Decidiu buscar o perdão de seu pecado: diante do Vigário de Cristo implorou a absolvição.[2] O Santo Padre concedeu-lhe imediatamente o perdão à preço, porém, de uma dura penitência: voltar de joelhos à gruta do assassinato, olhando senão para o chão e vivendo de jejuns; “o perdão definitivo virá — continuou o Papa— pela boca de um menino”. Ainda que pareça impossível, o arrependido pecador encetou na mesma hora o caminho de Montserrat, perfazendo um trajeto que durou ao total sete longos anos…
Findo o mandato papal, o estado de seu corpo era realmente lastimoso… Assemelhava-se mais a um animal do que a um homem quando, por fim, bateu os olhos na sua gruta.
Nas terras de Barcelona, seguia reinando Wifredo. Aficionado à caça como era, apreciava enormemente os escarpados do Montserrat. Em uma dessas caçadas, alguns de seus pajens divisaram um ser selvagem que jazia semimorto no fundo de uma caverna. Como era de se esperar, Garín foi levado, com extrema precaução, e não menos curiosidade, à prisão do conde.
Exposto ao público como entretenimento, a gente curiosa desfilava diante da jaula do desgraçado em constantes burlas e diversões.
Um dia, coincidindo com a presença do conde, aglomerou-se diante da jaula uma multidão de curiosos, dentre os quais uma mulher com uma criança de três meses. No momento exato em que a mãe passava diante do selvagem, o menino dirigiu-se ao irreconhecível monge, para pasmo geral: “João Garín, Deus te perdoou. Tua penitência já é suficiente. Não voltes a pecar”.
De volta às alturas
Ao ouvir a criança falar, Wifredo se aproximou; o pobre João Garín ergueu os olhos e, tendo recobrado o ânimo, confessou ao conde seu pecado. Diz a crônica que “apenas Deus mesmo pôde aplacar a ira de Wifredo” que, abatido por tamanho golpe, apenas pôde dizer: “Se Deus te perdoou, que coisa posso eu fazer?”
Quis então conhecer todos os detalhes e, ao chegar à hora do “sepultamento”, pediu ao monge que o levasse ao local da gruta.
Toda a comitiva os acompanhou; ao deitar as primeiras lágrimas sobre a tumba da jovem, Wifredo viu com espanto a menina levantar-se debaixo da areia e lançar-se chorando nos braços de seu pai. Suas únicas palavras foram uma súplica: que ali mesmo fosse construído um mosteiro e que ela, pelo milagre ocorrido, fosse sua primeira religiosa.
Deste modo, erigiu-se o glorioso monastério de Montserrat, local realmente lendário, repleto de milagres e acontecimentos marcantes na história da Espanha, centro mariano e amparo de grandes santos. Mesmo o pobre monge, arrependido, foi a partir de então um grande colaborador das religiosas de Montserrat, vindo a falecer em odor de santidade.
Virgem de Montserrat
Posteriormente, outro mistério veio a pintar mais ainda a legenda sobre o antigo mosteiro: a devoção à Virgem de Montserrat.
Segundo a tradição, a imagem que ali se conserva remonta à época apostólica. Dada a tamanha afluência de neófitos à Igreja após Pentecostes, São Pedro e os apóstolos viram-se na necessidade de plasmar imagens de Cristo e de sua Mãe Santíssima —ainda viva sobre a Terra — para que não se perdesse precioso legado.
Ficou determinado então que Nicodemos se ocuparia das imagens de Nosso Senhor, enquanto que o evangelista São Lucas se encarregaria das de Maria Santíssima. Por mil circunstâncias, uma desta réplicas da fisionomia de Maria foi parar nas longínquas terras da Espanha, vindo a constituir um dos maiores tesouros da piedade e religiosidade locais.
Estas preciosidades enchem páginas e mais páginas da história do Cristianismo, a qual só é entendida por aqueles que sabem ver a mão de Deus e da Virgem Santíssima conduzindo seu belo curso.
Por André Luiz Kleina
Traduzido, com adaptações, de:
BLÁSQUEZ, José Sendín. Enigmas, historias y leyendas religiosas. Madrid: BAC, 2004, p. 83-88.
[1] Wifredo reinou entre os anos 874 e 898.
[2] Este pontífice, segundo conjecturas, seria Santo Adriano III (884-885).
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