A obediência a Deus conhece limites?
Se hoje nós sabemos que não convém aos médicos operarem os próprios filhos, por carecerem, normalmente, de estabilidade emocional para isso, como vamos esperar que um pai tenha forças para sacrificar aquele que é carne de sua carne? Abraão, porém, não titubeou, e agiu sem o menor receio de fazer a vontade de Deus.
Redação (28/02/2021 08:26, Gaudium Press) Na primeira leitura deste II Domingo da Quaresma (Gn 22, 1-2.9a.10-13.15-18) encontramos um fato dos primórdios do povo eleito, marcante na História da salvação.
Abraão era um arameu já ancião, como também sua esposa Sara, que não tivera filhos. Não obstante, Deus lhe prometera que ele daria origem a uma vasta descendência, mais numerosa que as estrelas do céu (cf. Gn 15, 5), uma autêntica nação (cf. Gn 12, 2). Ora, este não seria um povo comum, pois dele haveria de nascer o Redentor, Jesus Cristo. Mais adiante o Senhor anunciaria que Sara daria à luz um filho (cf. Gn 17, 16). Abraão acreditou, nascendo-lhe Isaac, apesar de sua idade avançada. Este filho ― encantador, inteligente e intuitivo, como se deduz do relato bíblico ― cresceu cercado pelo afeto e a admiração plena de um pai que, tempos antes, já não contava com vir a ter um herdeiro.
Em certo momento, Deus quis submeter Abraão a uma prova, porque como retribuição a todo dom ou privilégio que Ele concede deve haver sacrifício e abnegação. E quanto maior a dádiva, maior a doação requerida da criatura. Assim, para estar à altura de tão elevado chamado e ter o prêmio, a luz e a glória de ser antepassado do Messias, de um Homem que é também Deus, era preciso que Abraão fosse provado e demonstrasse total flexibilidade aos desígnios da Providência. Sem esse mérito não haveria base suficiente para uma vocação de tamanha grandeza.
Uma cena pungente marcada pela provação axiológica
Quando Isaac atinge, talvez, a idade de nove anos, Deus exige que Abraão o entregue em holocausto. O patriarca tinha verdadeiro apreço pelo menino, porque era seu sucessor, o filho da bênção, vindo das mãos do Senhor. Contudo, Ele agora o pedia de volta.
Se hoje nós sabemos que não convém aos médicos operarem os próprios filhos, por carecerem, normalmente, de estabilidade emocional para isso, como vamos esperar que um pai tenha forças para sacrificar aquele que é carne de sua carne? Abraão, porém, não titubeou, e agiu sem o menor receio de fazer a vontade de Deus. O Gênesis não conta quais foram as aflições interiores de Abraão, suas perplexidades e problemas axiológicos diante de tal situação, mas é evidente que sentiu uma dor mais profunda do que se ele mesmo se oferecesse como vítima, e seu filho Isaac o apunhalasse e o lançasse às chamas de uma fogueira para ser consumido.
Como confiar no juramento feito por Deus, enquanto renunciava ao filho único? Estaria o Senhor descontente com ele — pois, afinal, todo homem concebido no pecado original tem suas imperfeições — e por isso lhe arrebatava o herdeiro? Haveria cometido alguma falta oculta? Que tormentos inenarráveis não o terão assaltado ao galgar o monte! É provável que não os tenha revelado a ninguém, guardando em seu coração esse terrível drama passado entre ele e Deus.
Abraão convidou Isaac para subirem juntos a colina e imolarem uma vítima, levando consigo todos os elementos necessários: a lenha, o fogo e dois servos para os auxiliarem (cf. Gn 22, 3). Ora, o pequeno, já na idade dos porquês e possuidor da inteligência toda feita de lógica tão comum aos hebreus, não entendeu o que ia acontecer e indagou: “Temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto?” (Gn 22, 7). O pai, que costumava resolver amorosamente as dúvidas de Isaac em todas as circunstâncias, procurando aproveitar qualquer ocasião para lhe transmitir seus conhecimentos, foi obrigado a responder: “Deus providenciará” (Gn 22, 8). Enquanto avançavam, ia ele entretendo a criança, mas o coração palpitava de angústia. É presumível que Abraão tivesse preferido morrer no caminho, antes ainda de tocar o sopé da montanha, e, no entanto, sentia que Deus lhe dava energia para prosseguir. Chegando ao local indicado por Deus, preparou a lenha, e quiçá Isaac tenha perguntado pela vítima uma última vez. Por fim, Abraão o amarrou e o deitou sobre o altar. Isaac, que herdara o temperamento do pai e dele recebera a fé, logo percebeu tudo, e não disse uma palavra, entregando-se com total obediência e flexibilidade.
Cena pungente! Abraão está disposto a salpicar suas mãos com o sangue daquele único descendente, que era uma dádiva do Céu e a promessa de seu futuro. Deus não permitiu, todavia, que o menino fosse morto, porque não necessitava desta oferta. Ele queria, isto sim, o sacrifício da inteira conformidade de Abraão com a sua vontade, da generosidade plena, por mais desconcertantes que fossem as aparências, e, ao mesmo tempo, a submissão de Isaac para deixar-se imolar sem qualquer queixa.
Justificado em função de sua observância
Quando Abraão ergue o punhal com toda a fé, prestes a cravá-lo em Isaac, uma voz angélica se faz ouvir: “Abraão, Abraão! […] Não estendas a mão contra teu filho e não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus, pois não Me recusaste teu filho único” (Gn 22, 11- 12). Era a ordem que ele ansiava para evitar o momento trágico da execução. Não obstante, assim como o homem é condenado por suas intenções — se ele arquiteta um crime, por exemplo, e nem consegue executá-lo por razões circunstanciais, peca em seu interior —, Abraão “foi justificado em virtude de sua observância” (Rm 4, 2). Com efeito, não só ele aceitou o que Deus havia determinado, como tomou todas as providências para que o sacrifício de Isaac se consumasse. Como recompensa, recebeu de volta o filho do qual já se desapegara, em meio a grande alegria, rendendo graças a Deus.
Deus, que salvou Isaac, imolou o próprio Filho
E “Abraão, erguendo os olhos, viu um carneiro preso num espinheiro pelos chifres; foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto no lugar do seu filho” (Gn 22, 13). Neste episódio encontramos um indício do futuro resgate dos primogênitos prescrito pela Lei Mosaica após a partida do Egito (cf. Ex 13, 13; 34, 19-20), quando o sangue do cordeiro sem defeito, nas ombreiras e na verga das portas, preservou do Anjo exterminador os primogênitos do povo eleito (cf. Ex 12, 5-13). Aquele animal era, na realidade, um símbolo do Cordeiro verdadeiro, o Cordeiro de Deus, pois o Senhor, que perdoa a vida do filho de Abraão, não livra a do seu próprio Filho, nem O exime do mais ignominioso dos suplícios, isto é, a morte de Cruz, a fim de manifestar o seu amor por nós.
Sim, o que aconteceu a Abraão não se deu no Calvário, onde Deus — como diz o Apóstolo, na segunda leitura (Rm 8, 31b-34) — “não poupou seu próprio Filho, mas O entregou por todos nós” (Rm 8, 32). No Gólgota, vemos o Filho único de Deus coroado de espinhos, flagelado, desprezado e ultrajado pelas imundícies dos algozes, que cuspiram sobre Ele.
Cristo era uma chaga da cabeça aos pés, a ponto de seus ossos poderem ser contados (cf. Sl 21, 18). Chegada a hora da Crucifixão, após a Via-Sacra, em que caiu três vezes sob o peso da Cruz, o Unigênito de Deus é morto! Foi aniquilado por nossa causa, pois desejava que fôssemos salvos: “não Me comprazo com a morte do pecador, mas antes com a sua conversão, de modo que tenha a vida” (Ez 33, 11). Que desígnios existirão por detrás disso? Por que Deus submete Abraão a esta prova e permite que seu Filho seja imolado? Consideremos um princípio infalível: sendo Deus o Bem em essência, não pode pecar,[1] e sempre que age, tem em vista um benefício. Se Ele submeteu à prova o patriarca e fez seu Filho passar pelos horrores da Paixão, foi porque quis o bem. Não haveria o Pai de procurar o máximo para Aquele de quem afirma no Evangelho: “Este é o meu Filho amado”? Mas como compreender que a Cruz seja algo excelente? Como aceitar que o martírio de um Filho signifique para Ele o que há de melhor? A nossa razão humana, se não for auxiliada pela graça de Deus e pela fé, não consegue captar tal beleza.
Eis o motivo pelo qual a Igreja medita, em plena Quaresma, na Transfiguração do Senhor (Evangelho do dia – Mc 9, 2-10): ela quer nos colocar numa nova impostação, pois assim como o Redentor Se transfigurou para dar força aos Apóstolos e levá-los a admitir que era Deus e continuaria a sê-lo, mesmo morto e crucificado, nós também devemos aprender que a cruz, por mais negra que se apresente, contém no fundo um sorriso divino e uma como que ressurreição, um fulgor e uma glória.
Extraído, com algumas adaptações, de: CLÁ DIAS. João Scognamiglio. O Inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano: L.E.V./São Paulo: Lumen Sapientiae, 2014, v.III, p. 185-190.
[1] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.3, ad 2
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