São João Damasceno: Ortodoxia de doutrina e santidade
No dia 4 de dezembro, celebra-se a memória de São João Damasceno, sacerdote, doutor da Igreja, teólogo, espiritualista, orador, escritor e, sobretudo, santo. Em suas obras, respira-se o puro ar católico, o frescor da doutrina patrística oriental.
Redação (04/12/2023 07:28, Gaudium Press) É na Síria, cidade lendária, que veio ao mundo o último dos Padres da Igreja oriental: São João Damasceno.
De família árabe, mas cristã de religião e socialmente bem situada, nasceu João por volta do ano 675, quando Damasco já se encontrava sob domínio muçulmano. Aos trinta anos abandonou as comodidades da casa paterna e ingressou no Mosteiro de São Sabas, situado no deserto da Judeia, próximo de Jerusalém. Pouco depois, foi ordenado presbítero e escolhido pelo Patriarca João de Jerusalém para pregar na Anástasis (lugar do sepulcro de Jesus) e em outros templos da Cidade Santa. De tal maneira brilharam sua eloquência e a segurança doutrinária que foi cognominado Chrysorrohas (rio de ouro), nome dado às águas que, procedentes do Antilíbano, tornavam um fecundo oásis os arredores de Damasco.
São João Damasceno logrou fazer uma excelente síntese da doutrina patrística usando uma oratória de grande beleza. A influência do seu pensamento se estendeu do Oriente ao Ocidente, onde suas obras foram objeto de estudo por São Tomás e os escolásticos. Lutou especialmente contra os erros dos iconoclastas, mas nas suas homilias e escritos encontramos a refutação de muitas das heresias que assolavam as comunidades cristãs da época.
Após alcançar uma avançada idade – calcula-se que tenha morrido aos 74 anos – entregou sua alma a Deus no ano 749, provavelmente em 4 de dezembro.
Foi declarado doutor da Igreja pelo Papa Leão XIII, em 19 de agosto de 1890.
Saber unir piedade, beleza literária e a mais pura ortodoxia doutrinária foi um dos grandes méritos de São João Damasceno. Ele conseguiu, com um brilho verdadeiramente excepcional, aliar o Verum, o Bonum e o Pulchrum (Verdade, Bondade e Beleza) numa linguagem tão acessível que deleita e ao mesmo tempo ensina as mais elevadas verdades sobre Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe Santíssima.
Sólida doutrina cristológica
São João Damasceno exalta em suas homilias os mistérios de Nosso Senhor e refuta os erros cristológicos correntes naqueles tempos. Afirmando a plena união do Verbo Encarnado com Deus Pai e Deus Espírito Santo, desqualifica o monofisismo, que pretende ver a natureza humana de Cristo absorvida pela divindade; o nestorianismo, que considera Nosso Senhor como uma pessoa humana na qual o Verbo haveria estabelecido sua morada como num templo ou mansão, sem assumir de fato a natureza do homem; ou o monotelismo que nega a existência da vontade humana n’Ele.
Com igual fé e profundidade teológica, o santo de Damasco não teme abordar um tema pouco tratado por teólogos mais recentes: o que aconteceu com a alma de Cristo após sua morte? A divindade separou-se da alma humana e do corpo do Senhor?
Explica ele: “Embora a alma santa e divina tenha se separado do corpo incontaminado e vivificante, a divindade do Verbo não se separou de nenhum desses dois elementos, ou seja, nem do corpo nem da alma, por efeito da indivisa união hipostática das duas naturezas, que se realizou na concepção efetuada no seio da santa Virgem Maria, Mãe de Deus. Assim resulta que, inclusive ao produzir-se a morte, continua havendo em Cristo uma só pessoa, que é o Verbo divino, e depois da morte do Senhor, nesta pessoa seguem subsistindo a alma e o corpo”.
Homilias sobre Nossa Senhora
Não são menos belas e esplendorosas as homilias do Damasceno sobre Nossa Senhora. Elas nos mostram como a devoção à Santíssima Virgem vem desde os primeiros tempos do Cristianismo, como o amor a Ela era muito patente já na época de Santo Inácio de Antioquia, que foi discípulo do Apóstolo João, de São Justino (†165) e de Santo Irineu (†202).
Nessas homilias se encontram em germe os elementos doutrinários que, séculos depois, facilitaram a proclamação de diversos dogmas marianos, como o da Imaculada Conceição e o da Assunção da Virgem Maria em corpo e alma aos Céus.
Cabe ressaltar nelas, além da profundidade teológica, o entusiasmo e o amor de seu autor à Santíssima Virgem. Eis como ele entoa louvores à Maria:
“Ó Virgem, claramente prefigurada na sarça, nas tábuas escritas por Deus, na arca da lei, no vaso de ouro, no candelabro, na mesa e na vara de Aarão que floresceu. De Vós, com efeito, procede a chama da divindade, o Verbo e manifestação do Pai, o maná suavíssimo e celestial, o nome inefável que está acima de todo nome, a luz eterna e inacessível, o celeste pão de vida. De Vós brotou corporalmente aquele fruto que não é resultado do trabalho de nenhum cultivador”.
Essa capacidade de unir doutrina, poesia e fervor, é exemplo típico do que Urs Von Balthasar chama “teologia de joelhos”, em oposição à “teologia de escritório”, tão habitual nos dias atuais.
Prenunciador do dogma da Assunção
São João Damasceno comparte uma opinião generalizada entre os Santos Padres, de que há uma estreita relação entre a virgindade perpétua de Maria e a incorrupção de seu corpo virginal depois da morte. Ao ponto de prenunciar o dogma da Assunção de Maria ao Céu, em corpo e alma.
“Convinha que aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o Criador encarnado, habitasse entre os divinos tabernáculos. […] Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus”.
Essa passagem do Damasceno foi reproduzida literalmente por Pio XII ao definir o Dogma da Assunção, na Constituição Apostólica Munificentissimus Deus. Nela, o Papa elogia também a “veemente eloquência” desse santo “que entre todos se distingue como pregoeiro dessa tradição”.
“São Tomás do Oriente”
São João Damasceno dizia de si mesmo que nada possuía de original, apenas compilava trechos de antigos escritores. No entanto, a luz de seu pensamento atravessou os séculos e ilumina até hoje os horizontes dos estudos teológicos.
O próprio Bento XVI pôs em realce a originalidade de sua argumentação em defesa do culto às imagens e às relíquias dos santos e o qualifica de “personalidade de primeira grandeza na história da teologia bizantina, um grande doutor na história da Igreja universal”.
São João Damasceno foi adequadamente cognominado “o São Tomás do Oriente”. Feliz equiparação porque esses dois luminares da Igreja se assemelham a um título muito superior: ambos refulgem pela santidade de vida tanto ou mais que pela ciência.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n.107 novembro 2010.
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