Profetismo, Júlio Verne e tecnologia: da utilidade à tirania
É inegável que a tecnologia trouxe incontáveis benefícios à humanidade. Não está na hora de pesar também os prejuízos?
Redação (23/07/2020 09:58, Gaudium Press) Ainda bem que prever o futuro não é a única condição para ser profeta, como sugere uma análise superficial da palavra. A Igreja ensina que, antes de tudo, este carisma é dado a alguém para guiar o povo de Deus nos caminhos traçados pela sua infinita sabedoria, máxime quando o rebanho de Cristo envereda por pastagens nocivas. (Cf. S.Th. II-II q. 171, a. 3).
Do contrário, poderíamos dizer que Júlio Verne, o famoso literato francês do século XIX, foi um profeta, porque algumas de suas descrições e narrativas vão muito além de seu tempo.
Lembro-me de minhas primeiras leituras nos tempos de menino. Deliciava-me com aquelas páginas repletas de aventuras fantásticas, de cientistas inventivos, de naufrágios trágicos, de cenas curiosas e de viagens misteriosas.
Júlio Verne era muito criativo e imaginativo. Ele discorreu sobre viagem à Lua, antes de Armstrong; aviões supersônicos, quando Santos Dumont era ainda criança; vídeo conferência, no momento em Graham Bell lançava os primeiros telefones.
Mas, a meu ver, a história mais atraente é um livretinho intitulado: “O dia de um jornalista americano em 2889”.[1] É a narrativa de um homem que viveria 1000 anos depois de Júlio Verne.
Bons e maus augúrios
O autor francês imagina o dia de um jornalista americano milionário, o qual fez fortuna por lançar um novo tipo de periódico: não mais o dispendioso e pedante impresso preto e branco, mas um jornal “falado”, que os assinantes podiam usufruir… no seu telefone.
E por falar em telefone, Júlio Verne diz que este magnífico aparelho era capaz de transmitir imagens! Numa das páginas, ele descreve como o jornalista, que vive nos Estados Unidos, toma refeições acompanhado de sua esposa – que se encontrava em Paris – através da “tela” de seu telefone; via WhatsApp, diríamos nós.
Estas não são as únicas maravilhas tecnológicas descritas para o ano de 2889. A narração apresenta hidrelétricas, ônibus-aéreos, transplante de órgãos, viagens espaciais, habitação extraplanetária, elevação da expectativa de vida, descobrimentos químicos e físicos extraordinários. Lembramos: o livro é de 1889! Tempo em que os trens eram os transportes de “última geração”!
Infelizmente, Júlio Verne não preconiza somente bons augúrios.
Ele descreve armas de guerra terríveis, capazes de lançar seus projéteis a centenas de quilômetros. Ele imagina uma China e uma Rússia dominadoras e ameaçadoras, antes que o Comunismo fizesse suas revoluções. Mas para frear os avanços do gigante oriental, Júlio Verne sugere a imposição de um controle de natalidade. Ele nos fala ainda de guerras bacteriológicas, de misteriosos vírus utilizados como ferramentas de guerra.
Esqueçamos estes males! É tal o progresso que o avanço científico produziu no ano 2889, que estas pequenas nuvens não toldam o horizonte promissor e ensolarado da tecnologia!
Poderíamos falar ainda das organizações mundiais de países confederados que o autor nos descreve quase profeticamente.
Mas para resumir bastante – e deixar um pouco de história para o leitor degustar sozinho quando ler as páginas do atraente livro –, bastaria dizer que Júlio Verne concebe um futuro cheio de avanços tecnológicos benéficos à humanidade.
Bendita tecnologia!
Servidor ou senhor? Escravo ou dono?
Quando os profetas preveem os acontecimentos, geralmente se equivocam nas datas. Eles preconizam para amanhã eventos que tardam, por vezes, alguns séculos. Porém, com Júlio Verne ocorreu o contrário. O que ele anunciou para 2889, o homem já pode desfrutar em 2020.
A tecnologia trouxe-nos inúmeros benefícios, é inegável. Mas para ser juiz justo, precisamos ver os dois lados da moeda: quais são os malefícios que trouxeram consigo os avanços da ciência?
Menos palpáveis que as qualidades, os prejuízos não se comprovam em tubos de ensaio, mas no interior do homem, que não é analisável por microscópios e ressonâncias.
Os malefícios, contudo, nem por isso deixam de ser reais.
Tomemos um.
A tecnologia nasceu sob um rótulo: ela é útil. Com o passar dos anos, o útil passou a necessário. Não tardou muito e o necessário se tornou indispensável. Falta pouco para que o indispensável faça uma revolução e instaure uma ditadura.
Sim, ninguém pode ser adverso à tecnologia porque seria insensato. Mas com que adjetivo poderíamos qualificar alguém que se deixasse escravizar cegamente por um servidor revoltado?
A tecnologia passou de instrumento útil para senhora absoluta, déspota que governa países, mentes e filosofias. As primeiras leis já foram impostas pela opressora: indiferentismo, materialismo e ateísmo.
Como será o dia de amanhã sob a égide desta tirania insensata? Quais serão as próximas leis a que a ditadura do século XXI submeterá o homem?
Esta história Júlio Verne não escreveu.
Por Paulo da Cruz
[1] O livro intitulado “La journée d’un journaliste américain en 2889” foi publicado pela primeira vez em 1889, em Londres, na versão inglesa. Há uma polêmica acerca da autoria, pois uma minoria afirma que o opúsculo foi feito por Júlio Verne e seu filho, Michel Verne. Contudo, a maior parte dos especialistas considera como sendo obra exclusiva de Júlio Verne.
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