Amar ao próximo é o pleno cumprimento da lei
Como apagar as infinitas dívidas que cada homem tem em relação a Deus? A Santa Igreja nos ensina através da liturgia do XXIV Domingo do Tempo Comum.
Redação (12/09/2020 09:47, Gaudium Press) Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (Mt 18, 21)
O que levou São Pedro a fazer essa pergunta ao Divino Mestre?
Os costumes da religião hebraica, nos tempos de Nosso Senhor, exigiam o cumprimento, à risca, de uma série interminável de preceitos concretos, mediante o qual o judeu fervoroso se acreditava justificado diante de Deus. O que inculcava na mentalidade judaica um pragmatismo intenso, pois era possível se salvar pelo mero esforço pessoal, prescindindo quase totalmente do auxílio sobrenatural.
São Pedro, como bom judeu, não estava totalmente isento dessa mentalidade e, por isso, queria saber de Nosso Senhor qual era o número de vezes que o amor ao próximo como a si mesmo – lei nova dada pelo Mestre – exigia a prática do perdão para aqueles que nos ofendem.
A insegurança em relação ao estado de justificação pessoal não cabia na dita mentalidade; afinal de contas, o homem é suficientemente dotado para cuidar de si mesmo, raramente precisa do auxílio de outrem e até mesmo do próprio Deus.
Esses critérios podem desembocar no seguinte pensamento: “Devo admirar, me encantar com a doutrina católica e inclusive colocá-la em prática, mas de mim cuido eu! E ao me apresentar diante do Divino Juiz mostrarei como cumpri com perfeição seus mandamentos e, desse modo, estou no direito de receber a recompensa prometida”.
Terrível engano, pois nos ensina São Tomás de Aquino que “o homem, pelas suas faculdades naturais, não pode praticar obras meritórias proporcionadas à vida eterna; para isso é necessária uma virtude mais alta, que é a virtude da graça”.[1] Mas, quanto custa ao homem colocar-se numa posição de contingência e aceitar que, sem a dependência da ajuda alheia, não se pode ser perfeito. E como no período de permanência nessa terra, todos erramos e precisamos do perdão.
Todos são devedores de Deus
Mas, então, quantas vezes devemos perdoar?
Nosso Senhor Jesus Cristo vem trazendo a lei da caridade por amor a Deus, que não era vigente no período pagão que precedeu sua chegada. Nesse período a lei determinava que houvesse uma punição aos ofensores muitas vezes desmedida e até exagerada.
A misericórdia divina é infinita, o amor de Deus para com as criaturas não tem limites; uma só coisa Ele pede da parte dos pecadores: reconhecerem-se miseráveis e pedirem perdão. Com efeito, todos os homens são devedores de Deus, devem-Lhe a vida que receberam gratuitamente, as graças com que foram aquinhoados no decorrer da existência e devem pedir perdão pela prática de um pecado que seja, cujo valor é infinito, por se tratar da ofensa a um Ser infinito, Deus.
A parábola criada por Nosso Senhor ilustra como é o perdão de Deus em relação ao miserável que se reconhece como tal. O patrão por pura misericórdia, sabendo ser impossível ao empregado pagar a enorme fortuna que devia, ao vê-lo prostrado, reconhecendo-se devedor, sente-se de tal maneira tocado, que é levado a perdoá-lo totalmente a dívida. Símbolo do amor que Deus tem por cada um dos pecadores arrependidos, e exemplo que move as almas daqueles que foram perdoados a agir da mesma forma, ou seja, sem limites.
O empregado perverso
No entanto, o empregado que foi perdoado generosamente ao se encontrar com seu próximo, que lhe devia uma mínima fortuna, em comparação com a sua dívida, age com completa dureza, faltando com a caridade da qual tinha sido objeto.
Deus nos perdoa as mais graves ofensas que mereceriam a pena eterna, o inferno, e nós, que podemos ser vítimas de ofensas infinitamente menores, guardamos ódio e suscitamos um desejo de vingança para “reparar” a falta cometida, quando não perdoamos de todo o coração. Sobre isso, na primeira leitura, o livro do Eclesiástico adverte: “Quem se vingar encontrará a vingança do Senhor, que pedirá severas contas de seus pecados” (Eclo 28, 1).
O amor cobrirá uma multidão de pecados
O amor ao próximo e o perdão às ofensas recebidas assemelha as criaturas ao Criador, pois pagamos o mal com o bem, o que excede o mero dever de justiça, enquanto que a vingança nos faz merecedores dos infinitos castigos que são devidos às nossas faltas, que a Misericórdia Divina estava disposta a perdoar.
Portanto, o modo mais eficaz de receber o perdão das próprias faltas e de apagar nossas dívidas em relação a Deus é o amor ao próximo levado até as últimas consequências, pois quem ama o seu irmão demonstra que reconhece sua contingência e torna-se um reflexo de Deus.
E assim se compreende aquela palavra da Escritura: “O amor cobrirá a multidão de pecados” (1 Pd 4, 8).
Misericórdia ou justiça?
Há um equilíbrio entre justiça e misericórdia, que é amiúde superado por Deus em favor dos pecadores. Podemos dizer que justiça é dar a cada um o que lhe é devido, e misericórdia é o amor ao miserável, ou seja, a disposição de perdoar e se desdobrar em função do pecador que se arrepende de praticar o mal. Deus quis se representar nessa parábola na figura do patrão que excede os limites da justiça e perdoa quem lhe era devedor.
Ora, quando o pecador não se arrepende e dá provas de que interiormente não estava convertido, como o que aconteceu com o empregado perverso, Deus usa da justiça aplicando o castigo necessário para o bem do pecador, conforme o Evangelho: “O patrão indignou-se e mandou entregar aquele empregado aos torturadores até que pagasse toda a sua dívida. É assim que o meu Pai que está nos Céus fará convosco se cada um não perdoar de coração o seu irmão” (Mt 18, 34-35).
Alguém dirá: Onde fica a misericórdia de Deus? O castigo que Deus inflige é um supremo ato de misericórdia, pois visa a conversão dos pecadores, concedendo graças extraordinárias, e até o último momento, estando disposto a perdoar. Entretanto, se o pecador não se arrepende, a integridade de Deus, que “não pode negar-se a si mesmo” (2 Tm 2, 13), exige a punição eterna daquela alma infeliz. Lembremo-nos de que o pecado é uma ofensa infinita; logo, a punição, quando aplicada por Deus, só pode ser infinita, ou seja, o inferno, “onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 25, 30).
Todos queremos ser alvos da bondade de Deus, então, devemos colocar em prática o ensinamento que ele nos deu: amar ao próximo como a nós mesmos, tratando com bondade aqueles que estão próximos de nós, e sobretudo o próprio Deus.
Se isso exige de nós uma mudança de conduta, o primeiro passo é a oração, sem a qual nada se faz. Estamos tão ocupados com as contínuas pressas do mundo hodierno que, às vezes, podemos esquecer do essencial, a vida eterna. Abandonemos por um instante nossos contínuos afazeres e voltemos nosso olhar para Deus sempre pronto para nos ouvir e atender.
Por Afonso Costa
[1] S. Th. I-II. q. 109 a. 5
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