A Igreja pobre na prática: só Deus basta!
O que os santos têm para nos ensinar sobre a administração dos bens eclesiásticos?
Redação (15/10/2020 11:40, Gaudium Press) O tema “pobreza” sempre foi largamente abordado nos meios eclesiásticos, desde os primórdios do cristianismo. Entretanto, tem-se falado cada vez mais sobre ela, especialmente de alguns tempos para cá…
O problema é que falar é fácil. Mas praticar é outra coisa, e bem diversa. Afinal, o que é ser pobre no âmbito dos fatos?
É verdade que são muito belos os exemplos dos monges e religiosos – como o grande São Francisco de Assis, cuja festa se celebrou há pouco – que abandonaram tudo, inclusive o próprio direito de possuir, chancelando esse compromisso mediante um voto. Contudo, nem todos são chamados a proceder como eles. Na verdade, os religiosos com voto são uma minoria dentro da humanidade.
A prática da pobreza comporta graus, alguns dos quais devem ser vividos por todo católico. Todos os fiéis de Cristo “devem dirigir retamente seus afetos para que, por causa do uso das coisas mundanas, por causa do apego às riquezas contra o espírito de pobreza evangélica, não sejam impedidos de tender à perfeição da caridade”.[1]
Portanto, para quem não emitiu votos, a questão se apresenta com outro colorido: como ser pobre, ainda que possuindo?
Antes de mais nada, gostaríamos de esclarecer que existem várias modalidades de pobreza, da qual a mais elevada é a espiritual: o desprendimento dos bens desta terra, a humildade, o abandono nas mãos de Deus. E há também vários níveis de caridade para com o próximo, cujo ápice é aquela pobreza que se tem para com sua alma: desejar a salvação eterna. Neste artigo não trataremos sobre isso.
Nosso objetivo, aqui, é entrar no aspecto prático da pobreza, ou seja, aquele que diz respeito diretamente ao uso do dinheiro.
Assim, falaremos da prática da pobreza para um eclesiástico que não tem votos. Como os padres, bispos, cardeais devem administrar os bens da Igreja? Porventura é lícito um alto prelado possuir uma conta milionária, por exemplo? E a suntuosidade dos templos, é algo bom ou ruim? Não seria melhor tomar o dinheiro reservado a isto e unicamente dá-lo aos pobres?
Vejamos, antes de mais nada, o que nos diz o código das leis eclesiásticas, o Direito Canônico, a este respeito.
Clérigos e Pobreza no Direito Canônico
Este livro, no trecho que aborda as obrigações e os direitos dos clérigos, recomenda que eles “levem vida simples e se abstenham de tudo o que denote vaidade. Os bens que lhes advêm por ocasião do exercício de ofício eclesiástico e que são supérfluos, uma vez assegurados com eles o próprio sustento e o cumprimento de todos os deveres de estado, queiram empregá-los para o bem da Igreja e para as obras de caridade”. (CIC, 282)
Neste parágrafo, está expresso de maneira sucinta todo o modo de proceder de um sacerdote em relação ao dinheiro que lhe é destinado. Apresentamo-lo, agora, mais detalhadamente, em tópicos:
- Os clérigos não assumem a pobreza como uma promessa pública. Portanto, têm direito a uma remuneração, como afirmou Nosso Senhor (cf. Lc 10, 17), e como prevê o cânone 281. Deste ordenado podem fazer o que julgarem conveniente. Por isso, o cânone 282 não obriga juridicamente no que diz respeito ao emprego dos bens para a caridade. São apenas recomendações.
- Não obstante, o serviço eclesial dos clérigos é um ministério, e não uma profissão. Assim, a mentalidade argentária que busca apenas o lucro e não o bem das almas é não só equivocada, mas pecaminosa. Além de completamente avessa aos ensinamentos do Evangelho. Assim, o direito do sacerdote a uma retribuição, previsto no cânone 281, não deve ser confundido “com uma espécie de pretensão de submeter o serviço do evangelho e da Igreja às vantagens e interesses que do mesmo podem derivar-se”.[2] O Código inclusive evita o termo “salário”, entre outras coisas, para evitar essa conotação. Não se deve trocar o fim pelos meios…
- Além disso, abraçar a pobreza voluntária é sumamente adequado ao ministério sacerdotal, pois assim os clérigos “se identificarão mais claramente com Cristo”.[3] Mais ainda, o desprendimento dos bens terrenos é vivamente necessário, com vistas a proporcionar a devida disponibilidade para o ministério sagrado. Segundo João Paulo II, isto deverá se traduzir em “desinteresse e desprendimento do dinheiro, na renúncia a toda avidez de posse de bens terrenos […], no rechaço de tudo o que é ou, inclusive, do que só parece luxuoso, e em uma tendência crescente à gratuidade da entrega ao serviço de Deus e dos fiéis”[4]. Exemplifico com o caso do Secretário de Estado.
Trata-se do Servo de Deus, Cardeal Rafael Merry del Val, que ocupou o cargo no pontificado de São Pio X. Durante os 40 anos em que del Val morou em Roma, utilizou o mesmo colchão, com vistas a praticar a virtude da pobreza. Ademais, em 1914, São Pio X deu-lhe como moradia a Palazzina de Santa Marta (não é a mesma casa que o leitor está pensando) uma habitação digna, mas que precisava de reformas. O Secretário de Estado pediu auxílio financeiro a seu progenitor, para não ter de utilizar os bens eclesiásticos. Isto sim é exemplo de Igreja Pobre…
- Caso o clérigo já tenha sido atendido em suas necessidades pessoais, convém que empregue seu supérfluo para o bem da Igreja e para as obras de caridade.
A escolha de onde o supérfluo será empregado, porém, cabe exclusivamente ao seu possuidor. Ou seja, ninguém pode obrigar o diácono, sacerdote, bispo, etc., a fazer doações para uma determinada entidade ou finalidade.
Administração do patrimônio da Igreja
Como deve ser utilizado?
Mantendo a fidelidade ao modo de proceder dos primeiros Apóstolos, é lícito à Igreja possuir bens temporais apenas com vistas a determinados fins. São eles: para a organização do culto divino, para procurar a honesta sustentação do clero e para realizar obras de apostolado ou de caridade, sobretudo para com os pobres.[5]
Esta integridade, honestidade, retidão de consciência e zelo são exigidos, sobretudo, do Papa. Ele, em virtude do primado de regime, é o supremo administrador e dispensador de todos os bens eclesiásticos (Cf. cân. 1273).
Por esta razão, cabe a ele ser o máximo padrão em matéria de desprendimento dos bens terrenos. Se o Santo Padre dá o exemplo, todos os demais clérigos se sentirão estimulados a viver esta pobreza evangélica. Aí sim, poderemos dizer que há uma Igreja Pobre, na prática.
O Papa Francisco, aliás, mostrou conhecer profundamente essa teoria, quando afirmou:
“São Pedro não tinha uma conta no banco. […] Uma Igreja [rica] sem a gratuidade do louvor, envelhece, se torna uma ONG, não tem vida”.[6]
E Francisco tinha razão. O que seria da Igreja se suas mais altas cúpulas deixassem de lado o zelo pelas almas e decidissem transformá-la em uma ONG? E, como se isso não bastasse, se apropriassem de seus bens para acumular fortunas em benefício próprio? O que seria de São Pedro, se ele decidisse abrir uma conta nababesca em um banco? No mínimo, perderia o título de santo. Oxalá não perdesse outros…
Sobre esse tipo de eclesiásticos, não resistimos em reproduzir o que diz São Bernardo:
“Amam os regalos e presentes e, claro está, não podem amar igualmente a Jesus Cristo, tendo atadas as mãos com a cobiça de riquezas. […] Se de um lugar elevado pudéssemos contemplar como anda e se porta algum deles, não é verdade que nos pareceria ver mais bem uma esposa enfeitada do que um custódio e servidor da mesma [da Igreja]? E de onde crês que sai essa exuberância de todas as coisas, […] esse luxo e prodigalidade da mesa e esses aparadores repletos de vasilhas de ouro e de prata, senão dos bens da Esposa? Vê aí porque ela está desfigurada, em desordem, pálida e desfeita. Certamente, isto não é adorar a Esposa, mas despojá-la; não é guardá-la, senão destruí-la; não é defendê-la, senão prostitui-la. […] Verás que há não poucos dos que têm a seu cargo o governo da Igreja que se mostram mais vigilantes e solícitos em esvaziar as bolsas do que em extirpar os vícios dos que lhes estão submetidos. […] Não nos referimos senão a seus mais leves defeitos; pois os cometem mais graves, pelos quais serão castigados severamente”.[7]
Sem dúvida, São Bernardo foi um dos mais ferrenhos defensores da “Igreja Pobre”.
Tudo para Deus, nada para Francisco
No início deste artigo, havíamos levantado também o problema da suntuosidade dos templos. Como coadunar isto com a Igreja Pobre?
Sobre este tema, é preciso recordar, antes de mais nada, a altíssima dignidade dos templos. O grande São Bernardo de Claraval – o mesmo que há pouco citamos – atesta o seguinte: “Quão grandioso será este lugar, sendo certo e evidente que o Senhor mora nele, porquanto nele estão congregados em seu nome não dois ou três, senão muitíssimos servos seus? […] Grandioso lugar, sem dúvida, e digno de toda reverência, no qual habitam varões fiéis, e que frequentam os santos anjos, e que o Senhor mesmo se digna enobrecer com sua presença”.[8] Por isto ele defendia que as igrejas – estes “castelos do Rei Eterno” – deveriam ser ornadas com toda beleza.
Assim também, São Francisco de Assis, o santo da pobreza, exigia que tudo o que estivesse voltado ao culto divino fosse o mais esplendoroso possível. No âmbito pessoal, pobreza acérrima; no que toca ao serviço do altar, o que há de melhor. Daí o lema atribuído a ele, e que, aliás, bem resume nossa “Igreja Pobre”, na prática: “Tudo para Deus, nada para Francisco”. Non nobis Domine! Ou ainda, na expressão de Santa Teresa de Ávila, cuja festa hoje comemoramos: Só Deus basta!
Por Oto Pereira
BIBLIOGRAFIA
BERNARDO DE CLARAVAL. Obras Completas, Madrid: BAC, 1953, v. 1 e 2.
FRANCISCO. Homilias da Manhã em Santa Marta. Vaticano: LEV, 2013.
JOÃO PAULO II. Insegnamenti. Vaticano: LEV, 1995, v. 15,1; 16,2.
LEÃO XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, 15 maio 1891. (ASS 23, 1891, 641-670)
PAULO VI. Constituição Dogmática Lumen Gentium, 30, jan. 1965 (AAS 57, 1965, 5-75)
______. Decreto Presbyterorum Ordinis, 7 dez. 1965 (AAS 58, 1966, 991-1024)
[1] Lumen Gentium, 42.
[2] JOÃO PAULO II. Exortação pós-sinodal Pastores Dabo Vobis, 25, mar. 1992.
[3] Presbyterorum Ordinis, n. 17.
[4] JOÃO PAULO II. O Presbítero e os Bens Terrenos, 21 jul. 1993.
[5] Cf. Presbyterorum Ordinis, n. 17.
[6] FRANCISCO. Homilia em Santa Marta, 11 abr. 2013.
[7] SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Sobre os Maus Pastores da Igreja. In. SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Obras Completas, Madrid: BAC, 1953, v. 2, p. 517
[8] SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Sermão na festa da dedicação da Basílica de Claraval. In. SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Obras Completas, Madrid: BAC, 1953, v. 1, p. 878.
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