Beato João Dominici: um homem providencial na solução do Grande Cisma
10 de junho, memória do Beato João Dominici, religioso dominicano eleito Bispo de Ragusa da Dalmácia. Em meio à confusão generalizada, o Beato João Dominici foi o homem enviado pelo Céu para resolver uma situação calamitosa para a Igreja, cujos complexos aspectos jurídicos eram só a ponta do “iceberg”.
Redação (10/06/2024 08:13, Gaudium Press) Nunca na História da Igreja se verificara um tal escândalo: treze dos Cardeais que em abril de 1378 haviam elegido o Papa Urbano VI se retrataram poucos meses depois e convocaram um novo Conclave, no qual foi eleito o antipapa Clemente VII. Começou assim o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417).
Prolongava-se já por quase três décadas a mais dolorosa cisão até então conhecida pela Esposa de Cristo, pois atingia o seu Vigário na terra.
Conversa com o Papa junto à lareira
Em fins de 1406, o ancião Ângelo Correr, recém-eleito Papa Gregório XII, conversava junto a uma lareira do Palácio Apostólico do Vaticano com um homem de sua inteira confiança, o sacerdote João Dominici, membro da Ordem dos Pregadores, a respeito das incertezas que pairavam sobre seu Pontificado.
— Pe. Dominici, observei no decorrer do Conclave seus finos dotes diplomáticos. Como o senhor sabe, fiz, como os outros Cardeais, o juramento de empenhar-me em pôr fim ao cisma e de iniciar para isso, no prazo de três meses, as tratativas necessárias para obter um encontro pessoal com o antipapa de Avignon. Peço-lhe que permaneça em Roma, pois preciso de sua ajuda.
— Santo Padre, aqui estou para vos servir. O cisma converteu-se, de fato, num interminável pesadelo para toda a Cristandade. Vossa disposição de renunciar, caso seja necessário, para o bem da Igreja é, sem dúvida, muito importante; muito mais importante, porém, é que essa eventual renúncia seja apresentada no momento certo, nem antes nem depois.
A única solução para o cisma
Depois de um minucioso estudo da complexa questão, os doutores da Universidade de Paris chegaram à conclusão de que havia para ela três soluções possíveis.
Primeira, a via cessionis, que consistia em que cada um dos Pontífices renunciasse voluntariamente aos seus direitos.
Segunda, a via iustitiæ, ou via conventionis. Consistia esta em apurar por via jurídica, num colóquio entre os Pontífices interessados, acompanhados por seus respectivos Cardeais, qual era o Papa legítimo.
Terceira, a via concilii, ou seja, atribuir a um Concílio universal o poder de depor os Pontífices em questão, inclusive o legítimo. Recorrer a esta via supunha, entretanto, aceitar a supremacia do Concílio sobre o Romano Pontífice.
Três “papas” em vez de dois
O desgaste provocado pela complexa situação se agravava pela indecisão de Gregório XII na hora de promover o esperado encontro com o antipapa Bento XIII.
E quando, por fim, se conseguiu fixar data e lugar para o encontro, Gregório XII mudou de opinião no último momento, cedendo à pressão de alguns parentes e conselheiros.
Quase simultaneamente, ele resolveu criar quatro novos Cardeais – um dos quais o Pe. João Dominici –, pois desconfiava de alguns membros do Sacro Colégio que davam ostensivas mostras de inconformidade com suas decisões.
Foi então que sete Cardeais decepcionados com as atitudes de Gregório XII se uniram a mais sete fiéis ao antipapa Bento XIII, com o qual estavam igualmente decepcionados, e decidiram pôr fim ao cisma pela via dos fatos: em março de 1409, reuniram-se em Pisa e convocaram um Concílio que excomungou e depôs – de modo inválido, obviamente – Gregório XII e Bento XIII. Pretendendo ter assim extinguido o cisma, convocaram um Conclave no qual elegeram mais um antipapa, Alexandre V.
Em vez de dois, os “papas” eram agora três! Isto causava grande aflição em todos quantos, como João Dominici, se davam conta de que estava em jogo, não só a paz e unidade da Igreja, mas também, e sobretudo, a integridade da autoridade do Papado.
Caso se estabelecesse o princípio de que um Concílio universal tinha poder para depor o legítimo Sumo Pontífice, ficaria instaurada uma tese contrária à Tradição e à verdadeira doutrina católica. E estaria semeado o joio para produzir cismas no futuro. Negado o primado de Pedro, a Igreja deixaria de ser Igreja.
O antipapa João XXIII e o Imperador Segismundo
Na noite de 24 de dezembro de 1414, chegava à cidade de Constança, Alemanha, o majestoso cortejo de Segismundo de Luxemburgo, cabeça do Sacro Império Romano-Germânico. Na catedral, o Sumo Pontífice o esperava para a solene Missa de Natal.
O “pontífice” acima mencionado era na realidade Baltasar Cossa, o antipapa João XXIII, sucessor de Alexandre V na Sé cismática de Pisa.
Segismundo, que gozava de grande prestígio em toda a Cristandade, havia recebido secretamente instruções do Papa Gregório XII para solicitar a esse antipapa a convocação do Concílio pois, por mais surpreendente que possa parecer, quem tinha o maior poder de convocatória naquela conjuntura era João XXIII.
Um pergaminho secreto
Quando o Concílio convocado pelo antipapa João XXIII foi inaugurado, em 4 de novembro de 1414, o Cardeal Dominici já se tinha tornado confessor e conselheiro de Gregório XII. Havia dado também abundantes provas de fidelidade e tino diplomático, pelo que o Romano Pontífice decidiu enviá-lo a Constança como Legado Pontifício.
A essas alturas, quase ninguém duvidava que a abdicação voluntária do Papa legítimo era condição indispensável para a extinção do Grande Cisma. Restava apenas uma questão: quando e de que maneira o fazer?
O Cardeal Dominici preparou-se para partir, mas antes pediu a Gregório XII para assinar e selar com o Anel do Pescador um pergaminho preparado por ele mesmo, cuja existência deveria permanecer secreta até o momento de ser apresentado à grande assembleia.
Dupla preocupação do Legado Pontifício
Ao chegar a Constança em 4 de janeiro de 1415, o Cardeal João Dominici tinha uma dupla preocupação.
Primeira, a de não tomar atitude alguma que pudesse ser interpretada no sentido de que o Papa Gregório XII estava legitimando algum dos antipapas ou o próprio Concílio, o qual não fora convocado pelo Pontífice Romano e, portanto, não podia ser considerado universal.
Segunda, era necessário afirmar com toda clareza a superioridade absoluta do Papa legítimo sobre qualquer Concílio, em qualquer circunstância. Ora, o ambiente de Constança estava fortemente viciado pela presença dos conciliaristas, os quais ansiavam por tomar as conclusões daquela magna assembleia como confirmação oficial de suas espúrias teses.
Visando tirar Gregório XII da situação de descrédito na qual havia caído, o Cardeal Dominici começou por comunicar que o Papa estava disposto a abdicar, desde que o fizessem também o antipapa de Avignon, Bento XIII, e o de Pisa, João XXIII. Acrescentou que o documento de abdicação chegaria de Roma em tempo oportuno, com a condição de não ser dado a conhecer numa sessão presidida pelo antipapa de Pisa.
Dias depois, João XXIII fez ler no plenário sua própria declaração de abdicação, que, entretanto, somente se tornaria efetiva quando Gregório XII e Bento XIII fizessem o mesmo.
Na realidade, a atitude do antipapa de Pisa era um golpe de efeito e alcançou o objetivo almejado: Segismundo levantou-se logo do trono e, de joelhos, beijou o pé do pontífice. Em seguida, um Patriarca apresentou-lhe pomposamente os agradecimentos de todo o Concílio.
O episódio colocou em difícil situação o Cardeal Dominici. Nessas circunstâncias, mandar trazer de Roma o documento de abdicação de Gregório XII poderia ser interpretado como uma legitimação do Concílio e do antipapa.
Por outro lado, adiar sem justo motivo a chegada desse documento significava dar razão aos detratores do Papa legítimo. Como sair-se do dilema? A Divina Providência veio em sua ajuda.
O Concílio depõe os dois antipapas
Em 20 de março de 1415, João XXIII decidiu fugir de Constança, visto que a magna assembleia, àquela altura dominada pelos conciliaristas, tomava rumos contrários às suas pretensões.
Nas sessões seguintes o interesse concentrou-se fundamentalmente no episódio da fuga de João XXIII e nas tratativas para sua deposição, efetivada no dia 29 de maio.
Por outro lado, a manifesta obstinação do antipapa Bento XIII acabou por desprestigiá-lo aos olhos da Cristandade, fazendo com que deixasse de ser obstáculo para a extinção do cisma.
De qualquer forma, também ele foi objeto de um processo canônico por parte do Concílio, que resultou na sua solene deposição.
Uma intervenção fora da ordem do dia
No dia 15 de junho chegou a Constança o Príncipe Carlos Malatesta, na qualidade de ministro plenipotenciário do Romano Pontífice. Vinha com instruções de Gregório XII para pôr-se às ordens do Cardeal Dominici e trazia a esperada declaração de abdicação, cuja leitura oficial ficou marcada para a primeira sessão solene a realizar-se. Os conciliaristas antegozavam já os doces sabores da vitória.
Duas semanas depois, no dia 4 de julho, iniciou-se a XIV Sessão Solene, sob a presidência do Cardeal de Cambray.
O Beato João Dominici havia solicitado fazer uma intervenção não prevista na ordem do dia e foi autorizado. Assim, antes que o Príncipe Carlos Malatesta, meticulosamente orientado por ele, fizesse a leitura da fórmula de abdicação, levantou-se o Cardeal Dominici tendo em mãos um pergaminho enrolado. Era o mesmo que havia sido assinado e selado por Gregório XII antes de sua partida para Constança.
Tratava-se, nada mais nada menos, de um decreto de convocação do Concílio de Constança. O Cardeal de Cambray compreendeu imediatamente o alcance das palavras que estavam sendo lidas pelo Cardeal Dominici. Entenderam-no também os conciliaristas mais radicais, que logo começaram a provocar um tumulto no recinto sagrado, exigindo que a sessão fosse anulada, por não estar prevista na ordem do dia essa intervenção.
Terminadas as palavras do Cardeal Dominici, Carlos Malatesta levantou-se sem perder um segundo e, sem se deixar impressionar pelo tumulto, fez a leitura oficial da fórmula de renúncia do Papa Gregório XII. Isto feito, se a sessão fosse anulada, como desejavam os conciliaristas, deveria ser considerada nula também a renúncia do Papa de Roma.
A manobra diplomática do Cardeal Dominici havia sido precisa e eficaz. O Papa legítimo tinha renunciado oficialmente perante um Concílio que acabava de ser declarado legítimo por sua autoridade pontifícia.
O Grande Cisma estava substancialmente superado. E estava também salva pela via dos fatos a doutrina da superioridade do Papa sobre o Concílio; não só a de Gregório XII sobre o Concílio de Constança, mas a de qualquer Papa legítimo sobre qualquer Concílio universal.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n.186, junho 2007.
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