Santa Beatriz da Silva
“Filha, não morrerás. Fundarás uma grande ordem religiosa com o título da Imaculada Conceição; suas filhas vestirão um hábito semelhante às minhas vestes e se dedicarão a servir a Deus, em união comigo”.
Redação (17/08/2023 10:06, Gaudium Press) Dom Rui Gomes da Silva, bravo cavaleiro português, participou da tomada de Ceuta e permaneceu em território luso na África, como alcaide da vila fronteiriça de Campo Maior. Por seu heroísmo e coragem, ali recebeu em casamento Dona Isabel de Menezes, filha do Conde de Vila Real, ilustre descendente do primeiro monarca português, Dom Afonso Henriques.
Foi no seio desse matrimônio que nasceu, em 1426, Beatriz da Silva Menezes, a oitava filha do nobre casal. À elevada origem, unia Dona Isabel singulares virtudes de esposa e mãe, que soube educar com profundo senso católico seus numerosos filhos.
Calma e inocência até os 23 anos
Desde a mais tenra idade, Beatriz demonstrava qualidades excepcionais: docilidade, retidão de consciência, inclinação para as virtudes e atração pelas coisas elevadas e espirituais. Em certa ocasião, seu pai encomendou a um pintor um quadro da Santíssima Virgem. Escolhida para posar como modelo, Beatriz se manteve todo o tempo com os olhos baixos, por humildade. O quadro ainda existe e é conhecido como a Virgem dos olhos fechados.
Até os 23 anos viveu calmamente no seio da família, mas em 1447, sua vida sofreu uma grande mudança. A princesa Dona Isabel, sua prima de 19 anos, ia se casar com Dom João II de Castela e a convidava para ser sua dama na corte espanhola.
Beatriz confiou à Santíssima Virgem a perspectiva aberta por esse convite. Embora ainda não estivesse definido o dogma da Imaculada Conceição, era pelo nome de Imaculada que ela gostava de invocá-La.
Nem lhe vieram à mente as honras, a posição social, o lugar de destaque na corte. Sua preocupação era, sobretudo, glorificar a Deus.
Virtude ilibada em meio aos perigos da corte
Beatriz partiu. Encontrou um ambiente muito diferente daquele no qual até então tinha vivido. Nele não faltavam ambição, intrigas, invejas dissimuladas, competições e comparações.
Beatriz possuía beleza, dignidade e gentileza extraordinárias. Todos afirmavam que nunca haviam visto nobre mais formosa em terras de Espanha e Portugal. Recebia, por isso, inúmeros elogios das outras damas e também dos cavalheiros.
Mas ela atraía, sobretudo, pela beleza de seu espírito. Sua grandeza de alma a mantinha acima de todas as futilidades mundanas e, ao mesmo tempo, a fazia condescendente e bondosa para com todos, exceto com quem poderia desviá-la do caminho reto.
Vítima do ciúme da soberana
Passaram-se três anos desde a chegada de Beatriz à corte. Suas virtudes, que antes produziam admiração, agora eram causa de ciúme e comparações, aos quais a própria rainha Isabel não ficara imune.
Boatos maldosos lançavam dúvida sobre a virtude de Beatriz, pois o rei Dom João II, homem de caráter tímido e inseguro, procurava alento para governar seu reino nas conversas elevadas que com ela mantinha. Surgiram, então, na rainha Isabel, ideias fantasiosas acerca da fidelidade conjugal do seu esposo.
Tomada de profundo ódio, ela procurou de todas as formas mal tratar Beatriz. Além de repreendê-la severamente em público, isolava- a do conjunto das damas nobres e patenteava-lhe desprezo por meio de palavras ásperas e cortantes.
Embora a santa suportasse todas essas humilhações com exemplar humildade e redobrasse suas manifestações de amor e fidelidade para com a rainha, esta decidiu de uma vez por todas livrar-se dela.
Certa noite, tendo chegado cansada a seus aposentos, Beatriz derramou abundantes lágrimas aos pés de uma imagem de Nossa Senhora e implorou-Lhe forças para manter-se fiel naquela dramática situação e poder cumprir o chamado que sentia no fundo da alma.
Logo depois, ouviu fortes golpes na porta. Quem seria àquelas horas? Era Dona Isabel, que a fulminava com olhos desvairados, segurandonuma das mãos uma lanterna.
– Segue-me! – ordenou-lhe, com voz fria, a soberana. A jovem dama deixou seus aposentos e seguiu a rainha que, com passos rápidos, dirigia-se à parte inferior do castelo.
Atravessaram longos corredores e desceram as enormes escadas que conduziam a um subterrâneo. A escuridão ali era completa e as paredes frias e úmidas. Beatriz teve medo das intenções da soberana. Esta se deteve diante de um velho cofre, alto e muito estreito, e, com uma gargalhada sarcástica, disse:
– Já me enganaste até agora! Pretendes conquistar o rei, livrar-te de mim e subir ao trono de Castela… Não o conseguirás! Entra aí ou eu mesma a lançarei. Fitando-a com firmeza, disse-lhe Beatriz:
– Senhora, quereis matar-me, mas sabei que sou inocente das culpas que me imputais. Deus, justo Juiz, é testemunha de vosso ato. Que Ele perdoe a vossa loucura, minha prima, e vos dê a graça do arrependimento para purificardes vossa alma.
Dona Isabel empurrou-a violentamente para dentro do cofre, bateu a porta e trancou-a com uma grande chave, esperando que a falta de oxigênio ceifasse a vida de sua bela “rival”.
No pavor e na escuridão brilha a Imaculada
A nobre dama viu-se sem qualquer possibilidade de salvação. Morreria sem os Sacramentos, sem receber auxílio de ninguém, numa agonia lenta e pavorosa. Começava já a sentir falta de ar. Só os Céus poderiam ajudá-la. Confiante, dirigiu-se a Nossa Senhora:
– Ó Maria Imaculada, valei- me! – Nesse instante, mais resplandecente que o Sol, apareceu- lhe Nossa Senhora vestida de branco, com um manto azul, e tendo nos braços o Menino Jesus.
– Filha, não morrerás. Conservo-te a vida para realizares o que tanto tens desejado. Fundarás uma grande ordem religiosa com o título da Imaculada Conceição; suas filhas vestirão um hábito semelhante às minhas vestes e se dedicarão a servir a Deus, em união comigo.
Arrebatada por tal visão, Beatriz permaneceu três dias no cofre, cheia de consolação e alegria, sem sentir passar o tempo.
Seu tio, Dom João de Menezes, que também residia na corte, notando a ausência da sobrinha, foi pedir a Dona Isabel notícias dela. A rainha levou-o ao cofre, onde julgava encontrar apenas um cadáver. Mas, qual não foi sua surpresa! Ao abrir a porta, saiu Beatriz ainda mais bela, reluzente como um diamante.
Preparação para a grande fundação
Beatriz perdoou sua ama, que se arrependera, mas decidiu deixar as intrigas da corte e procurar refúgio no mosteiro de São Domingos el Real, situado em Toledo.
Naqueles tempos, era comum os conventos hospedarem pessoas de alta categoria que, sem obrigação de seguir a regra, neles levavam uma vida monacal. Era por esse estilo de vida que Beatriz ansiava. Não mais serviria a uma rainha da terra, mas à Rainha dos Céus.
Dona Isabel, em reparação pelo que fizera, lhe preparara todo o necessário para a penosa e arriscada viagem. No caminho, Beatriz encontrou- se com dois frades franciscanos que lhe falaram profeticamente sobre o futuro de sua fundação. Quando, porém, ela os convidou para cearem com a comitiva, na próxima pousada, eles desapareceram aos olhos de todos.
Ela então compreendeu que eram São Francisco de Assis e Santo Antônio de Lisboa, fortalecendo- a para seguir com seu empreendimento.
Após transpor os umbrais da clausura do mosteiro de São Domingos, a nobre dama cobriu seu rosto com um véu branco, que usaria até o fim da vida para ocultar sua formosura aos homens e oferecê-la só a Deus. Nunca mais aquela belíssima fisionomia, que conservaria sua juventude e louçania até a morte, seria contemplada pelas criaturas.
O silêncio, o recolhimento e o cerimonial preparavam-na para enfrentar as dificuldades que seriam a base de sua fundação. A visão que tinha contemplado dentro do bendito cofre nunca a abandonava…
Quando chegaria o dia de vestir aquele hábito branco e azul, símbolo da Imaculada?
Os frutos de uma longa espera
As longas esperas anunciam que Deus será generoso no momento de dar. Passaram-se mais de trinta anos… Trajando um burel religioso, Beatriz, simples hóspede no mosteiro, porta-se de tal forma como uma perfeita religiosa que as próprias monjas a tomam como exemplo.
Em 1484 uma importante visita chega ao mosteiro. Era a rainha Isabel, a Católica, filha e sucessora daquela que quisera tirar a vida de Beatriz. Vinha pedir-lhe orações pela situação política de seu reino.
No fim da conversa, a soberana, muito empenhada em ajudá-la em algo, ofereceu-lhe um palácio junto à Igreja da Santa Fé, em Toledo, para aí iniciar sua obra tão almejada. Beatriz viu nesse oferecimento a mão da Divina Providência: era o momento!
A fundação
A notícia da fundação do novo mosteiro correu célere por toda a redondeza. Logo se apresentaram várias candidatas, muitas delas de nobre família, para pertencer à Ordem das Concepcionistas Franciscanas, pois seria um ramo da Ordem dos Frades Menores. A todas Beatriz instruía sobre a austeridade da vida monástica, a clausura, o silêncio e a mortificação.
Doze dessas jovens perseveraram em seus piedosos desejos, inclusive Filipa da Silva, sua sobrinha. Beatriz se empenhava em formar suas filhas espirituais. Tomando como mestra e modelo sua santa madre, elas moldaram- se inteiramente por seu grande espírito.
Viviam em contemplação e trajavam, em caráter privado, hábito branco com uma imagem da Virgem cercada de raios e coroada de doze estrelas, manto azul, e cingiam-se com o cordão de cânhamo franciscano.
Com a fundação desse convento estava estabelecida a Ordem da Imaculada? Ainda não. Faltava a aprovação definitiva do instituto com sua regra, hábito e título de Imaculada Conceição. Era preciso solicitá-la à Santa Sé. Disto se encarregou a rainha, que gozava de grande estima junto ao Pontífice reinante, Inocêncio VIII.
Algum tempo depois, Beatriz foi chamada à roda do mosteiro. Era um cavaleiro com a notícia de que o Papa aprovara sua fundação e que a bula de aprovação já se achava a caminho, por mar. A alegria pervadiu o convento: cânticos, festas!
Mas, passados alguns dias, o mesmo cavaleiro retornou com uma trágica notícia: o navio havia naufragado e a bula estava perdida.
Beatriz levou um forte golpe. Seria algum sinal da Providência? Pôs-se diante do sacrário, rezando por sua fundação. Suas filhas, em vigília, oravam com ela. Permaneciam numa inabalável confiança, pois a Santíssima Virgem não deixaria inacabada a obra por Ela mesma começada. Mas era uma delonga cuja duração não podiam calcular…
A confiança gera o milagre
Após três dias de orações, a santa madre abriu a gaveta de um móvel, da qual só ela tinha a chave, e deparou com um pergaminho enrolado, que ela nunca vira antes. Sentiu um forte cheiro de mar e seu coração estremeceu: “Meu Deus, isto parece a bula pontifícia”. Pegou-o e percebeu um selo pendente de um fio; desenrolou- o um pouco e pôde ler algumas palavras em latim. Tinha todas as características de uma bula.
Para certificar-se de que realmente se tratava de um milagre, Beatriz enviou o documento ao bispo para este dar seu parecer: era a bula Inter Universa, com a aprovação pontifícia da Ordem, datada de 30 de abril de 1489! Ficou conhecida como a “Bula do Milagre”.
Beatriz era devota do Arcanjo São Rafael desde a infância. E estava totalmente convencida de que o cavaleiro que lhe trouxera a notícia da bula era ele. Portanto, para ela, São Rafael também havia recuperado o documento das águas!
A verdadeira renúncia
Em agosto de 1490, quando as religiosas faziam o retiro preparatório para a profissão solene dos votos e a recepção oficial do hábito, a Virgem Maria apareceu à santa fundadora e lhe disse:
– Filha, não é minha vontade, nem de meu Filho, que gozes aqui na terra o que tanto tens desejado. Daqui a dez dias virás comigo ao Paraíso.
Beatriz caiu enferma e revelou ao confessor a visão que tivera. Manteve- se sempre calma e confiante, oferecendo a Deus o que lhe era mais caro: a realização de sua obra.
Recebeu o hábito e fez os tão desejados votos. Para ministrar-lhe a unção dos enfermos foi necessário descobrir sua face e todos puderam então contemplar uma fulgurante estrela que brilhava sobre sua fronte e se refletia no sorriso. Essa estrela assim permaneceu até a santa exalar o último suspiro. Era o dia 16 de agosto de 1491.
A estrela da Imaculada continua a refulgir nos céus da Igreja
Os ecos de sua santidade, que já se faziam ouvir durante sua vida, propagaram- se muito mais após sua morte. A própria permanência da nova Ordem, que rapidamente se expandiu em meio a tremendas dificuldades, é prova de sua intercessão.
Papa Paulo VI canonizou-a em outubro de 1976.
A humilde árvore nascida na escuridão de um cofre haveria de estender seus galhos por toda a terra e amparar sob sua sombra protetora as almas desejosas de servir Àquela que é “bela como a Lua, brilhante como o Sol e terrível como um exército em ordem de batalha” (Ct 6,10)
Texto extraído, com pequenas adaptações, da Revista Arautos do Evangelho, n. 84, dezembro 2008.
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