São João da Cruz: melhor sofrer por Deus do que fazer milagres
A Igreja celebra hoje, dia 14 de dezembro, a memória de São João da Cruz: homem de oração que, levando uma vida de recolhimento e holocausto, mudou o rumo dos acontecimentos.
Redação (14/12/2023 09:05, Gaudium Press) Quando a pseudorreforma luterana se levantou contra as Leis de Deus e da Igreja, ergueu-se nas fileiras da Esposa Mística de Cristo um brado de fidelidade partido de seus melhores filhos. Entre estes, coube um papel de grande relevo a dois contemplativos espanhóis, cujos nomes ainda hoje são evocados pelos fiéis com especial veneração: Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz.
Amparado e escolhido por Nossa Senhora
João de Yepes nasceu em 1542, no pequeno vilarejo de Fontiveros, incrustado nas amplas planícies de Castela. Seu pai, Gonzalo de Yepes, era um membro da nobreza toledana que renunciou às prerrogativas de sua origem para contrair matrimônio com Catarina Álvarez, uma humilde tecelã. Desta união nasceram três filhos, sendo João o último deles.
A cruz — que um dia esse menino escolherá com encanto para figurar em seu próprio nome — haveria de estar presente junto a ele desde seus primeiros anos. Os sucessivos fracassos nos negócios paternos levou o lar a uma situação de extrema pobreza, sanada apenas em parte pelos trabalhos de tecelagem do casal.
Entretanto, o maior infortúnio verificou-se quando o Santo contava dois anos de idade, com o falecimento do pai, que foi acometido por uma dolorosa moléstia.
A viúva, sem outro recurso que a proteção da Providência, lançou-se numa luta sobre-humana pelo sustento da família. Indagada pelos inocentes olhares dos filhos acerca do futuro, partiu para outros povoados e, finalmente, para Medina del Campo, na tentativa de ser melhor remunerada por seus serviços.
Destes anos marcados por provações restou uma preciosa recordação: o grande desvelo de Maria Santíssima por aqueles desamparados.
Certo dia, brincando com os amiguinhos em volta de um lago lamacento, João perdeu o equilíbrio e caiu, afundando na água lodosa. Ele logo voltou à tona, mas em seguida submergiu novamente e, enquanto se debatia sem conseguir se soerguer, notou que uma Dama de celestial beleza lhe sorria e oferecia o braço para resgatá-lo. Vendo-se, porém, tão sujo, não quis macular a alvura daquela Senhora e se recusou a apoiar-se n’Ela. Afinal, um lavrador da região estendeu um galho, ao qual ele se agarrou e pôde ser puxado para a margem.
Esse episódio inaugurou entre a Virgem e o menino um vínculo entranhado, que se prolongou por toda a vida e o levaria, anos mais tarde, a ingressar numa Ordem mariana, como penhor de gratidão.
Despontar da vocação
Numa instituição de caridade de Medina del Campo João aprendeu os rudimentos da doutrina católica, a acolitar a Missa e a cuidar da sacristia, entre outros ofícios.
Os benfeitores, dando-se conta da pureza ilibada daquela alma e, ao mesmo tempo, da sua aptidão para os estudos, favoreceram a entrada do jovem no colégio dos jesuítas. Ali permaneceu por vários anos aplicado em árduas matérias, enquanto meditava com seriedade acerca de sua vocação. Quando esta se tornou clara, não hesitou: bateu às portas do Convento do Carmo pedindo o hábito de Nossa Senhora.
Um encontro providencial
No Carmelo de Medina del Campo recebeu a tonsura, abraçando a regra da Ordem com o nome de Frei João de São Matias. Costumava passar longas horas diante do sacrário e ajudava a Missa com prazer e alegria, até ser encaminhado pelos superiores para o noviciado de Salamanca.
Na velha catedral da cidade, Frei João de São Matias recebeu a unção sacerdotal aos 25 anos, com disposições verdadeiramente angélicas. Contudo, seus anseios de contemplação clamavam por um convívio com Deus muito mais próximo. Ao regressar a Medina del Campo cogitava em trocar o Carmelo pela Cartuxa, onde, supunha ele, a oblação de si mesmo seria maior.
Nessas circunstâncias encontrou-se pela primeira com Santa Teresa de Ávila. A grande reformadora viera a Medina em 1567 fundar um convento de descalças e percebeu ser a ocasião de estender a reforma ao ramo masculino, uma vez que já havia sido autorizada pelo geral da Ordem a dar esse passo.
Numa entrevista decisiva com Frei João, na qual também esteve presente Frei Antônio de Heredia, Madre Teresa o convidou a tomar parte na santa aventura, pois seu discernimento indicava ser ele “uma das almas mais puras e santas que Deus suscitou na sua Igreja”.
Curiosamente, Frei Antônio era um homem de estatura imponente e contrastava com Frei João, de compleição franzina. O encontro deixou a madre entusiasmada, como manifestou às suas freiras: “Ajudem-me, filhas, a dar graças a Deus Nosso Senhor, pois já temos frade e meio para começar a reforma dos religiosos”.
O ideal do Carmelo reformado
A partir de então Teresa de Jesus contou com a inestimável colaboração de Frei João e “sob a ação conjunta dessas duas almas de fogo, o movimento da reforma difunde-se como uma mancha de óleo”.
Nos conventos onde atuam são banidas as concessões ao espírito do mundo, a mitigação no cumprimento da regra e a clausura passa a ser vivida em todo o seu rigor. Vive-se com a intenção de reparar as infidelidades cometidas contra a Igreja na época, e este heroico propósito aglutina pujantes vocações.
Frei João da Cruz — como passou a se chamar — foi protagonista das empolgantes páginas dos anos de fundação registradas nos anais do Carmelo Descalço, movendo-se entre mil fioretti miraculosos.
Certa vez, conversando com Santa Teresa, foram ambos agraciados com o duplo dom do êxtase e da levitação, e uma das irmãs só conseguiu encontrá-los depois de passar várias vezes pelo locutório, ao olhar para cima.
Contudo, Frei João não deixou de sofrer também a fúria dos infernos. Durante nove meses permaneceu encarcerado pelos calçados, e no final da vida foi destituído de todos os cargos e abandonado num convento onde o superior o maltratou com extrema dureza. Alguém menos experimentado no amor a Deus teria sucumbido ao peso de tais sofrimentos físicos e morais, mas ele tudo suportou com cordura, chegando a compor na prisão alguns dos poemas que mais tarde deram origem à sua obra literária.
Eminente diretor espiritual
Quem percorre as passagens da vida do Doutor Místico percebe que ele exerceu as mais variadas funções: foi mestre de noviços, prior, reitor universitário e membro do Capítulo com cargos diretivos. Mostrou-se sempre dócil instrumento nas mãos dos superiores, servindo em todos os fronts e lugares.
Mas a sua sabedoria parece ter se revelado sobretudo na direção das almas. Por obra da graça, São João da Cruz foi conduzido aos cumes da via unitiva, sendo chamado a instruir seus filhos nos segredos da amizade com Deus.
Aos penitentes, tanto religiosos como seculares, dedicava todo o tempo necessário; sua presença era discreta, de grande modéstia e mansidão, porém as penetrantes análises chegavam ao fundo das consciências, como se estas fossem um espelho límpido. Ouvindo as acusações ele logo divisava o foco dos males das almas e tinha para cada uma a palavra justa, inspirada pelo Espírito Santo. Todos os seus penitentes saíam do confessionário com ânimo redobrado para enfrentar a luta contra o pecado e progredir a passos largos nas vias da salvação, pois para São João da Cruz, no caminho da perfeição, “o não avançar é recuar; e o não ganhar é perder”.
Doutor Místico
O principal legado do reformador à família carmelitana e à Igreja é, sem dúvida, a sua vida mística. Deus, que não poupou a este filho os mais atrozes sofrimentos, deu-lhe já nesta Terra grande recompensa: conforme ia purificando sua alma, convidava o servo fiel a gozar de sua intimidade, como costuma fazer aos melhores amigos.
Fruto da correspondência exímia de São João da Cruz aos favores recebidos é sua trajetória espiritual bastante rica e fecunda, que se revela uma escola segura onde são instruídas as almas, dentro e fora dos conventos. A ascensão ao cimo do Monte Carmelo, imagem do estado de perfeição atingido por meio de purificações e pela noite escura, tornou-se um dos símbolos de santidade mais conhecidos da piedade católica.
Este tesouro está consignado na sua obra escrita, sobretudo nos principais tratados e poemas: Subida ao Monte Carmelo, seguido pela Noite Escura, Cântico Espiritual e Chama Viva de Amor. Os dois últimos, difíceis de serem compreendidos por principiantes, são versos comparáveis a um requintado licor, o qual exige do apreciador paladar apurado.
Matinas diante de Deus!
No ano de sua morte, São João da Cruz confidenciou a seu irmão Francisco de Yepes que havia pedido a Nosso Senhor a graça de sofrer mais por Ele e de ser desprezado. Seu desejo foi atendido, pois a partir de então os poucos meses de vida que ainda lhe restavam foram marcados por terríveis provações.
Um conselho lúcido dado pelo Santo no Capítulo da Ordem, em junho de 1591, provocou a indignação de Frei Nicolau Dória, o superior geral. Este o destituiu de todos os cargos e o mandou como simples frade para um convento distante, como teria feito a um filho perverso.
Aos 49 anos, Frei João já não esperava mais nada deste mundo; queria apenas ser consumido qual chama de amor viva. Uma virulenta inflamação na perna direita assumiu proporções preocupantes em setembro desse ano, e em pouco mais de três meses o tomou por inteiro.
Em Úbeda, na Andaluzia, ele edificou a comunidade com a aceitação de todas as dores e recebeu a revelação do momento de sua morte: a meia-noite de 14 de dezembro. Poucos minutos antes do instante indicado, exclamou ao frade enfermeiro: “A essa hora, estarei diante de Deus Nosso Senhor a rezar as Matinas”! E na virada do dia, expirou em inteira paz.
O insigne Doutor da Igreja deixou aberto atrás de si um caminho privilegiado para se chegar ao Céu, seguido por legiões de almas amantes do holocausto como meio de expiação pelas faltas da humanidade pecadora.
Com efeito, esta é a máxima do insigne São João da Cruz, expoente da ascese e da mística católicas: é realmente melhor sofrer por Deus do que fazer milagres.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 156 dezembro 2014. Por Ir. Carmela Werner Ferreira, EP.
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