Santa Bernadette e “a loucura da Cruz”
Muitos sabem que Nossa Senhora apareceu em Lourdes à Bernadette Soubirous. Pouco, porém, se conhece de sua vida de sofrimento como religiosa em Nevers e dos motivos que a levaram a se oferecer como vítima expiatória.
Redação (16/04/2021 10:32, Gaudium Press) Na antevéspera de sua morte, Santa Bernadette Soubirous confidenciou a uma de suas irmãs de vocação: “Estou moída como um grão de trigo. Jamais pensei que fosse necessário sofrer tanto para morrer”. E quando, pouco antes de sua partida para o Céu, alguém disse que ia pedir a Nossa Senhora para lhe enviar alguma consolação, a Santa replicou prontamente: “Não, nada de consolações, mas sim força e paciência”.
Nessas duas frases, revela-se um importante aspecto da vida de Bernadette: seu oferecimento ao Senhor como vítima de expiação. Trata-se de uma altíssima via, pela qual caminham somente aqueles que, atendendo às santas exigências da amizade divina, procuram inflamar-se sempre mais no fogo da caridade e glorificar a Deus no meio das tribulações.
É o que São Paulo chama “loucura da Cruz” (cf. I Cor 1, 18), a qual se verifica nos Santos quando o amor ao sofrimento “alcança certo grau de magnanimidade que os impulsiona a desejar toda classe de padecimentos interiores e exteriores, com o fim de identificar-se mais com o Divino Crucificado e ajudá-Lo mais eficazmente em sua obra redentora”.
“Meu ofício é estar doente”
Na primeira vez que lhe dirigiu a palavra, Nossa Senhora fez a Bernadette uma promessa austera e sublime: “Não prometo vos fazer feliz neste mundo, mas no outro”. Ou seja, logo de início cuidou Ela de preparar a jovem vidente para os sofrimentos que haveriam de triturá-la “como um grão de trigo”.
Bernadette tinha consciência de sua missão de vítima. Interrogada certo dia sobre o motivo pelo qual Nossa Senhora não a curava, respondeu com toda naturalidade: “Talvez Ela queira que eu sofra…”
Muito sugestivo, nesse sentido, é um episódio ocorrido quando ela jazia inválida no leito de dores. Sua superiora entrou na enfermaria e, à guisa de saudação, perguntou com um amável sorriso:
— Que fazes aqui, minha preguiçosa?
— Minha madre, faço meu ofício.
— E que ofício é o teu, minha filha?
— Meu ofício é estar doente.
Tais palavras equivaliam a dizer: “Meu ofício é sofrer como vítima expiatória”. O Pe. Febvre, capelão do convento e confessor de Bernadette, também nos deixou este valioso depoimento: “Sua ambição, que ela fazia de tudo para ocultar, era de ser vítima pelo Sagrado Coração de Jesus”.
Uma cascata de flagelos
A Divina Providência aceitou com sofreguidão, por assim dizer, o oferecimento da Santa de Lourdes, e impressiona a cascata de flagelos que sobre ela se abateu.
Desde o início das aparições foi submetida a um massacrante assédio não só de pessoas piedosas e movidas por verdadeira devoção, mas também de gente de má-fé, à busca de algum pretexto para atacar a Religião.
Suportou ainda inúmeras provações durante os anos de vida religiosa na casa-mãe das Irmãs da Caridade e da Instrução Cristã, em Nevers, onde foi admitida como noviça em 1866, aos vinte e dois anos de idade.
Por fim, sofreu os padecimentos decorrentes de várias enfermidades: asfixiantes crises de asma, tumor de origem tuberculosa no joelho direito, dilaceração do peito acompanhada de vômitos de sangue, aneurisma, cólica gástrica e, nos últimos dois anos nesta terra, cárie dos ossos. “Seu pobre corpo tornou-se o receptáculo de todas as dores”,[9] escreveu o Pe. Febvre. Testemunho idêntico ao de uma das enfermeiras: “Seu pobre corpo não é senão uma chaga”.
A partir de 11 de dezembro de 1878, devido ao agravamento do tumor no joelho, a enferma não pôde mais levantar-se do leito. Qualquer movimento constituía para ela uma tortura. Como não conseguia dormir, as longas noites de insônia eram um flagelo a mais.
“Minha paixão durará até à morte”
Tudo isso, entretanto, era quase nada em comparação com os sofrimentos da alma, como atesta um de seus biógrafos: “Nos derradeiros anos de sua vida, ela foi assaltada por terrores morais mil vezes mais terríveis que as dores físicas”.
A própria Santa confidenciou a uma enfermeira que procurava dar-lhe um pouco de alívio numa das frequentes crises de asma: “É bem doloroso não conseguir respirar; muito pior, porém, é ser atribulada por tormentos interiores! É terrível!”
Contudo, em vez de se deixar abater, pedia forças para sofrer mais: “Ó Jesus, dai-me o pão da paciência para suportar as aflições que meu coração sofre. Ó Jesus, Vós me quereis crucificada. Fiat!”
Que tormentos seriam esses?
“Ela se recriminava frequentemente por não ter retribuído a Deus na proporção das graças recebidas”, atesta o Pe. Febvre.
Seu testemunho é confirmado pela própria Santa que, na véspera de sua morte, confidenciou a uma de suas irmãs de vocação: “Minha querida irmã, tenho medo: recebi tantas graças e correspondi tão pouco!”
Recebeu a Extrema-Unção em fins de março de 1879. Duas semanas depois, no Domingo de Páscoa, revelou à enfermeira: “Minha paixão durará até à morte”. Bem poderia ter dito, mais precisamente: “Minha paixão irá se agravando até o último instante de vida”.
Com efeito, o caminhar para o desenlace final foi um lento e torturante cortejo rumo ao holocausto, que só viria a ocorrer no dia 16 de abril de 1879.
Por um singular desígnio da Providência, a morte de Santa Bernadette apresenta alguns traços de semelhança com o supremo Sacrifício do Calvário: às quinze horas, abriu os braços em cruz, disse que tinha sede e pediu um pouco de água; a enfermeira embebeu em água um algodão e o comprimiu em seus lábios, possibilitando-lhe sorver algumas gotas.
Em seguida, ela se recolheu profundamente, traçou um amplo e majestoso sinal da Cruz, inclinou a cabeça e expirou apoiada no braço de uma das religiosas que tiveram a graça de presenciar a morte de uma grande Santa.
Morreu de fato “moída como um grão de trigo”, cumprindo por inteiro sua dupla missão de confidente da Imaculada Conceição e vítima expiatória.
Fonte de inefável gáudio e paz
Em meio a tantos padecimentos a Santa sentia-se, entretanto, muito alegre. “Sou mais feliz em meu leito de dor, com meu Jesus, do que uma rainha em seu trono”, escreveu a uma amiga que lhe enviara de presente um crucifixo.
Há, com efeito, algo de misterioso nas almas chamadas por Deus a se oferecerem como vítimas expiatórias: Ele cobra delas sofrimentos às vezes inenarráveis, mas as recompensa, já nesta terra, com uma felicidade inefável. A união que se estabelece com o Amado torna-se para elas fonte de gáudio e paz, impossível de ser superada por qualquer gozo ou satisfação natural.
Aqueles que não são capazes de elevar os olhos acima das coisas do mundo jamais compreenderão esse sublime arcano, porque, conforme ensina o Apóstolo, “a linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem” (I Cor 1, 18). “Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo?”, questiona ele. “Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo? Já que o mundo, com a sua sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura de sua mensagem” (I Cor 1, 2021).
O mundo, o nosso tão conturbado mundo, cheio de incertezas, conflitos e dramas, não seria um pouco mais feliz se, como Santa Bernadette, amasse mais Maria Santíssima e soubesse entender o valor do sofrimento e a “loucura da Cruz”?
Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 220, abril 2020.
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