O convívio entre os santos
Dos incontáveis deuses da Antiguidade, qual deles dava a seus adoradores a honrosa qualificação de “amigo”? Qual estabeleceu o mútuo amor como padrão de relacionamento entre eles?
Redação (24/09/2020 18:04, Gaudium Press) “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35). Este luminoso ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo tem sido confirmado de várias maneiras ao longo dos dois mil anos da História da Igreja, especialmente através do comportamento dos santos, modelos de vida propostos pela sabedoria da Esposa Mística de Cristo à imitação de todos os fiéis.
Um Deus que Se faz amigo e irmão
Logo de início, chama a atenção, no tocante ao relacionamento humano, o radical contraste entre a doutrina do Divino Mestre, com seu consequente modo de viver, e a mentalidade do mundo antigo.
Dos incontáveis deuses da Antiguidade, qual deles dava a seus adoradores a honrosa qualificação de “amigo”? Eram, ao contrário, prepotentes e egoístas, sujeitos às mesmas paixões desregradas dos seus seguidores, com os quais tinham um trato rude. Não faltavam sequer aqueles que exigiam sacrifícios humanos. Dessa aberração nem o povo eleito ficou isento, como afirma o Salmista: “Prestaram culto aos seus ídolos, que se tornaram um laço para eles. Imolaram os seus filhos e suas filhas aos demônios. Derramaram o sangue inocente: o sangue de seus filhos e de suas filhas, que aos ídolos de Canaã sacrificaram” (Sl 105, 36-38).
O Filho da Virgem Maria operou na Terra tal transformação que é difícil ao homem hodierno fazer ideia de como era o mundo antes d’Ele. Só Cristo, Deus e Homem verdadeiro, pôde dizer: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai” (Jo 15, 15). Deu-nos o sublime exemplo de um Deus cheio de amor por seus adoradores, a ponto de torná-los irmão; dar-lhes sua própria Mãe para ser também Mãe de cada um deles; de sacrificar sua vida, até à efusão da última gota de sangue, para remi-los. Nada mais compreensível, portanto, do que prescrever-lhes como norma de conduta um novo Mandamento: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos tenho amado” (Jo 13, 34).
Esposa do Espírito Santo e perfeitíssima discípula do Verbo de Deus encarnado, Maria Santíssima cumpriu com toda integridade e brilho esse Mandamento antes mesmo de ele ser formulado pelo Divino Mestre. Embora os Evangelistas tenham sido muito comedidos em narrar fatos de sua vida, sabe-se que a visita a Santa Isabel foi um refulgir do amor de Deus transbordante do seu Imaculado Coração. Pode-se dizer o mesmo de sua intervenção nas bodas de Caná, livrando os noivos de uma constrangedora dificuldade. E quantos outros atos de amor ao próximo terão sido praticados por Ela, na esteira dourada das pegadas de seu Filho?
São Francisco e o Irmão Bernardo
Felizmente para nossa edificação, é conhecida em detalhes a vida de muitos santos que seguiram os passos do Jesus Cristo Nosso Senhor.
Por exemplo, lê-se nas famosas Fioretti — compilação de “fatinhos” da vida de São Francisco de Assis — que certo dia ele foi à procura de Frei Bernardo, seu primeiro discípulo, com o qual desejava conversar. Chegando ao local onde este costumava orar, chamou-o por três vezes, sem obter resposta. Um pouco abatido, por julgar que o Irmão evitava sua companhia, o Poverello retirou-se. No caminho de volta, o Senhor lhe revelou que Frei Bernardo estava naquele momento num colóquio com Deus, e por isso não o havia ouvido. São Francisco voltou então e pediu-lhe humildemente perdão por haver pensado mal dele.
Contudo, a admiração deste discípulo por seu fundador era tão grande que ele nem queria ouvir o pedido de perdão. Mas São Francisco ordenou-lhe, em nome da santa obediência, que, como penitência por aquele mau pensamento, ele pisasse três vezes sobre seu pescoço e sua boca dizendo: “Aguenta aí, vilão, filho de Pedro Bernardone, de onde te vem tanta soberba, sendo tu a mais vil das criaturas?”.
Agindo da maneira mais delicada possível, Frei Bernardo executou a ordem. Em seguida, pediu a seu fundador que, por caridade, lhe prometesse algo: sempre repreendê-lo e corrigi-lo asperamente por seus defeitos, quando estivessem juntos. Daí em diante São Francisco passou a falar o mínimo possível com ele, pois o tinha em conta de homem muito virtuoso e santo, e por isso julgava-se indigno de corrigi-lo.
Um almoço singular
Outro fato muito edificante deu-se entre São Francisco e Santa Clara. Como se sabe, ela foi atraída à vida religiosa por ele e renunciou a uma situação cômoda no meio das riquezas, para abraçar a vocação franciscana. Apesar de ter frequentes palestras e reuniões com seu pai espiritual, para ficar bem formada no espírito da Ordem, ela manifestava o desejo de, um dia, partilhar com ele uma refeição.
Mas o santo, por temor de dar-se a si mesmo esse deleite, sempre recusava. Seus irmãos e discípulos instavam com ele para atender ao pedido da pobre dama, uma vez que ela tinha renunciado a tudo por amor a Deus e era tão santa. São Francisco, muito cordato, acedeu: “Se vos parece que devo concordar, também a mim parece”. Convidou-a então para um almoço em Santa Maria dos Anjos, a igreja onde ela havia feito seus votos e cortado seus cabelos, símbolo de sua entrega total a Deus.
No dia combinado, lá foi ela, felicíssima, acompanhada de uma irmã. A pobre refeição foi servida, sentando-se à mesa São Francisco, Santa Clara, sua irmã e outro frade. Os demais religiosos da comunidade se aproximaram da mesa para acompanhar a refeição.
Tão logo os comensais começaram a falar das coisas de Deus com suavidade, alegria e elevação, eles mesmos e todos quantos assistiam foram tomados pela abundância da graça divina e ficaram extasiados em Deus. Vistos de longe, a casa e o bosque ao lado pareciam estar ardendo em chamas, e muitas pessoas ali acorreram, temendo tratar-se de um incêndio. Nada encontraram, porém, como causa de tanta luz, a não ser um conjunto de santos que, com fisionomias alegres e embevecidas, se entretinham num êxtase comum e com isso glorificavam o Senhor.
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A consideração desses singelos episódios não nos traz alívio e consolação? Portanto, ao convivermos com os outros, procuremos admirar as qualidades postas neles por Deus. E se a proximidade no convívio nos evidencia seus defeitos, tenhamos sempre na mente uma visão nobre e transcendente, contemplando-os em função do amor que Nosso Salvador tem por cada um. Só assim teremos forças para manter um relacionamento repleto de respeito, consideração e afeto, até com aqueles que não nos tratam bem.
Texto extraído, com adaptações, da revista Arautos do Evangelho, Setembro 2012 Ir. Angela Maria Tomé, EP.
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