Oxalá fosses frio ou quente!
Quem seriam os verdadeiros destinatários das sete cartas do Apocalipse, formalmente endereçadas a um anjo? Vejamos uma análise da carta à Igreja de Laodiceia com uma advertência para os cristãos de hoje.
Redação (10/03/2021 16:57, Gaudium Press) A carta à Igreja de Laodiceia, comunidade fundada por Epafras, discípulo de São Paulo, faz parte do conjunto literário destinado às sete igrejas da Ásia Menor.
Pode-se supor que estas comunidades estavam passando por um período de crise sob o ponto de vista espiritual, por causa de alguns erros que começavam a se introduzir nelas, como o gnosticismo.
Certamente foi essa situação o motivo pelo qual João recebeu a inspiração para escrever essas cartas. Porém, quem fala nelas é o próprio Jesus Cristo, o qual conhece o estado de cada comunidade e por isso as adverte.
Os verdadeiros destinatários
“Ao anjo da Igreja em Laodiceia…”. Desde a Antiguidade surgiram muitas hipóteses a respeito de quais seriam os verdadeiros destinatários das sete cartas, formalmente endereçadas a um anjo.
Ora, os espíritos angélicos não precisam de conversão e todas essas cartas estão cheias de reprovações, conselhos, advertências e promessas. Então, a quem são elas dirigidas?
A palavra profética sempre tem um destinatário concreto que, na maioria dos casos, é a comunidade, o povo de Deus que recebe a mensagem (cf. Am 5, 4; Os 4, 1; Is 2, 1; Jr 2, 1-2). Por isso, no caso das sete Igrejas, “o anjo” receptor deve tomar- se no sentido de uma personificação global dos fiéis da Igreja particular.
Mas essas mensagens possuem também um alcance geral e perene. São palavras de juízo, de purificação e exortação que Cristo dirige à Igreja de todos os tempos. As alusões a situações particulares tomam um caráter universal, tornando-se válidas para os cristãos de todas as épocas que se encontrem em situações espirituais semelhantes às das mencionadas igrejas da Ásia Menor.
Deste modo, poderíamos dizer que temos no livro do Apocalipse uma verdadeira carta de amor de Cristo para os seus, reveladora de verdades que iluminam as mentes em todos os tempos.
Terríveis consequências da tibieza
“Conheço tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente!”. João, como médico das almas, sabe em que situação se encontra a comunidade à qual se dirige.
Constata a presença de uma enfermidade que tem como pressuposto a decadência de certo grau de fervor inicial para um estado de relaxamento, de languidez de espírito.
Neste contexto, frio é quem está nas vias do pecado, em oposição à entrega fervorosa daquele que caminha para a santidade com entusiasmo.
Os tratadistas de vida espiritual são unânimes em apontar o perigo do estado de tibieza para incentivar em seus leitores o hábito de fazer exame de consciência, procurando verificar se cumprem com o dever de cristãos segundo a vontade de Deus ou se, pelo contrário, estão em decadência e mediocridade de espírito.
“Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca”. Não agrada a Deus o homem indeciso e indolente em seus compromissos de cristão, mas sim o ardoroso e decidido. E a experiência pastoral demonstra ser mais comum a conversão sincera de grandes pecadores, do que dos homens de vida cristã medíocre.
Os frios, de que aqui fala o Senhor, podem ser os transgressores da Lei que pecam por ignorância ou fraqueza. Quando, porém, se dão conta de sua situação de pecadores, reconhecem que não têm méritos diante do Altíssimo e postam-se numa atitude de inteira humildade e submissão, esperando como um esmoler a misericórdia de Deus: “O publicano, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos para o céu, mas batia no peito dizendo: Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!” (Lc 18, 13).
Pelo contrário, o morno – ou seja, o cristão pouco comprometido – sente-se seguro em sua campânula de conforto e confia em se salvar sem muito esforço. Como não se reconhece pecador nem aspira à santidade, suas poucas orações são rotineiras, muitas vezes rezadas com fastio e, portanto, sem verdadeira piedade.
Assim, é mais perigoso o estado de tibieza espiritual que o de frieza.
Símbolos da cura espiritual
“Pois dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso”.
É fácil se iludir de que tudo está bem numa comunidade ou pessoa, mas não é possível enganar a Deus. Ele conhece o estado real de cada ser.
“Não sabes, porém, que és tu o infeliz: miserável, pobre, cego e nu!”. Para reconhecer e detestar as misérias que ofendem a Deus, e formar o propósito firme de recusá-las e repará-las, requer-se uma graça toda especial; mas também é necessário praticar a virtude sobrenatural da penitência.
É preciso ter a humildade do publicano e reconhecer a própria situação.
“Aconselho-te a comprares de Mim ouro purificado no fogo para que enriqueças, vestes brancas para que te cubras e não apareça a vergonha da tua nudez, e colírio para que unjas os olhos e possas enxergar”.
Uma vez que o pecado consistiu em perder o fervor por ter-se entregado ao comércio das coisas deste mundo, o Senhor adota a posição de um mercador que aconselha – não obriga, note-se – que Lhe comprem os verdadeiros bens e riquezas para voltar à plena comunhão com Ele.
Oferece o ouro purificado da virtude da caridade e do fervor, autêntica riqueza que – diferentemente do ouro de seus bancos e artesanatos – só se pode adquirir de Deus, por meio da oração e outros atos de piedade.
Vestes brancas, símbolo da pureza de consciência e embelezamento da alma através de atos virtuosos, em contraposição aos famosos e bem cotados tecidos de lã preta de Laodiceia.
Um colírio divino, para limpar a cegueira espiritual daqueles que confiam em si mesmos, esquecendo-se de Quem lhes deu a vida; terão assim clareza de espírito, para discernir com sabedoria o bem e o mal.
Comovedor convite à conversão
“Quanto a Mim, repreendo e corrijo todos os que amo. Recobra, pois, o fervor e converte-te!”.
A correção vinda de Deus é a manifestação de seu amor, como ensina o livro dos Provérbios: “Meu filho, não desprezes a disciplina do Senhor, nem te canses com a sua exortação; porque o Senhor repreende os que Ele ama, como um pai ao filho que preza” (Pr 3, 11-12).
Esta divina práxis é recordada de modo veemente pelo Apóstolo na Carta aos Hebreus (cf. Hb 12, 6). A correção é para o nosso bem, pois Deus “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (I Tim 2, 4), à eterna bem-aventurança.
“Eis que estou à porta e bato…”.
A expressão é comovedora, o próprio Jesus vai ao encontro, toma a iniciativa e chama. No entanto, não obriga a Lhe abrirem a porta, corresponde aos moradores deixarem-No entrar. É o livre-arbítrio: Deus oferece a salvação a todos, depende de cada um aceitá-la ou não.
As palavras seguintes são uma chamada para a conversão e mudança de vida: “Se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo”.
Parte de Jesus o desejo de entrar em comunhão com o dono da casa e, uma vez dentro, realizar um banquete, proporcionando-lhe uma sagrada convivência, com todas as alegrias próprias à sua divina presença. É notória aqui a alusão à Eucaristia, com toda a dimensão teológica que ela implica.
Vence quem ouve a palavra de Deus e a põe em prática
“Ao vencedor concederei sentar-se comigo no meu trono, assim como Eu também venci e estou sentado com meu Pai em seu trono”.
Os vencedores terão o privilégio de reinar com Cristo. Esse dom é outorgado só aos humildes. Jesus foi obediente ao Pai aqui na Terra e, por isso, foi exaltado junto a Ele no Céu (cf. Fl 2, 8-9). Portanto, o cristão que colabora com Cristo no plano da salvação se sentará com Ele em seu trono, num reinado sem fim.
Cristo deseja que estejamos atentos ao que o Espírito Santo queira dizer-nos, mas isso não basta, necessitamos ser cumpridores da palavra, e não meros ouvintes, enganando- nos a nós mesmos, adverte-nos o Apóstolo Tiago (cf. Tg 1, 22).
Advertência para os cristãos de hoje
A comunidade de Laodiceia perdera seu fervor inicial e encontrava- se prostrada num triste estado de negligência espiritual, consequência de seu apego às coisas deste mundo. Jesus não lhe recriminou pecado algum de idolatria, nem de heresia,
Em certo sentido, a situação do tíbio é pior que a de quem optou por seguir as vias do pecado, pois o pecador, sabendo que se encontra em risco de ser condenado ao inferno, tem maior probabilidade de, num momento de sobressalto, arrepender- se e pedir a graça da emenda definitiva.
O tíbio, porém, não se dá conta do estado em que se deixou afundar. Algo ele faz para evitar os pecados mortais, mas cai frequentemente nos veniais; mais ainda, ele julga não ser necessário preocupar-se com sua salvação, pois a imagina garantida…
A tibieza é um vício que, por assim dizer, causa náuseas ao Senhor. Não podemos esquecer-nos de que os cristãos de todos os tempos estão sujeitos a cair e merecer a terrível rejeição de Deus: “estou para vomitar- te de minha boca”.
Para evitar tamanha infelicidade, precisamos combater o orgulho e a autossuficiência, reconhecendo a necessidade que temos da graça para alcançar a bem-aventurança eterna. Daí nascerá uma salvífica confiança em Deus, do qual recebemos todos os bens e as forças necessárias para vencer os obstáculos em nossa vida espiritual. “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 111, março 2011.
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